Se você ouviu falar do filme ‘365 Dias’, que chegou há poucos dias na Netflix, então já está sabendo do debate em torno do longa, sobre ele ser uma apologia à romantização do sequestro, do abuso sexual, da síndrome de Estocolmo, etc. Maaaas, e se utilizássemos esse filme como material para refletir justamente como as mulheres não devem agir diante de um predador sexual? Quer dizer, tá tudo ali, ilustradinho no filme, por isso vamos analisar aqui ponto a ponto, didaticamente, para ajudar a ilustrar caso alguma dessas situações ocorra contigo na vida real – e elas acontecem mesmo! E se você não viu nenhum problema no filme, seguem aqui os spoilers para você repensar:
1 – Namorado que não dá atenção
Martin (Mateusz Lasowski) é o namorado de Laura (Anna Maria Sieklucka) e, já na sua primeira cena, aparece sentado no sofá fazendo nada – mas, é só Laura chegar do trabalho e querer um pouco de atenção que ele já se faz de ocupado. Alerta: amiga, se qualquer coisa para ele é mais interessante que te dar atenção (sexual ou afetiva), então, esse cara não vai te fazer feliz nunca, pois você nunca será prioridade pra ele. Pule fora.
2 – Namorado que não te conhece
Partimos do princípio de que Martin e Laura estão juntos há algum tempo – e, mesmo assim, a impressão que se tem é que ele nem a conhece, ou, do contrário, não inventaria um jantar de aniversário no qual ele se levanta para cantar parabéns em público, constrangendo-a. Se a conhecesse minimamente, saberia que ela não gosta desse tipo de pagação de mico. Então, amiga, se o seu crush faz esse tipo de coisa e você não gosta, é porque ele não está pensando em te agradar, mas sim em fazer o que ele acha que é bom.
3 – Namorado que simplesmente não liga para você
Ainda sobre o Martin, a cena seguinte mostra Laura na piscina com a amiga, e Martin chega todo animado contando que acaba de voltar de uma aventura incrível, que fez uma trilha a pé incrível num monte incrível blablabla. E Laura fica injuriada porque ele foi fazer exatamente o passeio que os dois haviam combinado de ir no dia seguinte. Amiga, o cara que simplesmente não considera os planos que vocês fazem juntos e que não vê problema em fazê-los antes com seus próprios amigos mesmo tendo combinado de fazer essas coisas contigo, bom, esse cara simplesmente não liga para você. Não liga para você hoje nem nunca vai ligar. Pula fora.
4 – O cara que te sequestra por amor
Se alguém, QUALQUER PESSOA, te levar para qualquer lugar contra a sua vontade, isso se configura um sequestro. Não importa que ele – no caso, Massimo (Michele Morrone) – diga que sonhou contigo, que há cinco anos está te procurando, que vocês nasceram um pro outro e que ele é seu príncipe encantado escrito nas estrelas. Não importa! Se ele te levou CONTRA A SUA VONTADE ainda assim é um sequestro, não importa quem seja ou qual argumento use. Vá embora.
5 – O stalker que sonhou contigo
No início do filme Massimo está numa praia deserta quando leva um tiro e meio que vê (ou alucina?) a figura de Laura. A partir daí ele cisma com essa mulher e passa a procurá-la em todos os lugares, porque acredita que o destino dos dois é ficar junto. Amiga, se alguém vier com esse papinho para você, já aciona a polícia. Não é normal que alguém tenha te visto uma vez e mova o mundo para te encontrar. Não importa se você é famosa ou anônima: se alguém te perseguir, pela razão que for, já registra a queixa na polícia, e, se for o caso, peça uma medida restritiva.
6 – O sequestrador benfeitor
Massimo coloca Laura em um belo quarto, em uma bela casa, com tudo do bom e do melhor – e, ao mesmo tempo, a deixa sem comunicação com o mundo externo, privando-a do seu celular e laptop. Massimo manda seu funcionário buscar as coisas de Laura em seu hotel e diz que qualquer coisa que ela precise, que peça a seu funcionário. Massimo também a leva de compras nas melhores lojas e compra tudo que ela deseja. Amiga, não! Não importa que ele te encha de ouro e diamantes: ele ainda é seu sequestrador e só está tentando te amansar com presentes. É isso que os predadores fazem: descobrem o ponto fraco de suas vítimas e as manipulam por aí. Se você, como qualquer outra mulher normal do mundo, não tem dinheiro para comprar vestidos de marca e bolsa de grife, tá tudo bem! O que não tá bem é se deixar levar por uma situação de cativeiro e controle tão somente porque o seu malfeitor está disfarçado de benfeitor e fica te oferecendo exatamente o que você precisa.
7 – O sequestrador liberal
Massimo “deixa” Laura à vontade. Ela pode ir a qualquer lugar da casa, falar com todas as pessoas e, em determinado ponto do filme ele até lhe entrega novamente o celular e o laptop. Ele ainda a leva consigo para reuniões, festas, bailes e para bater perna pelas lojas de rua da Sicília. Amiga, não confunda: isso não é liberdade. Se Laura tem a “aparente liberdade” de ir para os lugares desde que esses lugares sejam aprovados por Massimo ou na companhia de Massimo, isso não é liberdade, é controle. Até mesmo quando ela vai a Varsóvia (sua cidade natal), ela só vai porque ele a mandou ir – e, ainda por cima, mandou-a ficar no apartamento. Ainda que Laura tenha saído com sua amiga para dançar, Massimo a aguardava no apartamento, taciturno, exercendo o controle sobre a hora e o estado em que ela chegou de volta. Novamente: amiga, isso não é liberdade, é controle. É imprescindível que em qualquer relacionamento haja autonomia e limites, então, não permita que ninguém tire de você nenhum desses dois elementos ok?
8 – Controle da roupa
Massimo está na loja de roupas com Laura e sinaliza para ela que não gostou de tal roupa porque está bem demais nela. Em outra cena, Massimo pergunta raivosamente o que Laura está vestindo, pois ela não deveria se vestir assim. Até mesmo o ajudante de Massimo a julga ao vê-la com um vestido dourado, dizendo-lhe que Massimo iria matá-los ao vê-la vestida assim. Tem até um personagem que a chama de prostituta por causa da roupa e da forma como estava dançando. Amiga, homem nenhum pode te dizer o que vestir, combinado? Você veste o que te dá na telha, e nada que lhe acontece na vida tem a ver com a forma com que você se veste.
9 – Normalização do sequestro
Depois de um tempão desaparecida, Laura reaparece para a família e para a melhor amiga. Mesmo em posse de seu celular e de seu laptop, Laura não mandou sequer um alô para seus conhecidos, e, quando reaparece, conta uma história mirabolante de como conheceu um príncipe mafioso maravilhoso que a manteve em cativeiro mas, nossa, como ele é bom de cama e tem dinheiro! Amiga, não! Não dá para você desaparecer por pelo menos dois meses, no meio de uma viagem entre amigos, reaparecer do nada e achar que tá tudo bem, porque afinal você foi sequestrada mas se apaixonou pelo sequestrador. E a amiga e a família deixam isso de lado, afinal, tudo bem a mulher desaparecer por dois meses sem dar notícias e voltar com essa explicação. Não gente, não tá tudo bem. Tem que pegar a Laura, levar num corpo e delito, marcar consulta com psicólogo, mudar de endereço, de telefone, etc.
10 – Namorado mafioso
O grande barato da ficção é a capacidade de nos fazer sonhar e imaginar, e isso realmente é muito legal. Mas, na vida real, é diferente. Então, por mais que Laura diga que caramba, que excitante ter um namorado mafioso italiano boa-pinta, cujos negócios obscuros ela não pode nem sequer saber do que se tratam (ou, do contrário, coloca sua vida em risco), na vida real não tem nada de bacana correr atrás de gente perigosa para se relacionar, beleza? Só na ficção mesmo.
11 – O namorado arrependido que “vai mudar”
Lá pelas tantas, Martin reaparece na boite em Varsóvia e diz para Laura que está arrependido da forma como agiu com ela e que vai mudar. Martin até mesmo dormiu com outra mulher tão logo Laura desapareceu (ainda que no filme não fique claro se essa situação foi manipulada por Massimo ou não). Amiga, acredite: ele não vai mudar. O cara que não te dá atenção, que se coloca sempre em primeiro lugar, que não se importa se você vai gostar do que ele faz ou não, que não respeita os planos que vocês fazem juntos, que só age de acordo com a própria vontade, que te trai… não, ele não vai mudar! Faça sua fila andar.
12 – Brincando com o perigo
Massimo desde o início mantém o discursinho de que irá fazer com que Laura se apaixone por ele, mas Laura resiste. E que só vai tocar nela quando ela assim o permitir. Resguardando-se disso, Laura passa a provocá-lo em todas as oportunidades possíveis, tocando em Massimo, tomando banho com ele, etc. Essas atitudes são bem perigosas, afinal, não dá para confiar na palavra de um manipulador, né, amiga? Então, por mais que o sequestrador bonitão diga que não vai fazer nada contigo, que não vai te machucar e só vai tocar em você quando você deixar, não confie. Use isso como ferramenta para deixá-lo afastado de si e fuja o quanto antes dessa situação.
13 – O salvador e o sentimento de dívida
Num aleatório passeio de barco, ela cai no mar e ele a salva de se afogar. Daí DO NADA Laura se sente profundamente grata ao seu salvador por ter-lhe salvado a vida e resolve que a partir daí seu sentimento com relação ao sequestrador mudou, e que está pronta para se entregar a ele. NÃO! Não é porque o cara te salvou a vida que você tem que se sentir automaticamente em dívida com relação a ele (e isso vale pra todo mundo!). Quanto mais achar que essa suposta dívida deve ser paga com sexo. Amiga, não. Não é porque o seu sequestrador te salvou a vida em uma outra situação que automaticamente ele se tornou bonzinho. Ele ainda é seu sequestrador, que está controlando e manipulando a sua vida de outras maneiras.
14 – O deus do sexo
Gente, para. Massimo pode ser o deus do sexo que for, realizar todas as suas fantasias sexuais mais ocultas e ter um membro viril capaz de satisfazer metade do planeta. Não importa: ele ainda é o cara que controla e manipula Laura, que a sequestrou e está abusando emocionalmente dela. Então, amiga, se o cara abusa de você de qualquer forma, mesmo que ele seja o deus do sexo, pule fora.
15 – O macho-alfa
Desde que os romances hot surgiram com mais força na última década, o termo macho-alfa tem circulado bastante entre as literaturas e filmes do gênero, fazendo referência à própria Natureza dos animais, liderados por machos-alfas que controlam o grupo e, mais especificamente, controlam as fêmeas desse grupo, apossando-se delas a seu bel prazer. Embora literariamente isso seja beeem picante de ler, na vida real não deve ser assim não, beleza? Se Massimo banca o macho-alfa, subjugando as mulheres a seu prazer até mesmo sem se importar com elas, colocando-as sempre em posição de submissão e pensando meramente em sua própria satisfação (inclusive sem se importar com relacionamentos, fidelidade ou proteção sexual), amiga, pula fora, que na vida real isso não é legal meeeeesmo. Só é atraente na ficção.
16 – A romantização da síndrome de Estocolmo
Síndrome de Estocolmo é um estado psicológico que ocorre em vítimas de qualquer tipo de intimidação (sequestro, abuso moral, violência física etc), que, em vez de gerar repulsa pelos seus abusadores, acaba criando afeto, amizade e até amor por eles. A relação de Massimo e Laura é exatamente assim – e daí o debate que tem havido nas redes sociais por conta do filme. Vale lembrar que estamos falando de um produto de ficção que, dada a liberdade poética e literária, construiu uma história recriando o conto de ‘A Bela e a Fera’ com um tom mais real, sórdido e sensual. Fica o alerta, amiga, de que se trata de ficção, e que, portanto, comportamentos assim na vida real devem ser acompanhados criteriosamente por uma equipe de psicólogos e psiquiatras.
Por fim, ‘365 Dias’ é um filme, e, por ser ficção, é interessante vê-lo como artifício de crítica à sociedade, utilizá-lo como ferramenta de alerta a mulheres do mundo inteiro. Aqui no Brasil a Lei Maria da Penha garante a proteção às mulheres que sofrem ou sofreram qualquer tipo de violência, bem como a Delegacia da Mulher, e, durante a pandemia do coronavírus, qualquer denúncia de violência à mulher pode ser realizada pela internet através do registro de ocorrência na Delegacia Online do site Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp).