Adaptações cinematográficas de obras literárias carregam consigo um estigma que até hoje não consegue ser quebrado totalmente: muito creem que o preciosismo é a principal e mais segura saída para se manter fiel tanto com o material original quanto com o fiel público que conhece a história de cabo e rabo, e que mostra impiedoso quando as falhas ou brechas começam a gritar. Não é à toa que várias críticas acompanham sagas infanto-juvenis quanto à veracidade e ao diálogo que mantém com os livros originais – como ‘Harry Potter’, ‘Jogos Vorazes’, ‘Percy Jackson’.
O anúncio da nova investida fílmica de ‘Assassinato no Expresso do Oriente’ primeiramente emergiu como duvidoso, dividindo a audiência e até mesmo a crítica especializada sobre a necessidade de uma nova releitura da icônica obra da lenda do suspense Agatha Christie. Entretanto, essas ressalvas logo se abrandaram quando o nome de Kenneth Branagh veio à tona – e sabemos que ele tem grande talento tanto na frente quanto atrás das câmeras, sendo responsável pelo live-action de Cinderella (um dos maiores sucessos de 2015) e por incríveis releituras de William Shakespeare para o cinema, como ‘Hamlet’, ‘Otelo’ e ‘Henrique V’. E as notícias não pararam por aí, visto que Branagh também daria vida a um dos detetives mais famosos de todos os tempos: Hercule Poirot, já encarnado previamente por Albert Finney (1974) e Alfred Molina (2001).
As expectativas aumentaram consideravelmente com o anúncio de um elenco de peso para dar vida aos lendários personagens – mas, eventualmente, o filme teve uma fraca recepção por parte dos especialistas. Entretanto, revisitando o longa-metragem cinco anos depois de seu lançamento, é notável como a perspectiva fornecida por Branagh é bastante satisfatória e instigante, ainda que não esteja livre de deslizes ou descuidados em relação ao roteiro e às técnicas utilizadas.
TODOS A BORDO
Diferentemente do longa de 1974, o novo ‘Expresso do Oriente‘ não vê necessidade para discorrer sobre o famoso prólogo envolvendo a família Armstrong e que se mostra como peça-chave para os eventos que se desenrolarão. Em vez disso, Michael Green opta por nos apresentar ao famoso detetive já em ação, dando forma à sua personalidade excêntrica e essencialmente cômica em uma sequência muito bem coreografada e ambientada na cidade de Istambul. Nessa introdução ao primeiro ato, Branagh nos traz a uma visão muito mais leve e menos escrachada que a apresentada por Finney no original, mas ainda sim carregado de carisma e do famoso bigode ondulado que o torna reconhecível em qualquer parte do mundo.
Ainda que estejamos nos minutos iniciais, é possível notar sem qualquer dúvida a preocupação de toda a equipe técnica em criar efeitos caprichosos e que conversem com a grandiloquência do cenário e de seus personagens. Ao longo da trama, conhecemos as figuras mais contraditórias entre si e que adicionam inúmeras camadas de complexidade para a relação do detetive com o mistério a ser resolvido – e isso não vem apenas do brilhantismo cênico pensado pelo diretor, mas também pela delineação muito bem explícita de Christie em seu romance, o qual não mede esforços para mergulhar no paradoxo entre uma ambiência convidativa e segura, e sua fragilidade perante à vingança humana.
Viajando para Londres após um chamado inadiável, Poirot se encontra com um antigo e charmoso amigo chamado Bouc (Tom Bateman), proprietário do famoso Expresso do Oriente, um gigantesco e misterioso trem cujas estreitas instalações guardam segredos inimagináveis. A partir daí, Bouc consegue para ele uma cabine dentro da imensa maquinaria, garantindo conforto em primeira classe até que chegue ao seu destino. Já sabemos que as coisas não serão tão fáceis assim, principalmente pelo senso aguçado do investigador para o perigo e por sua necessidade de encontrar algum descanso ser constantemente bombardeada por seus serviços.
Não é de menos que, ao final do primeiro ato, o mistério comece a se desenrolar. Após sermos apresentados a uma gama extraordinária de personagens – à prima vista ricos, estonteantes e superficiais -, bem como uma estranha sequência entre dois dos protagonistas acerca da busca pela tranquilidade e remontando aos fillers vistos no longa da década de 1970, o tabuleiro finalmente chega à sua completude e as cartas do jogo são dadas: no meio da madrugada, o comerciante Edward Ratchett (Johnny Depp) é assassinado a doze facadas sem qualquer padrão aparente horas depois de tentar contratar Poirot como seu guarda-costas pessoal, por sentir que está sendo perseguido por seus inimigos.
O mistério em si é o que consegue prender a atenção do público. Afinal, todos ali são suspeitos e, mesmo que não consigamos nos conectar com um personagem tão fútil e tão malévolo quanto este golpista, é sempre interessante se envolver em um quebra-cabeças tão complicado quanto este e cujas evidências explícitas na verdade são implantes muito bem pensados para desviar a atenção da sagaz mente do detetive.
Não podemos imaginar como algum daqueles personagens tão adoráveis, porém perscrutados com alguma coisa oculta por trás das joias ornamentadas ou dos extravagantes trajes, poderia ter cometido tal ato de atrocidade contra a vida humana. Ao menos, é o que Poirot quer nos levar a pensar, visto que sua perspectiva dúbia – ou seja, que consegue discernir o justo do injusto, o certo do errado sem encontrar um meio-termo – é o principal combustível que o permite enxergar os mais ínfimos detalhes. E sua habilidade é constantemente reafirmada pelos passageiros do trem, em especial pela presença envolvente de Daisy Ridley como a governanta Mary Debenham.
O caso a ser resolvido por Poirot se mostra cada vez mais complicado à medida em que percebe que todos ali têm um álibi: em meio a seus interrogatórios, o detetive conversa com figuras a priori amedrontadoras e frias, mas que no fundo carregam mágoas e traumas de um passado talhado com tragédias pessoais, as quais se revelam a cada novo beat da história. Uma delas é a recém-convertida missionária Pilar Estravados (Penélope Cruz), cuja devoção à Deus logo insurge como uma máscara para uma culpa indescritível de seus anos como enfermeira; ou então a rude e impetuosa Princesa Dragomiroff (a sempre bem-vinda Judi Dench) e sua dama de companhia Hildegarde (Olivia Colman), que na verdade compartilham de um sentimento empático e até mesmo artístico.
Pode-se entender que os personagens funcionam em função do arco de amadurecimento de Poirot, mas não é bem assim que as coisas se desenrolam e nem se concluem. Todos ali estão conectados por um objetivo em comum – que não pretendo revelar nesse texto, e nem vejo necessidade para tal -, e já têm suas metas estabelecidas, principalmente no tocante à resolução de suas tramas pessoais. Acontece que, quando o mistério finalmente é revelado, o detetive é quem é levado ao seu maior teste, renegando seus princípios para avaliar como as “fraturas na alma humana” podem desconstruir uma pessoa e levá-la a cometer atos impensáveis ou condenáveis de uma perspectiva essencialmente moralista (tudo bem que as lições dissertadas em seu monólogo final são bem clichês, mas isso não muda o fato de que até mesmo o investigador passa por uma mudança irreversível).
Se Branagh e Ridley já conseguem roubar o foco da cena, devo dizer que Michelle Pfeiffer como Caroline Hubbard, a própria personificação da americana sem papas na língua e com quedinhas pelo prazer e pelo ócio. Sua presença chama a atenção desde o primeiro segundo, principalmente por destoar do restante do elenco com vestimentas adornadas com cores quentes e sensuais, contrastando com uma história verdadeiramente assustadora – mas que nos é revelada até o final. Até mesmo a atuação canastra e conhecida de Depp e Josh Gad (esse como secretário de Ratchett, Hector MacQueen) deixa os maneirismos vistos em ‘Piratas do Caribe’ e ‘A Bela e a Fera’, respectivamente, para algo mais contido, mais puro e mais naturalista, mas que ainda mantenha a veracidade dos personagens criados por Christie.
FAÇA-ME ACREDITAR
Branagh já provou ser um diretor competente em diversas ocasiões, mesmo que tenha seus infames deslizes como realizador cinematográfico (‘Thor’, por exemplo). Em ‘Expresso do Oriente’, ele aproveita sua prerrogativa para ousar um pouco mais e resgatar técnicas que funcionaram em obras anteriores, misturando-as de forma majoritariamente coerentes com investidas mais ousadas.
É clara a influência de James Wan na composição estética dessa obra: se o diretor, conhecido por sua incrível condução de câmera, transformou a pequena casa de ‘Invocação do Mal 2′ em um cenário aparente muito maior do que era, Branagh repetiu o feito ao introduzir inúmeros e bem arquitetados planos-sequência que atravessavam os inúmeros vagões do trem. A credibilidade do cineasta é mais uma vez reafirmada no momento em o menos e torna mais, e as composições mais simples conseguem arrancar suspiros de satisfação imagética do público. Em diversos momentos, a fotografia, supervisionada por Haris Zambarloukos, opta pela simetria excessiva, escancarada na utilização de plongées absolutos que contrastam com o teor tenso das sequências, preferindo a eliminação de barreiras físicas e a união dos personagens.
Neste quesito, não posso negar que o remake se mostra mais proeminente que seu predecessor, principalmente se levarmos em conta que o filme de 1974 é claustrofóbico e tem a intenção de incomodar o espectador. Parece que a audiência está confinada junto ao detetive em uma rede de intrigas que não parece ter solução, e cujo assassino parece esvaecer como poeira; aqui, o público se sente mais livre para explorar e para acompanhar a fluidez técnica que transforma algo relativamente estreito em uma composição quase infinita. E aqui devo inclusive fazer menção às metáforas de Branagh, que, também em sua maioria, funcionam: a primeira sequência de apresentação dos personagens mostra Poirot e Hubbard atravessando todos os compartimentos, mantendo-nos como meros apreciadores do Expresso; já no final, a cena se repete, mas agora deixando o detetive mais próximo de nós, andando pela plataforma de pedra enquanto cada um dos suspeitos é enquadrado de forma artísticas nas minúsculas janelas dos vagões, provavelmente se reverenciando a um ciclo que não pôde ser quebrado nem pela mente calculista do protagonista.
Nem tudo são maravilhas, é claro: a fotografia é redundante em diversos aspectos, ou seja, quando decide se expor além do necessário em momentos de epifania íntima ou descobertas do investigador. Em vários momentos, uma não tão sutil luz dourada parece se estampar em seu rosto, acompanhada por diálogos de autocompreensão que o levam a desenterrar uma brecha nas histórias contadas pelos interrogados. Não digo que isso seja incômodo o suficiente, mas contribui para uma saturação desnecessária dentro do cosmos do filme.
A direção de arte, entretanto, mostra-se como o grande motivo de aplausos aqui: o refinamento de cada um dos objetos contrasta com a simplicidade e a humildade da paleta de cores, cujas preferências variam entre os tons de marrom, vermelho e azul, permitindo gradativamente que os personagens se misturem ao cenário e que se tornem parte da própria história que desejam com tanto fervor deixar para trás.
ALMOST CHRISTIE FEELINGS
Green parece ter aprendido com seus erros em ‘Lanterna Verde’ quando foi chamado para colaborar no roteiro de ‘Logan’. E é possível dizer que ele trouxe algumas de suas novas experiências para o filme, principalmente ao colocar uma inesperada, breve e não tão coesa cena de ação para atrair o público mais jovem e que já está acostumado ao ritmo acelerado dos inúmeros blockbusters de Hollywood. Entretanto, o roteirista cai no preciosismo ao deixar de lado a naturalidade para compor certos personagens, principalmente no tocante a Bouc: suas falas são pinceladas com um tom muito refinado e bem articulado até mesmo para o próprio romance, o que promove em alguns momentos a artificialidade e a volta para saídas teatrais do personagem.
Não que isso esteja totalmente fora do esquadro esculpido por Christie em suas páginas, mas estamos falando aqui de um produto audiovisual: dessa forma, diálogos muito autoexplicativos devem ser evitados ao máximo para não entrarem em um vício repetitivo de linguagem que cansa aqueles que assistem. Infelizmente, esse deslize acaba comprometendo o ritmo da história, o qual se perde no segundo ato e retorna para um gancho interessante no terceiro; além disso, Green parece não saber dosar exatamente as doses de humor e drama, optando por jogar ao léu piadas relativamente cômicas no início apenas para fornecer uma roupagem dramática e pesada ao extremo para Poirot nos momentos seguintes.
‘Assassinato no Expresso do Oriente’ é um filme satisfatório, mas não tão fácil de ser seguido. Sua estética caprichosa e feita com cuidado por vezes rouba o foco da história, a qual deve ser acompanhada de perto, levando em consideração a brilhante mente de sua criadora. E não se engane: os “momentos ao acaso” na verdade são muito bem colocados e partem de uma premissa muito mais intimista e que não permite ao público resolver o mistério, mas destilar da atmosfera tensa e corroborar não com aquele que investiga, e sim com aquele que é investigado.