quinta-feira , 26 dezembro , 2024

Artigo | A breve história e o legado social de Ma Rainey, a Mãe do Blues

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Depois de Selena Quintanilla Perez ganhar sua própria série através da Netflix, chegou a vez da plataforma de streaming nos apresentar a outro ícone da música – dessa vez, viajando algumas décadas no passado para relembrar um dos episódios mais incríveis e complexos da história fonográfica em A Voz Suprema do Blues. A nova cinebiografia, que já conquistou o coração da crítica e estreou hoje (18) no catálogo do serviço, trouxe ninguém menos que a vencedora do Oscar em mais uma corrida pela estatueta ao interpretar Ma Rainey, a Mãe do Blues. Acompanhando-a, temos também Chadwick Boseman em sua última performance antes de seu trágico falecimento, dando vida a um jovem trompetista que deseja fundar sua própria banda e ganhar um mundo movido pela supremacia e pelo lucro.

Entretanto, falaremos aqui sobre Ma Rainey. A lendária musicista nasceu em 1886 numa pequena cidadezinha da Geórgia, Estados Unidos, e ascendeu à fama a partir de 1915, quando abraçou o blues e trouxe o gênero para o cenário mainstream. É claro que Rainey não criou o gênero em questão, visto que ele foi construído e trazido à vida quase trinta anos de seu nascimento por descendentes afro-americanos que incorporaram cantigas de trabalho, baladas de narrativas e rimas simples à complexidade do jazz e do R&B, que vieram ainda antes. De qualquer forma, ela, ao lado de outro clássico nome – Bessie Smith, a Imperatriz do Blues – forjaram uma amizade inigualável para levarem essa incursão sonora para além das comunidades negras no sul do país, invadindo o norte dominado por brancos e deixando fortes marcas na história que seriam resgatadas muitos anos depois (por Tony Bennett e Amy Winehouse, por exemplo).



Nascida Gertrude Pridgett, a jovem adotou um alter-ego que representasse seu poder nos palcos: Rainey sugava, de um jeito positivo, o ar de qualquer lugar que passasse, por sua presença majestosa, por suas vestimentas exageradas e, principalmente, pela potência de densos e roucos vocais. Ela se montava com perucas feitas com pelos de cavalos selvagens, moedas douradas que formavam um colar em seu pescoço; uma pena de avestruz era exibida em suas apresentações para deixá-la ainda mais misteriosa, enquanto implantes dentários de ouro reluziam toda vez que abria a boca. Mas seu principal marco foi fornecer um significado diferente da melancolia do blues, guiando enredos ácidos sobre traição, empoderamento e sexo de uma forma como ninguém mais fazia.

Afinal, a cantora e compositora insurgiu como um arauto do passado e, ao mesmo tempo, do futuro: seu estilo tradicional se mesclava com características originais, ainda mais por incorporar os elementos expressivos do folk e do jazz. Ma Rainey, sem perceber ou até mesmo sem ter em mente esse objetivo, utilizou um dom invejado por muitos para dar origem a um pastiche fonográfico que serviria de base para as várias e inesperadas misturas de gênero que encontramos na sociedade contemporânea – como vemos em tantos artistas do escopo internacional.

Abrindo espaço para as experiências da comunidade negra centralizada num continente castigado pela Era Jim Crow e pelas consequências segregativas da escravidão – que, de certa forma, se tornara enraizada na mentalidade daqueles que se sentiam superiores -, suas canções até podiam estender reflexos para os ecos dos trompetes e para as melódicas teclas do piano, mas tais rendições apenas mascaravam tristes estórias de vida que ajudaram na popularização entre os ouvintes. O próprio título de “Black Bottom”, que inspirou o longa-metragem da Netflix, já se vale da irreverência para nos preparar a uma jornada quase mística por uma dança sensual e popular, remontando, de certa maneira, a uma época em que escravos encontravam um pouco de liberdade nas expressões corporais e nos rituais eternizados por seus antepassados. Em “Prove It On Me Blues”, Rainey parece se referenciar ao criar uma personagem com personalidade difícil que perde seu parceiro, mas não desanima e não aceita a culpa por ele ter fugido.

Assista também:
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A performer fechou seu primeiro contato em 1923 com a Paramount, quatro anos depois do primeiro disco de blues ser gravado por Mamie Smith. Rainey não encontrou resistência por parte do público, visto que já tinha uma experiência quase vaudeviliana no circuito teatral, tendo se apresentado em diversas casas sulistas de espetáculo antes de finalmente viajar para Chicago e começar a expandir seu “império” para o restante do país. Em sua primeira sessão, ela nos entregou clássicas iterações como a incomparável “Bo-Weevil Blues” e a famosa “See See Rider”, uma das mais conhecidas de todos os tempos – e uma das principais quando deseja-se aprender sobre o gênero supracitado.

Diferente de tantos outros músicos conterrâneos, principalmente aqueles que almejavam uma carreira seguindo as inúmeras ramificações do blues e do jazz-country, Rainey conquistou sua reputação não apenas como profissional, mas também como empreendedora. Ma Rainey sabia exatamente o que queria e quando queria – o que explica suas mais de noventa gravações com o estúdio, um número muito maior até mesmo que os artistas brancos da época. Sua carreira com a Paramount durou breves cinco anos, mas foi o suficiente para cimentar seu legado sem ao menos perceber, ainda mais por ter arrastado Smith consigo através dessa montanha-russa. Direta, simples e honesta, as canções traziam temáticas cotidianas e abriam discussões prévias sobre sexualidade, promiscuidade, vícios, a odisseia do wanderlust, magias e superstições, e até mesmo o ato de se fazer música.

Oscilando entre a metalinguagem e a evocação histórica – utilizando o cenário afro-estadunidense na era pós-reconstrução da América do Norte, conforme William Barlow explicou em seu ensaio sobre a emergência da cultura do blues ‘Looking Up at Down’. Não é surpresa que sua importância tenha ressoado em nomes como Langston Hughes e Sterling Brown, na poesia, e na ativista Alice Walker, que a caracterizou como um modelo cultural da mulher afrodescendente e a usou como inspiração para a peça vencedora do Pulitzer ‘A Cor Púrpura’. Em ‘Black Pearls’, livro documental que retrata as rainhas do blues, a autora Daphne Harrison sumarizou com perfeição o que Ma Rainey representou e continuou representando décadas depois de sua prematura morte: uma corajosa e determinada reafirmação do que é ser negro.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Entretanto, falaremos aqui sobre Ma Rainey. A lendária musicista nasceu em 1886 numa pequena cidadezinha da Geórgia, Estados Unidos, e ascendeu à fama a partir de 1915, quando abraçou o blues e trouxe o gênero para o cenário mainstream. É claro que Rainey não criou o gênero em questão, visto que ele foi construído e trazido à vida quase trinta anos de seu nascimento por descendentes afro-americanos que incorporaram cantigas de trabalho, baladas de narrativas e rimas simples à complexidade do jazz e do R&B, que vieram ainda antes. De qualquer forma, ela, ao lado de outro clássico nome – Bessie Smith, a Imperatriz do Blues – forjaram uma amizade inigualável para levarem essa incursão sonora para além das comunidades negras no sul do país, invadindo o norte dominado por brancos e deixando fortes marcas na história que seriam resgatadas muitos anos depois (por Tony Bennett e Amy Winehouse, por exemplo).

Nascida Gertrude Pridgett, a jovem adotou um alter-ego que representasse seu poder nos palcos: Rainey sugava, de um jeito positivo, o ar de qualquer lugar que passasse, por sua presença majestosa, por suas vestimentas exageradas e, principalmente, pela potência de densos e roucos vocais. Ela se montava com perucas feitas com pelos de cavalos selvagens, moedas douradas que formavam um colar em seu pescoço; uma pena de avestruz era exibida em suas apresentações para deixá-la ainda mais misteriosa, enquanto implantes dentários de ouro reluziam toda vez que abria a boca. Mas seu principal marco foi fornecer um significado diferente da melancolia do blues, guiando enredos ácidos sobre traição, empoderamento e sexo de uma forma como ninguém mais fazia.

Afinal, a cantora e compositora insurgiu como um arauto do passado e, ao mesmo tempo, do futuro: seu estilo tradicional se mesclava com características originais, ainda mais por incorporar os elementos expressivos do folk e do jazz. Ma Rainey, sem perceber ou até mesmo sem ter em mente esse objetivo, utilizou um dom invejado por muitos para dar origem a um pastiche fonográfico que serviria de base para as várias e inesperadas misturas de gênero que encontramos na sociedade contemporânea – como vemos em tantos artistas do escopo internacional.

Abrindo espaço para as experiências da comunidade negra centralizada num continente castigado pela Era Jim Crow e pelas consequências segregativas da escravidão – que, de certa forma, se tornara enraizada na mentalidade daqueles que se sentiam superiores -, suas canções até podiam estender reflexos para os ecos dos trompetes e para as melódicas teclas do piano, mas tais rendições apenas mascaravam tristes estórias de vida que ajudaram na popularização entre os ouvintes. O próprio título de “Black Bottom”, que inspirou o longa-metragem da Netflix, já se vale da irreverência para nos preparar a uma jornada quase mística por uma dança sensual e popular, remontando, de certa maneira, a uma época em que escravos encontravam um pouco de liberdade nas expressões corporais e nos rituais eternizados por seus antepassados. Em “Prove It On Me Blues”, Rainey parece se referenciar ao criar uma personagem com personalidade difícil que perde seu parceiro, mas não desanima e não aceita a culpa por ele ter fugido.

A performer fechou seu primeiro contato em 1923 com a Paramount, quatro anos depois do primeiro disco de blues ser gravado por Mamie Smith. Rainey não encontrou resistência por parte do público, visto que já tinha uma experiência quase vaudeviliana no circuito teatral, tendo se apresentado em diversas casas sulistas de espetáculo antes de finalmente viajar para Chicago e começar a expandir seu “império” para o restante do país. Em sua primeira sessão, ela nos entregou clássicas iterações como a incomparável “Bo-Weevil Blues” e a famosa “See See Rider”, uma das mais conhecidas de todos os tempos – e uma das principais quando deseja-se aprender sobre o gênero supracitado.

Diferente de tantos outros músicos conterrâneos, principalmente aqueles que almejavam uma carreira seguindo as inúmeras ramificações do blues e do jazz-country, Rainey conquistou sua reputação não apenas como profissional, mas também como empreendedora. Ma Rainey sabia exatamente o que queria e quando queria – o que explica suas mais de noventa gravações com o estúdio, um número muito maior até mesmo que os artistas brancos da época. Sua carreira com a Paramount durou breves cinco anos, mas foi o suficiente para cimentar seu legado sem ao menos perceber, ainda mais por ter arrastado Smith consigo através dessa montanha-russa. Direta, simples e honesta, as canções traziam temáticas cotidianas e abriam discussões prévias sobre sexualidade, promiscuidade, vícios, a odisseia do wanderlust, magias e superstições, e até mesmo o ato de se fazer música.

Oscilando entre a metalinguagem e a evocação histórica – utilizando o cenário afro-estadunidense na era pós-reconstrução da América do Norte, conforme William Barlow explicou em seu ensaio sobre a emergência da cultura do blues ‘Looking Up at Down’. Não é surpresa que sua importância tenha ressoado em nomes como Langston Hughes e Sterling Brown, na poesia, e na ativista Alice Walker, que a caracterizou como um modelo cultural da mulher afrodescendente e a usou como inspiração para a peça vencedora do Pulitzer ‘A Cor Púrpura’. Em ‘Black Pearls’, livro documental que retrata as rainhas do blues, a autora Daphne Harrison sumarizou com perfeição o que Ma Rainey representou e continuou representando décadas depois de sua prematura morte: uma corajosa e determinada reafirmação do que é ser negro.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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