A importância das nossas memórias
Após a impressionante repercussão e dimensão alcançada por O Som ao Redor (2012), em vários níveis, eram altas as expectativas para o próximo longa-metragem do pernambucano Kleber Mendonça Filho, justamente pelo público aguardar se veria uma produção tão interessante e contundente quanto a de estreia. Na carreira de autor, acredita-se que o próximo passo sempre é fundamental para solidez profissional, mas conhecendo um pouco que seja do cineasta em questão, ou mesmo sabendo o que já produziu durante anos e das tantas vivências artísticas e sociais, era quase natural que a evolução viesse.
Mesmo seguindo conceitos estruturais e utilizando artifícios estéticos já empregados anteriormente, este novo Aquarius felizmente possui particularidades dramáticas e temáticas que o diferenciam completamente de seu antecessor, além de narrativamente ser mais funcional ou um tanto convencional, contudo mantendo características autorais. A maior distinção certamente está na abordagem dos personagens, ou principalmente da personagem Clara, interpretada magistralmente por Sônia Braga. Isto porque toda trama gira em torno dessa figura que será usada para representar a ideia central da fita: falar sobre a importância de nossas memórias e como temos que lutar por elas.
Uma das maiores marcas de Kleber Mendonça é inserir, através da montagem, o clima de tensão e suspense em meio a histórias cotidianas, e, não diferente, a destacada aqui não poderia ser tão contemporânea, banal e ao mesmo tempo e intensa. Essa é a vida de Clara, que é rapidamente apresentada com eficiência numa das cenas iniciais do longa – lindíssima, diga-se de passagem. O aniversário de 70 anos da tia Lúcia (Thaia Perez), não apenas transporta o espectador para um momento absolutamente memorável, mesmo com todas as adversidades relatadas por alguns personagens, mas também evoca a importância do apartamento que encontram-se para fazer reuniões familiares e também do carinho que sentem por alguns objetos, devido as inúmeras vivências oriundas de lá, como uma lembrança ardente da própria tia Lúcia ao ver um móvel antigo.
Construindo então o passado de Clara e justificando seu apego pelo lugar – ou melhor, por suas memórias, pois foi lá também que ela criou seus três filhos – finalmente acompanhamos a rotina atual da protagonista, que mora sozinha mas há anos mantém o emprego e a amizade da diarista que considera parte da família. Cumplicidade que pode ser notada no ato da patroa lembrar de seu aniversário e comparecer à festa da humilde senhora – outro momento repleto de sensibilidade. Ex-jornalista e vivendo de sua aposentadoria, Clara segue uma rotina simples e tranquila como ir à praia pela manhã e ter longas conversas com um amigo salva-vidas (Irandhir Santos), passa a tarde ouvindo discos e lendo livros e à noite sai com as amigas para dançar. Ou recebe visitas dos seus filhos e sobrinhos, o que a satisfaz completamente.
É aí então que entra em cena a construtora Bonfim, que não à toa leva esse nome sugestivo por querer encerrar as atividades do exato edifício onde Clara reside, chamado de Aquarius. E mesmo recebendo gordas propostas da empresa para a venda do imóvel, ela não ver motivos (práticos ou financeiros) para se desafazer de um bem do qual tem tantas recordações. Por outro lado, é o jovem arquiteto Diego (Humberto Carrão), responsável pela construção do novo prédio que, em tese, será construído, que não consegue entender porque a mulher se recusa a aceitar o dinheiro e insiste em viver em um “prédio fantasma”, como diz a própria filha de Clara, Ana Paula (Maeve Jinkings) que também demonstra interesse pela venda. E provavelmente ele ou qualquer outro funcionário desse tipo de empresa, havidos pela “urbanização” ou querendo encher os bolsos de dinheiro, jamais compreenderiam a lógica seguida por alguém que naquele lugar e ao lado da família sobreviveu a um câncer e até hoje carrega marcas, como diz a canção de Taiguara, Hoje, muito bem empregada como tema do filme.
Esse debate é pungente nas mais variadas esferas, vide a revindicações de grupos como o Ocupe Estelita, que busca não só preservar a identidade visual e as memórias da cidade, como denunciar crimes absurdos por parte dos empresários e políticos por trás dessas construtoras, além de alertar para o caminho que estamos seguindo. Um argumento importante e necessário, de fato, no entanto em alguns andamentos isso parece ultrapassar o limite do conto em questão, perdendo às vezes um pouco da organicidade narrativa, já que é exigido mais tempo de tela, ou por exibir alguns diálogos deveras expositivos. Ainda que essa intenção seja justificada por tudo que cerca a cena artística de onde vem a fita. Tanto que o público em geral não deve notar esses pontos e podem até transformá-los como um recurso para o desenvolvimento de personagens.
É correto afirmar que a alma de Aquarius é Sônia Braga e por assim a sua Clara, pois basta o longa focar em suas experiências para o espectador embarcar por completo na trama novamente. Absolutamente crível do início ao fim, Braga confere grande dignidade e veracidade à personagem que interpreta. Consegue comover e chocar em tomadas mais íntimas e isoladas, como ser igualmente sensual e implacável em andamentos decisivos. Aliás, há um episódio envolvendo Clara e seus três filhos que denota não apenas as incríveis qualidades das atrizes Braga e Jinkings, mas também a habilidade de Kleber Mendonça como cineasta ao conceber cenas dramáticas poderosas com duas personagens aparentemente tão calmas. E é a junção de todos esses elementos que tornam este um filme bonito, importante e cinematograficamente interessantíssimo.