sexta-feira, março 29, 2024

Artigo | Relembrando ‘Carros’, a primeira tentativa da Pixar em se remasterizar

A Era de Ouro dos estúdios Pixar teve seu pseudo-término após o lançamento de Os Incríveis’ no ano de 2005, após entregar um crescente microcosmos de criaturas antropomorfizadas nos anos anteriores (como Toy Story’, ‘Vida de Inseto’ e Monstros S.A.’), com um incrível revival no ano de 2007 com Ratatouille’. Dizer que a companhia optou por um rejuvenescimento de seu time criativo talvez seja o modo equivocado de analisar o processo de transformação que seus profissionais obtiveram com o advento de tecnologias de animação mais modernas e que pudessem transpassar uma realidade ainda mais crível com as telonas.

As experimentações se iniciaram com Monstros e alcançaram resultados incríveis, além de expandir o universo único para um panteão ainda mais profundo e recheado de personagens icônicos e imortais. Buscando sua inspiração em seus três trabalhos anteriores, o cineasta John Lasseter resolveu, pois, direcionar suas habilidades artísticas para uma narrativa mais dinâmica e motorizada, trabalhando ao lado do novato roteirista Dan Fogelman (um dos primeiros indícios da “remasterização” promovida pela Pixar) com o longa-metragem animado Carros’.

A ideia de humanizar automóveis carrega consigo uma premissa interessante e com um potencial gigantesco, possibilitando aos criadores uma exploração de um universo já conhecido por seus espectadores pela visão de personagens essencialmente construídos sobre quatro rodas. E diferentemente dos filmes anteriores, essa vertente tem um vínculo muito mais forte com o mundo que conhecemos, principalmente por se transformar em uma convergência relativamente harmônica de obras de redenção, ou seja, nas quais os protagonistas passam por transformações irreversíveis através de momentos epifânicos ou viradas autorreflexivas.

Entretanto, apesar das nuances de profundidade, o início desta nova era traz as consequências de riscos tomados, incluindo a falta perceptível de metáforas e simbologias visuais anteriormente premeditados pela identidade fílmica do estúdio e a desenvoltura relativamente monótona dos acontecimentos, seguindo um padrão previsível e clichê.

SHUT UP AND DRIVE

A história tem como protagonista-solo o formidável e egocêntrico Relâmpago McQueen (dublado originalmente por uma fantástica interpretação de Owen Wilson). Desde o princípio, sabemos que este personagem é a própria recriação automobilística de todas as celebridades do mundo artístico e esportivo que esbanjam um carisma tão artificial quanto sua personalidade. Sim, podemos encará-lo como um vilão momentâneo que, durante os dois primeiros atos do longa, encontra satisfação em dispor-se de sua “superioridade” perante os outros e firmar-se como uma coluna grega das corridas, desejando piamente ser respeitado e adorado por uma legião de fãs com os quais definitivamente não se importa.

A primeira sequência é construída de forma alternada a mostrar a velocidade nas pistas de corrida e a paz indecifrável dentro do confinamento de McQueen, representado materialmente por seu caminhão companheiro Mack (o veterano da Pixar John Ratzenberger). Um solilóquio desesperado pela faísca da vitória e do maniqueísmo entre perdedor e ganhador adorna uma tela completamente escura, até que, estampando em seu “rosto mecanizado” um sorriso, ele sai de sua própria bolha para os flashes das câmeras e as vozes amorfas dos fotógrafos, pronto para “arrasar”.

O personagem é o mais novo corredor da Copa Pistão, e está disputando o grande prêmio ao lado do lendário O Rei (Richard Petty), um dos corredores favoritos tanto do público quanto dos patrocinadores, e do eterno runner-up Chick Hicks (encarnado pela singularidade de Michael Keaton). O evento principal, com enfoque nos três competidores, segue paralelamente à identidade de cada um: enquanto McQueen, inteiramente embebido por uma paleta de cores vermelha que tem profunda associação à virilidade e à sede pelo poder, é um corredor jovem e esguio que confia na própria ascensão à fama para vencer seus adversários, O Rei é símbolo da justiça e da honra dentro da “arena”, resgatando os princípios milenares da honestidade e da destreza dentro de uma competição, perscrutado pela cor azul; Chick, por sua vez, é representado pelo dúbio significado da cor verde-limão, a qual se inclina para uma segurança interior fundida com uma arrogância desnecessariamente cômica.

A primeira virada consistente que temos no roteiro vem nos segundos finais da sequência analisada anteriormente, nos quais os três favoritos da temporada cruzam a linha de chegada juntos. Essa pequena sutileza, apesar de não conseguir arquitetar uma atmosfera tensa o suficiente para nos manter agarrados aos braços da poltrona, é satisfatória o suficiente no tocante à complexidade de McQueen, adicionando uma camada de solidão e presunção à sua construção. Seu individualismo ofusca a equipe que trabalha com ele nos boxes da corrida, deixando-os de lado até mesmo durante as entrevistas – e através de um acaso muito bem colocado, seus pneus estouram perto da linha de chegada, permitindo aos concorrentes lhe alcançarem.

Este seria o “falso” incidente incitante da trama, se considerarmos o contexto geral da busca pela Taça Pistão e pela “supremacia” do mundo da corrida. A priori, tanto o protagonista quanto seu adversário vilanescos Hicks estão cegos por chegar a esta posição social e passam uma impressão equivocada de linearidade construtivista. Mas conforme os atos seguem sua ordem cronológica, percebemos que as primeiras impressões felizmente caem em refutação e deixam margem para uma constante ascendência à redenção dos erros.

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Logo depois do empate triplo, McQueen pega a estrada em direção à Califórnia, onde competirá pela última vez com O Rei e Chick Hicks. E mais uma vez, sua necessidade pelo controle o coloca em apuros ao obrigar Mack a permanecer acordado por muitas horas de viagem e ser alvo das “brincadeiras de mau-gosto” de um quarteto rebelde e que poderia ter sido um pouco mais explorado nesta parte da narrativa. De forma resumitiva, McQueen é deixado sozinho na rodovia interestadual e se vê completamente sozinho pela primeira vez na vida, sem o apoio de patrocinadores, bajuladores ou funcionários.

E é então que seu real arco de redenção realmente começa, mais precisamente quando chega à peculiar cidadezinha de Radiator Springs.

NEON LIGHTS

A cidadela palco da maior parte do longa-metragem tem uma construção ambígua, pois ao mesmo tempo que resgata a nostalgia dos anos 1970 com sua arquitetura pitoresca e suas cores contrastantes, se fixa na cronologia da narrativa principal como um lugar abandonado pelo tempo e escondido do mundo real, como se pertencesse a uma bolha à parte, esperando para ser redescoberta.

Nem mesmo seus moradores parecem ter noção das mudanças que se apossaram da sociedade moderna (dentro da cronologia fílmica, é claro), permanecendo alheios, mas carregados de personalidades distintas que os tornam únicos. Logo após McQueen ser apreendido por dirigir em alta velocidade na famosa Rota 66 – cuja caracterização se aproxima mais da alcunha de Vale da Morte do que qualquer coisa, adornada por uma névoa constante e por uma escuridão quase plena -, conhecemos alguns dos personagens mais adoráveis do filme.

Mate (Larry the Cable Guy) talvez seja a criação mais inteligentemente humilde no universo de Carros’: o caminhão-guincho emerge como uma oposição tão drástica do protagonista que a relação de amizade criada pelos dois é tragicômica e traz alguns dos melhores momentos para a franquia que se desenvolveria com o tempo. É claro, a perspectiva estereotipada do “caipira” contrasta com o polimento abundante do corredor da “cidade grande” e muitas vezes seus diálogos abandonam um potencial profundo para cair nos clichês de gênero. Mas o charme prevalece na maior parte do tempo – e isso é o que conta mais.

O par romântico de McQueen também está à espreita – e, seguindo os passos de uma novela de época à la A Megera Domada’, emerge na forte presença da Porsche Sally Carrera (Bonnie Hunt). Entretanto, sua personalidade marcante em nada se sobressai quando os dois são colocados lado a lado: a química praticamente não existe, e o desenvolvimento de laços afetivos é baseado em uma fórmula narrativa tão antiga quanto como as obras literárias se dispunham nas escolas do século XIX. Seus diálogos são mal construídos e permanecem numa linearidade blasée e monótona.

Quem definitivamente transcende os conceitos arquetípicos dentro de uma animação como estas é o incrível Paul Newman dublando o franzino e frustrado Doc Hudson, um lendário corredor da Copa Pistão que encontrou uma forçada paz na cidadezinha de Radiator Springs e recomeçou sua vida agitada de outrora, concedendo a si mesmo um hiatus aparentemente vitalício. Doc pode ser encarado como o principal obstáculo que deve ser enfrentado por McQueen para que este “encontre a luz”, por assim dizer: sua personalidade quente e ao mesmo tempo intimidadora e introspectiva é o que fornece uma perspectiva mais racional para a cidade e seus habitantes, cuja maioria é movida pelas emoções para tratar de possíveis problemas.

A primeira aparição deste personagem é quase etérea: durante o julgamento de McQueen por seus danos causados à cidade, ele aparece e assume a cadeira de juiz, sendo iluminado por uma backlight que oculta parte de suas feições e o transforma numa figura divinizada. Desde o princípio, sabemos que ele traz um peso maior para a narrativa a para a comunidade em que vive, e seu rosto semioculto também indica que tem segredos a esconder – talvez até de si mesmo.

Dois outros personagens que também trazem sua dose cômica são a dupla Luigi e Guido, donos de um comércio de pneus que há muito não recebe a visita de um único cliente. Ambos são italianos, e seu sotaque traz mais personalidade àquele lugar tão provincial. E, seguindo o padrão de seus companheiros, os dois parecem presos em algum lugar entre a década de 1970 e 1980; Sally, com uma freada modernidade quase exalando das rodas cromadas, é mais contemporânea e rebusca o brilho do início do século; Doc, em seu charme retrô, tem identidade fincada na década de 1960. E por aí seguimos, culminando na convergência de “momentos” diferentes em um mesmo lugar.

ROTA RADIATOR SPRINGS

Até a construção da cidade tem uma vertente muito específica, aproveitando os meados dos anos 70 e a popularização das luzes neon para criar uma atmosfera específica e completamente diferente da estimulante e cansativa dinamicidade das pistas de corrida. Marcada quase durante os 120 minutos de história por uma trilha sonora cuidadosamente escolhida – que varia do clássico piano de Randy Newman ao ritmo contagiante do country rock -, a própria localização de Radiator Springs reafirma sua bolha.

A paisagem ao redor dos poucos estabelecimentos é desértica, adornada por cactos, pelo solo rachado e por ruínas rochosas que buscam inspiração do Grand Canyon – território bem característico do oeste dos Estados Unidos, principalmente das regiões da Califórnia e do Arizona. Tudo é paradisíaco e único, fornecendo mais identidade para o filme, principalmente se compararmos a antítese entre a paleta de cores artificial dos letreiros das lojas com a forte presença do laranja, do vermelho e do amarelo pastéis para a natureza.

Radiator Springs talvez se configure como a parte fílmica mais desperdiçada de Carros’. A comunidade possui apenas uma rua principal e uma transversal, e um singelo semáforo eternamente piscando com a luz amarela se encontra no encontro das duas. A possibilidade de metáforas e simbologias é enorme: a cor amarelo-pálido poderia entrar em oposição ao seu próprio significado de superação de obstáculos e crescimento pessoal, além de retificar mais uma vez a localização atemporal daquele ambiente dentro de uma cronologia contextual mais ampla. A arquitetura castigada pelo tempo, em um processo de constante e interminável renovação, se relaciona com a persistência dos personagens em querer fazer daquele lugar um lar, resgatando sua glória histórica. Mas a opção pela montagem hiperclássica infelizmente impede que a animação mergulhe de cabeça em seu potencial, restringindo-se ao campo e contracampo quando em arcos dialógicos, e em planos panorâmicos para mostrar a paisagem – muitas vezes caindo em sequências tão longas e monótonas que parecemos estar assistindo a um filme road trip trash.

O roteiro de Fogelman, escrito em parceria tanto com Lasseter quanto com Joe Ranft, parece acertar apenas pontualmente no filme, além de restringir-se a comicidade e aos trocadilhos dentro da cultura pop – desde nomes até referências dentro do universo Pixar. Os momentos de drama e os ápices narrativos parecem seguir uma linha contínua e desprovida de delineações satisfatórias, permanecendo na superfície. Como já comentado antes, a trama é previsível desde o começo, e segue exatamente as fórmulas de filmes de aventuras do gênero – e o mais irônico é que, mesmo com personagens sobre quatro rodas e muito rápidos, eles estão sujeitos a uma inflexibilidade identitária que os deixa… Parados.

Os diálogos autoexplicativos também não contribuem para elevar o nível das tramas e subtramas. A competência criativa parece sofrer um bloqueio nos momentos de maior tensão, optando pelo silêncio mútuo entre os personagens em vez de explorar análises mais intimistas e que vão além do que estamos apenas vendo na tela.

BRILHO OFUSCADO

Não se pode negar que Carros’ tem o seu charme, ainda que não se equipare a iterações anteriores e esteticamente superiores. O problema principal dentro da animação é a falta de delineações dentro de uma narrativa carregada com um potencial delicioso e que poderia ser mais escavado, buscando sempre resoluções ambíguas ou contraposições mais complexas.

Talvez ainda mais que esses deslizes, o longa parece duvidar da capacidade de compreensão de um público em constante amadurecimento cinematográfico, optando por entregar uma narrativa bem mais rasa e passível de premeditação. Ora, é meio óbvio imaginar o que acontecerá a McQueen ao final do último ato, ou como seu arco de redenção terá uma finalização. O protagonista embarca em uma jornada relativamente satisfatória, mas a custo de abrir mão de ousadias mais severas e estruturadas.

O filme pode até prezar pela aceleração; entretanto, perde o fôlego diversas vezes – e o produto final é o que podemos chamar de uma medíocre centelha de trabalho cumprido.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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