Sandra Corveloni está prestes a voltar ao mundo da sétima arte e estender seu importante legado na cultura artística nacional.
Corveloni, que iniciou sua formação ainda nos anos 1990 e sagrou-se uma das maiores atrizes brasileiras após conquistar o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes por ‘Linha de Passe’, já eternizou diversos personagens nas telonas e nas telinhas – com seus últimos créditos incluindo a série dramática ‘Não Foi Minha Culpa’ e o longa ‘Alegria do Amor’ (que tem lançamento previsto para este ano).
Agora, a atriz, que também conquistou quatro indicações ao Grande Otelo, finaliza as filmagens do ambicioso drama tour-de-force ‘Lusco-Fusco’, que conta com a direção da dupla Bel Bechara e Sandro Serpa.
O filme, cujas gravações se encerram hoje, 20 de fevereiro, gira em torno da relação de amizade entre duas mulheres. Vera (Amandyra), uma professora do ensino fundamental envolvida em uma relação abusiva com Matias (Allan Souza Lima), cujo retorno repentino abala sua vida. Já Alda (Corveloni), sua vizinha não alfabetizada e faxineira no mesmo colégio, desistiu de seus sonhos para cuidar do filho, Dinho (Pedro Ottoni), e da neta, Joana (Duda Sampaio). A amizade entre as duas fortalece e ilumina os caminhos para escaparem da opressão que vivem, inspirando a menina Joana, sobre o que é ser uma mulher no Brasil no século XXI.
Recentemente, tivemos a oportunidade de participar das gravações da penúltima diária do longa, que ocorreu nas ruas de Osasco, na Grande São Paulo, convidando o público a conhecer uma história que, infelizmente, torna-se bastante comum entre inúmeras pessoas.
Ainda que o enredo do projeto tenha sido oficialmente divulgado, informações mais detalhadas permanecem sob sigilo – mas isso não impediu que Corveloni pudesse comentar um pouco sobre sua personagem e sobre as importantes temáticas retratadas pela história.
“A minha personagem, Alda, sofre uma violência envolvendo fake news, uma coisa bem grave. Só que ela, por ser uma pessoa muito simples, não tem muito conhecimento, não tem internet, não tem celular, ela é seminalfabeta, então ela não tem a dimensão [do problema]”, a atriz conta. “Ela sabe que é uma coisa séria, mas ela acha que é uma brincadeira de mau gosto. Nem ela, nem os familiares têm a dimensão da gravidade. E ela é muito amiga, vai se tornando amiga da Vera, que é a vizinha de frente, professora da neta dela, que sofre um outro tipo de violência do namorado – é um relacionamento tóxico -, sobre o qual a vizinhança toda já está a par, porque ele faz escândalo, quebra a porta, aquelas coisas ‘lindas’, né? Aquelas coisas incríveis”.
Corveloni continua: “então, o filme fala dessas violências. Não só essas violências mais explícitas, mas também as pequenas coisas de tratamento do dia a dia, dentro da própria família. Aquelas microagressões, que antigamente a gente nem chamava assim, a gente dizia só que a pessoa era folgada e preguiçosa. Mas isso é uma, digamos, um comportamento, uma educação que a gente vai perpetuando na nossa sociedade”.
“São essas pequenas agressões que levam, às vezes, a desrespeitos e agressões maiores. Então, acho que o filme está dentro desse universo, mas a seta que aponta para o norte do filme não pinta com tintas fortes. Tem cenas muito fortes, claro, mas o foco principal do filme é o fortalecimento da amizade entre essas duas mulheres, que é a Alda e a Vera. Mulheres que são de gerações diferentes, que têm uma formação diferente, profissões diferentes nelas. Uma é professora, outra faxineira da escola, uma estudou, a outra não. Uma é sozinha, a outra tem família. Uma tem 30 anos, a outra tem 55”.
“Então, elas estão nesses momentos, mas o fato de elas estarem próximas nesses momentos de violência, a preocupação de uma em relação à outra, faz com que essa amizade se fortaleça. E isso abre novas possibilidades tanto para a Alda quanto para a Vera, porque uma chama a atenção da outra. Porque, às vezes, a gente está tão ensimesmado no nosso problema que a gente não vê uma saída. Às vezes, precisa alguém de fora para te dizer: ‘olha, mas será que você não pode ir para cá? Você não pode parar de fazer isso? Ou você não pode tentar uma coisa melhor?'”.
“É um filme muito delicado”, ela reflete.
Apesar de ter iniciado sua carreira nos anos 1990, Corveloni ganhou proeminência e projeção mundiais ao ser condecorada com o prêmio de Melhor Atriz em Cannes por ‘Linha de Passe’.
Dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, a trama acompanhou quatro irmãos que são pela mãe, que trabalha como empregada doméstica e está mais uma vez grávida de pai desconhecido. Com a ausência do pai, lutam por seus sonhos e um deles vê seu talento como jogador de futebol a esperança de uma vida melhor.
Durante a conversa, Corveloni se recordou de seu trabalho com Salles – que, este ano, está indicado ao Oscar pelo aclamado drama de época ‘Ainda Estou Aqui’, estrelado por Fernanda Torres. Corveloni rasgou elogios tanto para o diretor, que apelidou carinhosamente de Waltinho, quanto para Torres, além de discorrer sobre a crescente projeção do cinema brasileiro no mercado internacional.
“É tão importante para a gente [esse reconhecimento], né? Porque a gente estava em um período até bom do cinema, fazendo coisas muito interessantes, muita coisa acontecendo. Aí veio a pandemia, junto com todo o apagamento da nossa cultura, e essas coisas de desmerecer a cultura, de desmerecer o trabalho dos artistas”, ela comentou.
Ela continua: “e isso é muito triste, mexe muito com a gente. Então, assim, é uma… Nossa, um respiro saber que a gente conseguiu, a gente foi lá no fundo e subimos para a superfície de novo com possibilidades de filmes. Em Cannes, o ano passado, o ‘Baby’ foi super bem, ganhou o prêmio de atuação, e teve também o sucesso que fez ‘Malu’“.
“Aí vem Fernanda Torres com essa obra-prima do Waltinho, Daniela Thomas também está junto, essas duas figuras tão importantes do nosso cinema. E um filme que fala dessa nossa memória, ou não-memória, né? Que fala sobre coisas tão terríveis, mas que estão nos escombros, ninguém fala disso. Então, assim, é um filme que vem num momento que o mundo está nessa onda de ultradireita, de cercear os direitos. É um filme que traz todas essas possibilidades de a gente se juntar e pensar juntos, uma outra forma”.
“Eu acredito que a arte serve para isso também, de nos acender para novas perspectivas, novas possibilidades e para não deixar a gente esquecer de coisas terríveis que aconteceram, né? E agora, em Berlim, ‘O Último Azul’, né? Que foi super bem, né? Também saíram críticas incríveis, eu recebi umas mensagens, tenho amigos e amigas no filme, Denise Weinberg, que acompanhei quando ela estava fazendo esse filme. Ela foi contando para a gente que era uma coisa muito poderosa filmar na Amazônia. Então, assim, isso é muito importante para nós. Para nos dar vontade e força de fazer coisas. De contar histórias, de reviver histórias, de ficcionar, de poetizar, de criar beleza e reflexão. Estou muito feliz”.
“O Waltinho é um diretor super dedicado, inteligente, delicado, ele sabe dirigir muito bem, ele conduz um set com muita maestria e com um mergulho no que ele tem que fazer, ele se prepara. Então, a gente se sente muito à vontade para trocar, para jogar dentro daquele roteiro que foi criado, que foi muito bem decupado, estudado. Ele tem uma estrela, o Waltinho, né? Fernanda Montenegro [também] concorreu ao Oscar, por ‘Central do Brasil’“, ela continua.
“Eu ganhei Cannes e agora a Fernanda Torres, que ganhou o Globo de Ouro e concorrendo ao Oscar, e ganhou muitos outros prêmios. Eu fico tão feliz e tão orgulhosa, sabe? Eu fico muito, muito feliz, assim, porque são as mulheres, né? Marcélia, Ana Beatriz Nogueira, Ruth de Souza, tantas mulheres que foram premiadas e que estão, que continuam a fazer cinema, né? As que já se foram, as que estão aqui, Fernanda Montenegro fazendo filme, gente, até agora. É muito bom, muito importante. Então, eu espero que isso traga um fôlego bem grande para o nosso cinema, porque a gente está merecendo. A gente merece; eu estou fazendo esse filme aqui, que diz para a minha personagem: ‘você merece mais'”.
‘Lusco-Fusco’, que também traz nomes como Pedro Ottoni, Amandyra e Duda Sampaio no elenco, ainda não tem previsão de lançamento.