De modo analítico, é possível dizer que ‘O Fantasma da Ópera’ é um ensaio antropológico sobre dominação, submissão e romantismo dentro de um relacionamento inesperado. Publicado no início do século XX por Gaston Leroux, a obra gótica tem como ambientação a Ópera de Paris e traz em sua essência fatos verdadeiros que disseminaram a existência de uma criatura sobrenatural responsável pelo assombro dos artistas que se apresentavam no lugar supracitado.
É inegável dizer que tal epopeia romântica já foi relida em diversas adaptações, sendo a sua mais famosa para os palcos da Broadway, emergindo como um dos maiores sucessos da indústria artística dos últimos tempos. Entretanto, não podemos deixar de citar as várias recriações cinematográficas, as quais beberam em sua maior parte das características da ópera e brincaram com a própria montagem para tentar fornecer ao público uma versão digna da grandeza da obra original.
Uma dessas releituras ocorreu em meados da década de 1940 e, até hoje, é vista como uma das melhores. Não é por menos: apesar de seus claros deslizes, o longa-metragem traz uma perspectiva única para seus icônicos personagens e é completamente perscrutado por um trabalho técnico impecável, o qual marca o advento de novas tecnologias para as produções audiovisuais da época. O Fantasma da Ópera, embora seja, em termos de gênero, o mais fraco dentro do Universo Monstro, é também o seu mais ousado: afinal, como adaptar uma novela atemporal de forma coercitiva e satisfatória para um nicho específico de espectadores?
Não digo que a versão de 1943 seja a melhor; inclusive, aproveito para mencionar que o longa perde muito de sua identidade teatral ao fornecer uma visão mais intimista dos personagens, mas sucede no tocante à contraposição imagética. Em outras palavras, podemos ver claramente a dissonância entre planos e sequências de tensão: já nos primeiros minutos do filme, somos apresentados à monumentalidade do cenário. Os palcos da ópera são quase surrealistas e se sobrepõe à homogeneidade de seus personagens. Não conseguimos diferenciar exatamente as feições dos atores e atrizes, visto que eles são uma ínfima parte de algo muito maior – não apenas as construções barrocas que permeiam o teatro, e sim a essência da narrativa.
É depois de alguns minutos que começamos a diferenciar as personagens e sentir o endossamento de algumas relações. Claro, ainda não sabemos quem é quem, mas podemos deduzir quem fará parte das sequências principais à medida em que a câmera desliza pelo mezanino e até mesmo pelos camarotes e assentos mais privilegiados para demonstrar a relação de antítese e constante submissão dos “meros mortais” aos eventos sobrenaturais que acontecem performance após performance.
A história é conhecida: o amor platônico de um ex-violinista da orquestra parisiense esconde-se nos labirintos da ópera e cuida piedosamente de uma jovem cantora, pagando-lhe por aulas de cantos e obrigando os responsáveis pelas apresentações do teatro a colocá-la nos papéis principais por puro prazer e divertimento. O conceito de voyeurismo tem uma presença sutil, mas perceptível dentro da trama principal, e aqui podemos citar já o trabalho Claude Rains como o protagonista Erique Claudin. Sua reputação é uma extensão de sua personalidade macabra e soturna, rondando de forma sorrateira pelos corredores adornados da ópera e colocando em prática seus planos derradeiros. A priori, conseguimos traçar um paralelo entre este personagem e os outros pertencentes ao universo monstruoso; entretanto, essa semelhança permanece nos estágios iniciais ao passo que aprendemos mais sobre sua história e sua vivência, e como tudo culminou para uma virada catártica e irreversível dentro de sua inerência moral.
Erique é apaixonado por Christine (encarnada pela incrível Susanna Foster), uma “donzela em perigo” delineada com traços de aventura. É possível perceber, ainda que de forma muito ofuscada pela subtrama romântica que se apossa dos dois, que ela deseja algo a mais dos palcos e acaba encontrando sua “ruína e salvação” em uma constante expansão artística que ocorre quando é raptada. A diferença de composição entre os dois mundos cria um microcosmos fantástico, permeado com uma troca brusca e interessante da paleta de cores; enquanto Erique vive nas sombras e causa estranhamento dentro de um lugar iluminado e vívido, Christine mergulha nessa obscuridade e passa a fazer parte da vida marcada por traumas de seu sequestrador – e futuro “pretendente”.
O constante embate entre “bem x mal” é, de certa forma, transgredido ao colocar em cheques valores inerentes à personalidade das personagens. Os maiores conflitos se dão entre Erique e duas outras criações – o inspetor Raoul Dubert (Edgar Barrier) e o barítono Anatole Garron (Nelson Eddy), os quais desejam conquistar o coração de Christine a qualquer custo, ainda que ela não se sinta confortável sendo disputada pelos dois homens. A trama gradativamente perde seus ares de terror e ganha um tom de suspense com a ocorrência das ameaças e concretizações de assassinatos feitas pelo Fantasma, como se a predileção pelo impalpável ganhasse mais força; é prazeroso ver as cenas de perseguição entre os supostos mocinhos e antagonista, e logo perceber que “as aparências enganam”. Mas constantemente somos levados a nos perguntar o motivo do protagonista em ajudar seu “par romântico”, bem como que possível relação os dois poderiam ter – e é aqui que o roteiro assinado por Eric Taylor e Samuel Hoffenstein descarrilha.
A direção de Arthur Lubin harmoniza com o tom da obra e opta pelos plongées e contra-plongées para brincar com a ideia de superioridade do teatro (com toda sua magnificência e seu poder) e a mortalidade de seus residentes – incluindo o próprio fantasma. A ópera é uma metáfora arquitetada dos conflitos que várias vezes enterram a pacificidade do meio artístico, e sua ruína é finalmente encontrada nos segundos finais. Entretanto, até que o arco se desenrole para o clímax do terceiro ato, passamos por algumas falhas narrativas que incluem a origem dos laços entre Erique e Christine e os motivos que o levam a repudiar os outros cantores e elevá-la a um patamar inalcançável. Tudo se restringe ao agora e ao momentâneo, sem sequer fazer menção a uma possível backstory que honre a importância de tais personagens para a cultura contemporânea.
‘O Fantasma da Ópera’ talvez seja um dos poucos filmes que não tenha tido uma versão cinematográfica apaixonadamente digna de seu material de origem. A perspectiva de Lubin, ainda que com seus ápices de beleza identitária e um elenco invejável, afasta a obra dos filmes predecessores, transformando-o em uma peça sobressalente. O longa é agradável sim, principalmente no tocante ao design de produção; mas ainda falta alguma coisa – e esperamos que ela seja encontrada logo.