No último sábado, dia 7 de agosto foi comemorado o Dia Nacional do Documentário Brasileiro, esse gênero cinematográfico que ganha cada vez mais força e adeptos com a chegada dos streamings nos últimos anos trazendo uma enorme seleção de qualidade para listas de cinéfilos e cinéfilas pelo Brasil, além de Festivais brasileiros maravilhosos voltados para documentários como o É Tudo Verdade.
Fugindo um pouco da obviedade de grandes clássicos do universo dos documentários brasileiros, como a filmografia maravilhosa do inesquecível Eduardo Coutinho, resolvemos criar uma lista com 10 documentários brasileiros feitos nos últimos anos que de alguma forma ganharam certo destaque, alguns até mesmo no circuito independente de exibição.
Paraíso
As canções, as almas e os corações que sempre se deixam emocionar. Após quatro décadas fora do Brasil, o cineasta Sérgio Tréfaut resolve buscar por suas memórias primárias até onde lembra de estar no seu país através de um grupo de pessoas, em sua grande maioria na feliz idade, que se reúnem nos jardins de um ponto turístico carioca para uma seresta semanal. No karaokê popular da alegria instaurado, que acontece faz muito tempo, ouvimos grandes clássicos de diversas gerações, de Alceu e Elba até Wando, De Lupicínio Rodrigues à Moska, Caetano. Entre outros. Filmado nos jardins do palácio do catete, pouco antes da pandemia, o filme apresenta um reflexivo desfecho que se conecta com o momento atual do mundo, particularmente do Brasil e alguns desses frequentadores.
Em menos de 90 minutos, o documentário busca resgatar memórias dos personagens que aparecem mas também do cineasta. A solidão acaba sendo uma testemunha ocular desse ‘Paraíso’ que remete ao título, aparece quando estão sozinhos, ou em memórias nos depoimentos, mesmo isso sendo feito sem muita profundidade, entre uma canção e outra a mensagem chega em nossos corações. O bom humor e a descontração navegam no contraponto da constatação do estar sozinho.
A História de um Silva
A música como sentido para a sociedade. Hino de uma cidade, hino da periferia, um subtexto que é compatível com a realidade que enfrentava. Dirigido por Marcelo Gularte, A História de um Silva é a história de um brasileiro, trabalhador, grande herói de sua mãe e família, que possui grande paixão pelo futebol, inclusive quase foi atleta profissional que tocava a MPB dos anos dourados nos barzinhos pela cidade até que descobriu um gênero musical que estava dando os primeiros passos. MC Bob Rum, cria da Comunidade João XXIII em Santa Cruz Foi Office Boy, trabalhou muito tempo na Telerj, de Recepcionista, viu sua vida mudar do dia para a noite quando seu destino cruzou com os primórdios do Funk.
Os lados bons e ruins da fama acabaram deixando exatamente nos extremos esses momentos em sua vida. Se encaminhou para o alcoolismo, para as drogas em seguida, quando sua carreira de alguma forma estagnou ou até mesmo declinou. Mas ele, com a ajuda da forte família, conseguiu dar a volta por cima, se formando em administração inclusive e compondo música que foi até tema de novela. A História de um Silva é um recorte de mais um batalhador brasileiro que conseguiu vencer de maneira honesta com sua arte.
Antes que Me Esqueçam, Meu Nome É Edy Star
A vida é uma vela acesa, morreu, apagou. Como resgatar as memórias de um artista tão profundo em sua arte? Cantor, ator, pintor, se dedicava as artes como poucos, Edy Star foi quase uma lenda entre as décadas de 60 e 80, sempre muito à frente de seu tempo. Dirigido por Fernando Morais, Antes que Me Esqueçam, Meu Nome É Edy Star conta a incrível trajetória do Pós tropicalista e grande contador de história Edy Star, inclusive, a amizade com Caetano Veloso desde Santo Amaro, Zeca Baleiro com gravações atuais no estúdio, com o maluco beleza Raul Seixas desde o álbum Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, até mesmo com Gilberto Gil onde ganhou uma música e foi co-compositor da canção Procissão. Edy marcou época dentro do universo das performances, em shows undergrounds que ganhavam sucesso pelo boca a boca saindo da Praça Mauá até os milionários da zona sul.
Antes que Me Esqueçam, Meu Nome É Edy Star é divertido e surpreendente, conhecemos essa figuraça, que cantava muito e levava multidões a seus shows mas que para o grande público nunca foi conhecido. Mas após assistirmos a esse, agora sabemos! Antes dos Dzi Croquettes, Ney Matogrosso, Secos e Molhados, existia Edy Star.
O Sal da Terra
Cada um molda sua forma de ver o mundo de acordo com tudo que já viveu. O documentário que abriu o Festival do RJ do ano de 2014, é uma junção entre cinema e fotografia, algo único para todos os amantes de qualquer arte. O Sal da Terra, título maravilhoso diga-se de passagem, conta a história de um brasileiro com um olhar único sobre o mundo que estudou e vive. Dirigido por Juliano Salgado (filho do protagonista) e pelo genial cineasta Wim Wenders, o documentário ganhou milhares de fãs mundo à fora e definitivamente trouxe à luz o nome do espetacular ser humano que é Sebastião Salgado.
O Sal da Terra tudo mais é que a história do mundo por um brasileiro que conheceu o mundo. Cada depoimento tem um clima de emoção que transporta para as cadeiras dos sortudos que puderem conferir esse trabalho no cinema. Emocionante também é a narração e depoimento de Wim Wenders, que muitas vezes se rende em falas emocionadas ao grande protagonista desse seu novo filme. Na conclusão, podemos cravar com toda nossa emoção que viver é descobrir pessoas, afinal: as pessoas são o sal da terra! Bravo!
O Astronauta Tupy
Cada ser tem sonhos à sua maneira. Um ser solo que esbarra com os coletivos. Cronista do seu tempo. Tijucano. Observador da cidade que nasceu, suas belezas e as diversas questões que assolam seu Rio principalmente a polarização das ideias que nesses tempos presente comandam o modo de pensar da maioria dos cariocas. Dirigido por Pedro Bronz, o documentário O Astronauta Tupy conta de maneira leve e agradável, através de arte de Pedro Luís, suas escolhas, momentos, seu mosaico de ritmos, através de relatos do mesmo, amigos, vídeos de gravações e de depoimentos de outras épocas. Do Humaitá à Lapa, Da Zona Norte à Zona Sul, somos testemunhas em poucos mais de 90 minutos de como esse músico alimenta seu coração louco como uma máquina de escrever.
Amigos de longa data lembram de momentos, canções de um passado que é mantido vivo pela arte. As parcerias com Fernanda Abreu, Ney Matogrosso e até mesmo o tremendão Erasmo Carlos, outro tijucano musical, geram ótimos duetos acústicos modelados em fragmentos de canções atemporais na sua voz ou/e na voz dos outros, tendo o Rio de Janeiro como paisagem.
Cássia
Os discos jogados num quarto repleto de quadros e violões, ah… e aquele allstar azul ao lado do de cano alto. Como um furacão de emoções, dramas e muita verdade, emociona a todos esse espetacular documentário, Cássia. Dirigido pelo excelente diretor Paulo Henrique Fontenelle, que a cada novo projeto vem brindando os cinéfilos com trabalhos fabulosos (como foi em Dossiê Jango), tentamos decifrar os segredos e a timidez de uma artista que marcou seu nome na história não só pela música mas nas conquistas importantes que conquistou, também quando se foi. O filme é pura emoção e bate aquela vontade de bater palmas de pé quando já emocionados vemos as letrinhas dos créditos subirem.
De Nirvana à Piaf. De Buarque ao blues. Um alcance vocal único. Um ícone da música brasileira. Música é uma coisa bela que toca lá dentro. E não temos dúvidas de que Cássia cumpriu seu objetivo, tocou profundamente e se tornou inesquecível em nossos corações.
Rumo
O que é a palavra dentro da canção? No início da década de 80, a ditadura emergia e as produções musicais em SP, origem do grupo que vamos conhecer ou redescobrir nesse documentário, se encontravam nos porões do teatro Lira Paulistana. Com Músicas declamadas, Poesias sociais, reflexivas, sobre a vida e momentos de muitas estradas, o grupo Rumo começava a surgir. Por meio de depoimentos dos integrantes, as histórias, as ideias, o início, vamos conhecendo melhor esses sonhadores, quase teóricos, da música brasileira. Interessante documentário dirigido pela dupla de cineastas Flavio Frederico e Mariana Pamplona.
O início do grupo é bem explicado, com divertidos depoimentos de seus integrantes, quase todos vivos até hoje. De peculiar, um exemplo são os debates sobre as canções, após inesquecíveis shows na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), no início da carreira. De vez em quando buscavam simetrias em canções de outros, como em uma música de Noel Rosa inclusive. Esse documentário é quase um grande aulão sobre o cenário da música brasileira em décadas passadas e mais profundamente de maneira simples e explicativa navegamos pelos fundamentos da linguagem da música popular, até da arte teatral, aliada a um humor que fazia um elo com os sambas dos anos 30.
Raul – O Início, o Fim e o Meio
Em uma época onde o rock era a música que afirmava um poder fictício aos jovens, surgia no cenário mundial aquele que virou uma lenda, Raul Seixas. Dirigido pelo competente Wálter Carvalho, Raul: O Começo, o Fim, o Meio, é um documentário divertido e emocionante que narra a trajetória do eterno maluco beleza da música popular brasileira.
Nesse ótimo documentário fazemos uma viagem na vida profissional e pessoal de Raul. A influência de Elvis Presley, o primeiro grupo (Raulzito e seus Panteras), o disco da virada na carreira (o álbum que tem o clássico “Sociedade Alternativa”), os muitos relacionamentos e depoimentos emocionados preenchem parte das lacunas deixadas pelo ídolo de uma multidão.
Todas as Melodias
Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí…selecionado para a Mostra de Tiradentes 2021, o documentário Todas as Melodias traça um pequeno recorte sobre a vida e algumas das canções de um dos maiores poetas musicais brasileiro, Luiz Melodia. Com roteiro e direção assinado pelo cineasta Marco Abujamra, o projeto, em apenas 90 minutos de projeção, consegue passar muitas emoções, algumas curiosidades e muitas certezas do talento desse artista criado no morro do Estácio que infelizmente faleceu no ano de 2017.
Todas as Melodias é para os fãs e também para quem gosta de um bom e objetivo documentário para aprender mais sobre um alguém tão especial. Quando o amor ‘tá quase mudo’, sua voz nunca deixou de mostrar estar viva.
Currais
O silêncio apaga tudo. Um homem, sua Kombi e suas buscas por respostas da história de seu avô, a reconstrução da memória de uma região, por quem ainda se lembra dessa época terrível, fatos que parte da elite se esforça em ocultar. As margens de uma estrada de ferro e no alto do sertão morriam centenas de pessoas nos chamados campos de concentração (os currais do governo), lugares criados no início da década de 30, sob conhecimento do governo federal, onde flagelados da seca eram tratados com indiferença e discriminação pela elite que já morava na cidade de Fortaleza. Escrito e dirigido pela dupla de cineastas David Aguiar e Sabina Colares, modelado em uma mistura entre documentário e ficção, Currais apresenta relatos impactantes, impressionantes, surpreendentes, além de fotos antigas mostrando o que as palavras dizem ao longo dos cerca de 90 minutos de projeção.
Depois que você assiste a esse documentário, é muito difícil de tirá-lo da memória. Pensar que uma cidade se ergueu sob suor e sangue é assustador. Nosso país é enorme. Tantas histórias…e muitas delas desoladoras, tristes. Como um ser humano pode fazer isso com outro ser humano? Um capitalismo desenfreado, um elitismo esnobe e arrogante, entendemos o reflexo dessas atitudes até os tempos atuais se formos comparar com a questão social das favelas, pessoas que vivem à margem de uma sociedade privilegiada. O filme abre espaço também para mostrar a religião ganhando contornos culturais através dos devotos das almas da barragem. Um documentário/ficção arrebatador que diz muito sobre a história de nosso país.