O 48º Festival de Gramado continua surpreendendo com a escolha dos títulos na edição deste ano. E um dos mais aguardados de 2020 é o longa ‘Todos os Mortos’, exibido no horário nobre na noite de sábado.
Na trama, acompanhamos Ana (Carolina Bianchi), uma jovem que vive sem sair de um casarão em São Paulo e está extremamente abalada pela morte recente de Josefina (Alaíde Costa), uma ex-escravizada que ainda prestava serviços para sua família. Também a matriarca, Isabel (Thaia Perez), encontra-se completamente perdida sem Josefina, incapaz de conseguir fazer seu próprio café. Vendo que a irmã está prestes a enlouquecer, Maria (Clarissa Kiste) tem a ideia de voltar à fazenda da família e trazer de lá Iná (Mawusi Tulani), pois acha que, por Iná ser uma mulher negra e conhecida de Ana, saberá reproduzir rituais para satisfazer o imaginário da irmã.
‘Todos os Mortos’ era um dos filmes com relação ao qual se tinha muitas expectativas, afinal, é um filme de época, um drama situado na virada do século XIX para o XX em uma São Paulo à beira da modernidade. Aliás, esse espaço de tempo finissecular e todas os seus embates com o porvir é representado no longa em seus detalhes sensoriais: na poesia, através do personagem Eduardo (Thomas Aquino), que incorpora uma representação de Cruz e Sousa; na música e no som, contrastando as polcas com as melodias clássicas do piano, somatizados com os batuques dos tambores africanos; as marchinhas do carnaval de rua; o silêncio da clausura; e, por fim, os sons contemporâneos.
Aliás, a estética contemporânea que aparece ao fundo em ‘Todos os Mortos’ é uma ousada escolha dos diretores Marco Dutra e Caetano Godardo, que situam o filme no ano de 1899 (pós-escravidão e pós-independência) mas pincelam aqui e ali elementos da contemporaneidade (sons de skate, arranha-céus ao largo), transportando o universo do longa para os dias de hoje, mostrando que os comportamentos, as lutas, a realidade daquela virada de século não se afastou muito do que hoje estamos observando em nosso dia a dia. A audácia dos diretores, porém, talvez não agrade os espectadores menos ousados.
A dupla Marco Dutra e Caetano Godarno tinha em mãos um roteiro repleto de tramas através dos quais seu enredo buscava enveredar: seguindo pelo caminho mais evidente, há o claro embate do racismo estrutural, que reforça as organizações sociais que prevê a mulher negra numa posição serviçal; a branquitude, que entende-se como uma possibilidade de existência e que as práticas culturais dos outros povos podem ser utilizadas de acordo com seus próprios interesses; as muitas possibilidades religiosas, representadas aqui pelo trio de protagonistas Ana (espiritismo), a freira Maria (catolicismo) e Iná (religiões de matizes africanas).
É através dessa última vertente que ‘Todos os Mortos’, então um drama de época, acelera e acaba enveredando para uma pegada de thriller, culminando num final que nos remete a um famoso filme do gênero.
Com um título que dá a entender ser um filme de terror, ‘Todos os Mortos’ se mostra, ao revés, um importante filme que oferece um ponto de virada nas narrativas dos corpos negros no audiovisual brasileiro: uma narrativa em que esses personagens também têm direito à fala.