Parente é Serpente
Chegou ao fim ontem, domingo, 26 de agosto, a minissérie Objetos Cortantes – nova produção renomada da HBO. Num total de 8 episódios, a obra adapta para a TV o livro homônimo da autora Gillian Flynn – a mesma de Garota Exemplar (2014) – que novamente assina o roteiro da transposição ao audiovisual. Por trás das câmeras, além da escritora, temos a produção de Jason Blum e sua Blumhouse (expoente de sucesso no terror atual) e direção de Jean-Marc Vallée (cineasta indicado ao Oscar por Clube de Compras Dallas).
Objetos Cortantes | Primeiras Impressões da nova adaptação da autora de ‘Garota Exemplar’
Na frente das câmeras, o show é de Amy Adams. Indicada para cinco Oscar e ainda sem vitória, já surgem brincadeiras de que a atriz tentará agora na TV. No que depender unicamente de sua performance no programa, já se torna uma das favoritas. Mas Adams não está sozinha, e é servida pelo estupendo desempenho de Patricia Clarkson no papel de Adora, “vampiresca” mãe de sua personagem. E igualmente pela revelação da jovem Eliza Scanlen, que vive sua meia irmã, a dissimulada Amma.
Objetos Cortantes é um suspense. Um thriller misterioso que se encaixa no subgênero whodunit, no qual crimes são cometidos e somos apresentados a um leque de possibilidades, através de diversos personagens, para encontrar o culpado. Mas esta, no entanto, é apenas a fachada da obra. Objetos Cortantes é filosófico, psicológico e existencial, trabalhando sua problemática protagonista de forma tão intensa e pouco vista neste tipo de produção. Fala sobre nossa conexão com quem somos. Com o passado. Temos, por exemplo, a cidadezinha de Wind Gap, forte elemento para a caracterização da trama e de seus personagens. Ao ser mandada de volta para o local que havia jurado esquecer, a repórter Camille Preaker (Adams) vê ressurgir traumas antigos, os quais estão longe de cicatrizados. Justamente por isso ganhamos inúmeros flashbacks que se mesclam com o presente, confundindo não apenas a protagonista, mas os espectadores igualmente.
Objetos Cortantes fala sobre lidarmos com quem somos e acertar as contas com o passado. Camille busca solução para um mistério, enquanto seu próprio passado segue sem resposta, sem conclusão para ela. Fora isso, a obra fala sobre relacionamentos familiares conturbados – em especial o mais complexo de todos: a dinâmica mãe x filha. Como uma bola de neve, Adora, que havia sido maltratada pela mãe, exala hostilidade na direção da filha Camille. Não ajuda o fato da perda de Marian (Lulu Wilson), a caçula, e que a primogênita não seja exatamente uma filha exemplar. Com o nascimento da temporã Amma, a coisa só degringola e o excesso de zelo da matriarca anda na tênue linha do inapropriado.
Não deixe de assistir:
A minissérie, logo de cara, apresenta os personagens, o cenário e o mistério. Ao longo dos episódios, muitas vezes nos sentimos empacados. Este sentimento, no entanto, é apenas superficial. O que os realizadores conseguem, muito habilmente, embora à primeira vista pareçam não caminhar na investigação dos crimes, é cada vez mergulhar de forma mais profunda na psique da protagonista e nas interações apresentadas. Enquanto achamos que nada acontece, a série se certifica de nos mostrar a reação dos personagens a cada novo momento real – anteriormente não mostrado. Assim, observamos como bons investigadores, o relacionamento de Camille com o detetive Willis (Chris Messina), com a vizinha Jackie (Elizabeth Perkins), entre outros, e assim vamos construindo e aprendendo mais sobre quem de fato é esta mulher – que resulta numa das melhores personagens não apenas da carreira de Adams, mas levada ao protagonismo de um programa dos últimos tempos.
O ditado menos é mais se faz presente em cada frame de Objetos Cortantes, mostrando que esta é uma minissérie para os que gostam verdadeiramente da arte e da construção do suspense, em detrimento à gratuidade. A falta de propósito nos episódios intermediários, se mostra o propósito completo para a conclusão. A construção necessária para que entendamos o desfecho. É a panela de pressão prestes a explodir.
Outro ponto interessante a ser adereçado é a forma como as temáticas latentes do programa se interligam de maneira muito orgânica. Os dois problemas com os quais a protagonista precisa lidar, se mostram um só, elevados à potência máxima de insanidade, na qual temos o tapete puxado debaixo de nossos pés. A escalada rumo à revelação parecia sem a necessidade de uma conclusão esperada. Objetos Cortantes brinca com a expectativa do público, ao repetidas vezes ensaiar um desfecho apoteótico e aos poucos ir se retratando. Assim, demonstra que o construído, o esperado e o surpreendente não são tão dissonantes em sua proximidade.
SPOILERS
Dentre os traumas psicológicos abordados pelo programa, além da automutilação da protagonista – que serve como trocadilho para o título da série e sua característica mais marcante -, a obra aborda a síndrome de Münchausen por Procuração (a qual se refere ao abuso infantil provocado por pais ou parentes que propositalmente as mantém prisioneiros ou inventam qualquer enfermidade para tê-los sempre a seus cuidados – ou chamar atenção a si mesmos). A conclusão de onde este transtorno foi utilizado não é difícil de se imaginar, até para os que não assistiram a todos os episódios. Estes diagnósticos fazem de Objetos Cortantes um prato cheio para os psiquiatras.
Nos deixando ainda mais perturbados, mas de uma maneira única e muito positiva, a série, nos “acréscimos do segundo tempo”, resolve que ainda tinha mais a dizer, jogando nosso final feliz ralo abaixo. Mais do que isso, pede para que lidemos com o apresentado por nós mesmos, fora de cena e no escuro de nossos quartos. Quando a revelação final é encenada, o programa acaba e o último a sair que apague a luz. É aquela porta na cara após uma visita servida de bom papo, comida e bebida. Porém, de forma alguma traindo nossa percepção, nos fazendo repensar e recapitular nossos passos até ali, Objetos Cortantes é o inverso das respostas fáceis. É a mescla do chamado cinema de arte direto no aconchego de seu lar, em seu canal de programas preferido, exigindo um pouco mais de nós além de escapismo e puro entretenimento. O sentimento que fica é que devemos isso a uma produção que nos deu tanto em troca, como poucas fazem atualmente.