Passageiro 57
Vida longa ao grande Liam Neeson. Diferente dos heróis de ação das décadas de 1980 e 1990, vide Schwarzenegger e Stallone, o irlandês Liam Neeson nesta época fazia filmes sérios, vide Maridos e Esposas (1992), de Woody Allen, e A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg – sua única indicação ao Oscar. Não que atualmente o talentoso ator não trabalhe mais em tais circunstâncias – é só lembrar que Silêncio, de Martin Scorsese, foi lançado ano passado e concorreu ao Oscar. O que ocorre é que Neeson, aos 56 anos, se reinventou como protagonista de bons thrillers de ação.
É claro que estamos falando de Busca Implacável (Taken, 2008), primeiro filme da safra que serviu para dar uma guinada mais pop na carreira do ator, e para cimentá-lo junto ao público jovem, garantindo-lhe mais alguns dígitos em sua conta bancária. Afinal, é sempre melhor colocar um bom ator para fazer ação, do que um dublê para tentar atuar. Daí seguiram Esquadrão Classe A (2010), Desconhecido (2011), A Perseguição (2011), Sem Escalas (2014), Caçada Mortal (2014), Noite Sem Fim (2015), e as sequências bem abaixo do esperado de Busca Implacável (2012 e 2015).
Alguns dos melhores do lote (Desconhecido, Sem Escalas e Noite Sem Fim) são assinados pelo espanhol Jaume Collet-Serra, que quando não está dirigindo Neeson distribuindo seus sopapos, entrega alguns dos filmes de terror mais interessantes dos últimos anos: A Casa de Cera (2005), A Órfã (2009) e Águas Rasas (2016). Agora a dupla retorna em sua quarta colaboração, e novamente entregam um suspense Hitchcockiano, com doses suficientes de adrenalina, e talvez mais tintas de blockbuster do que qualquer outro em suas parcerias (o final aqui é verdadeiramente apoteótico).
Logo de começo, O Passageiro (The Commuter no título original) exala o melhor do cinema entretenimento através de pequenos detalhes, construindo uma introdução mais do que sólida. Satisfatoriamente, nos primeiros minutos, Serra define seus personagens principais, desenvolve sua rotina e características, deixa seus atores à vontade nos papeis (ainda resgata Elizabeth McGovern brevemente do ostracismo, no papel da esposa de Neeson) e brinca com a forma na montagem, característica de um grande diretor, que mesmo preso nas convenções de um gênero ousa com criatividade em detalhes. Aqui, a rotina da família de Neeson, desde a hora em que acordam, passando pelo café da manhã, até quando a esposa deixa o marido na estação de trem diariamente para ir ao trabalho, vira uma aula de edição , construindo a passagem de tempo, entre as estações do ano, por exemplo – trechos ensolarados se mesclam com neve caindo, e mudança nas paletas de cores da fotografia.
Mas é ao adentrar o trem que a vida do protagonista Michael MacCauley irá sofrer uma indigesta guinada. Depois de dez anos como um dos melhores vendedores de seguros em uma grande empresa, o protagonista é conduzido ao olho da rua – aqui é onde o longa faz sua critica ao sistema corporativo norte-americano. Sem coragem de revelar a verdade para a mulher, o sujeito, que é um ex-policial, vai ao bar e lá encontra o ex-parceiro na força (Patrick Wilson) e o antigo chefe (Sam Neill). Na volta para casa, uma estranha o aproxima (Vera Farmiga) e faz uma oferta irrecusável. Em troca de US$100 mil, ele deverá identificar alguém que não deveria estar no trem, e recuperar um item roubado com esta pessoa.
Assim começa uma fatídica viagem de trem, na qual todos são suspeitos, tudo pode acontecer, e na qual as reviravoltas são o prato do dia. Além da adrenalina, cenas de ação, sopapos e tiros, o que as parcerias de Liam Neeson e Jaume Collet-Serra reservam para o público é sempre um nível alto de suspense, beirando a excelência, que deixaria o mestre Alfred Hitchcock orgulhoso por seguir de perto os itens da cartilha estabelecida por ele em seus roteiros.
Apesar de suas inúmeras qualidades, seja no roteiro, atuações, clima e parte técnica, onde o talentoso Serra realmente pode se exibir, incluindo momentos de plano sequência, como lutas – e até no uso de efeitos visuais mesclados com a narrativa, O Passageiro não é a colaboração mais vibrante da dupla. O mistério não se sustenta até o fim como, digamos, o de Sem Escalas – este é tido como o Sem Escalas nos trilhos. E o roteiro não é tão bem elaborado quanto o de, digamos, Desconhecido, no qual tudo se encaixava perfeitamente, e no final o desejo era assistir a tudo outra vez. Aqui, sentimos que nem todas as peças se encaixam sem furos, e o desfecho apoteótico tira a veracidade mínima, na qual o projeto se mantinha ainda, com os dedos do pé encostando com esforço no chão.
Temos, por exemplo, um desastre do qual sair com vida é um milagre. Quando as primeiras autoridades chegam ao local, a palavra de ordem não é tentar descobrir sobreviventes ou ajudar, mas sim cercar como em uma cena de crime com reféns. Incoerências em pequenos detalhes, que nos tiram um pouco do filme, e que deveriam transitar por gêneros sem nunca mergulhar totalmente em apenas um. Ao final, O Passageiro se espelha mais nas continuações de Velozes e Furiosos do que em Duro de Matar – para quem entende a diferença abismal no teor destes filmes de ação. Nada que estrague por completo a experiência para quem quer apenas diversão despretensiosa. A verdade é que O Passageiro tinha a oportunidade e bastante material para se tornar um grande exemplar do gênero, mas termina apenas como mais um ponto positivo no currículo destes competentes artistas.
Ps. Como nota de curiosidade, aqui temos a reunião do casal Warren, da franquia de terror Invocação do Mal (Patrick Wilson e Vera Farmiga) – embora não dividam sequer uma cena, e o nome do personagem de Wilson é Alex Murphy, mesma identidade de um certo policial de Detroit que morre e vira robô.