terça-feira , 17 dezembro , 2024

37ª Mostra de Cinema de São Paulo: Cabra Marcado Para Morrer

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REAL E COMPLEXO OU SERÁ QUE O COUTINHO IRIA GOSTAR DESTA RESENHA?

Uma das mais justas homenagens desta 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi a de Eduardo Coutinho. A retrospectiva completa de sua obra (inclusive trabalhos de ficção) foi um reconhecimento daquele que é, sem sombra de dúvidas, o maior documentarias brasileiro vivo. Costumo ser cauteloso com esses exageros, mas o caso permite. As honras contaram também com debates e lançamento de livro pela Cosac Naify (com um de seus trabalhos gráficos mais interessantes que já fez para o cinema).

Coutinho teve muitas fases em sua carreira. Entre curtas e longas, dirigiu documentários como Edifício Master, Peões e Jogo de Cena. Sua obra-prima continua a ser Cabra Marcado Para Morrer.



Nos anos 1960, Coutinho se envolveu com o Centro Popular de Cultura – CPC da União Nacional dos Estudantes – UNE para realizar filmes com comunidades do interior. Nessas viagens, conheceu a história de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa da Paraíba que fora assassinado por latifundiário da região, em 1962. O movimento dos colonos lutava pela desapropriação do Engenho da Galiléia e de Sapé, causa da qual saiu vitorioso.

Ao tomar conhecimento do crime, Coutinho decidiu, no começo de 1964, realizar um filme de ficção contando a história de João Pedro. Se chamaria Cabra Marcado Para Morrer. Os próprios colonos atuaram nas gravações e a esposa de João Pedro, Elizabeth Teixeira, fez seu próprio papel. As gravações foram abortadas em pouco tempo em razão do golpe militar de 1964. Os militares apreenderam o material, restando apenas algumas fotos e alguns minutos de filmagem, alegando tratar-se de material de propagando comunista (divulgaram na época, que a equipe era cubana!…).

Em 1981, Coutinho retoma Cabra Marcado Para Morrer como um documentário.  Em um cruzamento costura entre ficção e realidades, o agora documentarista, procura cada um dos colonos que participaram das filmagens originais. Além de exibir para eles os trechos que se salvaram do filme, Coutinho faz entrevistas procurando entender a importância para eles de atuar em um obra ficcional, suas visões sobre o assassinato de João Pedro, como estão suas vidas hoje e o quanto o contexto político cultural brasileiros no período de 17 anos (1964 a 1981) pesou em suas vidas.

Com um jogo de ficção e realidade, e sua intenção de compreender o destino de cada um daqueles trabalhadores, da família de João Pedro e dos Engenhos de Galiléia e de Sapé, Coutinho conseguiu, com ou sem intenção, criar uma documentário de muitas camadas que, tanto pelo o que expõem quanto pelo o que deixa de fora, consegue transmitir a complexidade da sociedade brasileira do período – além de gerar reflexões sobre o Brasil de hoje.

Falei acima “tanto pelo o que expõem quanto pelo o que deixa de fora” porque Coutinho faz em Cabra Marcado Para… uma clara opção pelo ponto de vista dos colonos (opção bastante natural, considerando o período de ditadura). Em outras palavras, em alguma medida, o filme é uma leitura pela esquerda dos acontecimentos desse período de 17 anos. De forma nenhuma é um defeito do filme. É apenas a perspectiva escolhida pelo diretor. Faço questão de ressalto esse pormenor, primeiro porque muitos têm a ideia de que documentários são retratos realistas da vida. NÃO! Documentários são pontos de vista de uma realidade. Segundo, para dizer que essa escolho em nenhum instante faz o filme cair no proselitismo. Coutinho é muito competente para isso.

Assim, pouco importa sua orientação política ou ideológica, ou seu completo desinteresse por política. Cabra Marcado… detém muitas camadas, permitindo que o espectador descubra uma nuance específica do Brasil do período – e mesmo de hoje. Alguns momentos deixam bem clara essa complexidade.

A maioria dos entrevistados – e o documentário como um todo – é um elogio ao movimento camponês. No entanto, um dos trabalhadores rurais entrevistados fala contra esses movimentos. É um depoimento breve, mas que abre uma fresta permitindo uma, digamos, dialética em seu interior. Seriam os métodos usados por João Pedro os melhores? Será que a grandeza de sua luta compensou sua morte brutal? Para esta pergunta, dois outros elementos são importantes.

Durante o filme, as declarações de Elizabeth Teixeira, esposa de João Pedro, trabalham em dois registros: a defesa da luta no campo (especialmente na parte final) e a tristeza pela distância dos filhos.

A simplicidade com que ela fala sobre a luta no campo é contrastante com os discursos dos líderes dos movimentos sociais de hoje (de MST ao Passe Livre). Nota-se nas palavras de Elizabeth Teixeira uma inocência, uma saudável “despolitização”. Hoje, alguns historiadores levantam a hipótese do governo Jango teria tentado um golpe vermelho no Brasil. Fato ou ficção, o documentário deixa claro que o governo estimulou a sindicalização dos trabalhadores e a formação de grupos como o de João Pedro. A pergunta que pode surgir: será que os anseios de Elizabeth Teixeira, explicitados especialmente no final do filme, eram os mesmos dos dirigentes do Brasil (pré e pós 1964)? Possivelmente, a resposta esteja no próprio filme, quando um de seu filho, já em 1981, fala que nenhum – NENHUM – político no Brasil olhou para os pobres!

Há uma tristeza em Elizabeth Teixeira por ter sido obrigada pela perseguição dos militares a se afastar de muitos de seus filhos. Boa parte do filme é dedicada à busca de Coutinho pelos filhos dela. Ao expor o rumo que cada membro dessa família tomou, o filme acaba chamando atenção para algo profundamente triste e revelador: o quanto os fatos/fardos históricos podem pesar na vida das pessoas, especialmente quando falamos de um Estado que decide tratar seu povo como gado. E não falo apenas dos milicos.

Mesmo sem ser intenção do diretor, é possível ler o documentário, do começo ao fim, como uma narração de como processos históricos impessoais/desumanos e coletivistas podem triturar a vida das pessoas.

Independente de sua filiação ideológica confie, o Cabra… é complexo!

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Uma das mais justas homenagens desta 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi a de Eduardo Coutinho. A retrospectiva completa de sua obra (inclusive trabalhos de ficção) foi um reconhecimento daquele que é, sem sombra de dúvidas, o maior documentarias brasileiro vivo. Costumo ser cauteloso com esses exageros, mas o caso permite. As honras contaram também com debates e lançamento de livro pela Cosac Naify (com um de seus trabalhos gráficos mais interessantes que já fez para o cinema).

Coutinho teve muitas fases em sua carreira. Entre curtas e longas, dirigiu documentários como Edifício Master, Peões e Jogo de Cena. Sua obra-prima continua a ser Cabra Marcado Para Morrer.

Nos anos 1960, Coutinho se envolveu com o Centro Popular de Cultura – CPC da União Nacional dos Estudantes – UNE para realizar filmes com comunidades do interior. Nessas viagens, conheceu a história de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa da Paraíba que fora assassinado por latifundiário da região, em 1962. O movimento dos colonos lutava pela desapropriação do Engenho da Galiléia e de Sapé, causa da qual saiu vitorioso.

Ao tomar conhecimento do crime, Coutinho decidiu, no começo de 1964, realizar um filme de ficção contando a história de João Pedro. Se chamaria Cabra Marcado Para Morrer. Os próprios colonos atuaram nas gravações e a esposa de João Pedro, Elizabeth Teixeira, fez seu próprio papel. As gravações foram abortadas em pouco tempo em razão do golpe militar de 1964. Os militares apreenderam o material, restando apenas algumas fotos e alguns minutos de filmagem, alegando tratar-se de material de propagando comunista (divulgaram na época, que a equipe era cubana!…).

Em 1981, Coutinho retoma Cabra Marcado Para Morrer como um documentário.  Em um cruzamento costura entre ficção e realidades, o agora documentarista, procura cada um dos colonos que participaram das filmagens originais. Além de exibir para eles os trechos que se salvaram do filme, Coutinho faz entrevistas procurando entender a importância para eles de atuar em um obra ficcional, suas visões sobre o assassinato de João Pedro, como estão suas vidas hoje e o quanto o contexto político cultural brasileiros no período de 17 anos (1964 a 1981) pesou em suas vidas.

Com um jogo de ficção e realidade, e sua intenção de compreender o destino de cada um daqueles trabalhadores, da família de João Pedro e dos Engenhos de Galiléia e de Sapé, Coutinho conseguiu, com ou sem intenção, criar uma documentário de muitas camadas que, tanto pelo o que expõem quanto pelo o que deixa de fora, consegue transmitir a complexidade da sociedade brasileira do período – além de gerar reflexões sobre o Brasil de hoje.

Falei acima “tanto pelo o que expõem quanto pelo o que deixa de fora” porque Coutinho faz em Cabra Marcado Para… uma clara opção pelo ponto de vista dos colonos (opção bastante natural, considerando o período de ditadura). Em outras palavras, em alguma medida, o filme é uma leitura pela esquerda dos acontecimentos desse período de 17 anos. De forma nenhuma é um defeito do filme. É apenas a perspectiva escolhida pelo diretor. Faço questão de ressalto esse pormenor, primeiro porque muitos têm a ideia de que documentários são retratos realistas da vida. NÃO! Documentários são pontos de vista de uma realidade. Segundo, para dizer que essa escolho em nenhum instante faz o filme cair no proselitismo. Coutinho é muito competente para isso.

Assim, pouco importa sua orientação política ou ideológica, ou seu completo desinteresse por política. Cabra Marcado… detém muitas camadas, permitindo que o espectador descubra uma nuance específica do Brasil do período – e mesmo de hoje. Alguns momentos deixam bem clara essa complexidade.

A maioria dos entrevistados – e o documentário como um todo – é um elogio ao movimento camponês. No entanto, um dos trabalhadores rurais entrevistados fala contra esses movimentos. É um depoimento breve, mas que abre uma fresta permitindo uma, digamos, dialética em seu interior. Seriam os métodos usados por João Pedro os melhores? Será que a grandeza de sua luta compensou sua morte brutal? Para esta pergunta, dois outros elementos são importantes.

Durante o filme, as declarações de Elizabeth Teixeira, esposa de João Pedro, trabalham em dois registros: a defesa da luta no campo (especialmente na parte final) e a tristeza pela distância dos filhos.

A simplicidade com que ela fala sobre a luta no campo é contrastante com os discursos dos líderes dos movimentos sociais de hoje (de MST ao Passe Livre). Nota-se nas palavras de Elizabeth Teixeira uma inocência, uma saudável “despolitização”. Hoje, alguns historiadores levantam a hipótese do governo Jango teria tentado um golpe vermelho no Brasil. Fato ou ficção, o documentário deixa claro que o governo estimulou a sindicalização dos trabalhadores e a formação de grupos como o de João Pedro. A pergunta que pode surgir: será que os anseios de Elizabeth Teixeira, explicitados especialmente no final do filme, eram os mesmos dos dirigentes do Brasil (pré e pós 1964)? Possivelmente, a resposta esteja no próprio filme, quando um de seu filho, já em 1981, fala que nenhum – NENHUM – político no Brasil olhou para os pobres!

Há uma tristeza em Elizabeth Teixeira por ter sido obrigada pela perseguição dos militares a se afastar de muitos de seus filhos. Boa parte do filme é dedicada à busca de Coutinho pelos filhos dela. Ao expor o rumo que cada membro dessa família tomou, o filme acaba chamando atenção para algo profundamente triste e revelador: o quanto os fatos/fardos históricos podem pesar na vida das pessoas, especialmente quando falamos de um Estado que decide tratar seu povo como gado. E não falo apenas dos milicos.

Mesmo sem ser intenção do diretor, é possível ler o documentário, do começo ao fim, como uma narração de como processos históricos impessoais/desumanos e coletivistas podem triturar a vida das pessoas.

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