domingo , 22 dezembro , 2024

A Espada Era a Lei | Clássica animação da Disney completa 60 anos em 2023

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As histórias envolvendo o lendário e quase mítico Rei Arthur sempre passaram por diversas releituras cinematográficas, literárias e até televisivas. Uma das primeiras adaptações a chegarem às telonas foi intitulada de A Espada Era a Lei, cuja narrativa se afastava da epopeia épica, traduzindo-se em um conto infanto-juvenil extremamente metafórico, apesar de seus aparentes deslizes.

A priori, é necessário entender que a cronologia e a árvore genealógica que perpassam a família de Arthur é um pouco complexa. Nos livros assinados por T.H. White, o personagem em questão é filho – e, portanto, único herdeiro – de Uther e Igraine Pendragon, regentes do Reino de Camelot. Entretanto, ele possui uma meia-irmã chamada Morgana, uma das antagonistas incompreendidas que domina as artes mágicas e retorna para clamar o que é seu por direito, além de ter bastante protagonismo dentro do círculo narrativo.



Na animação da Disney, porém, o diretor Wolfgang Reitherman, em conjunto com o roteirista Bill Peet, resolveu focar apenas na infância do rapaz, fornecendo-lhe uma caracterização que o aproximasse dos protagonistas da “jornada do herói”. Deste modo, este Arthur é um quase esquálido garoto trabalhando como serviçal na casa de Sir Ector, um patriarca impetuoso e preguiçoso que tem olhos apenas para seu filho mais velho. Sua personalidade submissa e não-confrontante o impede de ser mais incisivo no tocante a escolhas e a desejos. A partir daí, faz-se muito compreensível a opção dos criadores ao colocá-lo fora da linhagem real e torná-lo mais “humanizado”, por assim dizer.

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Até mesmo o primeiro encontro entre forças opostas – Arthur e Merlin, o Feiticeiro – não segue uma fluidez narrativa, mas sim é arquitetada por aparatos cósmicos que “forçam” esse acontecimento. Logo nos primeiros minutos, após uma narração discorrendo sobre o futuro incerto da Inglaterra, cujo trono permanecia vazio desde a morte do Rei, o arquétipo do guardião e do conselheiro fala sobre a efemeridade do tempo e sobre sua capacidade de ser modelado e compreendido inclusive pelo mais banal dos seres. É claro que essa explicação vem perscrutada por metáforas mais pueris, mas que podem ser absorvidas por pessoas de qualquer faixa etária.

Merlin talvez seja o personagem com o qual mais nos conectamos, não apenas por seus incríveis poderes sobre-humanos, mas também por seus diálogos metafísicos serem carregados de referências contemporâneas – para a época – como a invenção do avião, do helicóptero, do cinema e da televisão (com especial ênfase para uma leve ironia com este último meio audiovisual). É possível traçar comparações inclusive com outros arquétipos secundários que povoaram o imaginário popular com a ascensão do império Disney, como o Gênio da Lâmpada de Aladdin’ (1992), que traz, em sua gama de interpretações, figuras de outro espaço-tempo e outra cronologia.

A construção dos protagonistas e antagonistas de A Espada Era a Lei é admirável. Até mesmo Madame Mim, cujo tempo de cena é ínfimo comparando com os outros, tem seus momentos de brilho. Sua personalidade contrasta com a passividade justiceira de Arthur e com o excesso de falastranismo e comicidade de Merlin: ela é puramente má e louca, e sente orgulho de ser assim por não precisar de mais nenhuma justificativa ou backstory para seus atos horrendos e seu desejo de controle ofuscado por uma construção psicodélica de seu próprio ser: tons de roxo e rosa adornados com uma névoa espessa e perturbante, assim como seus trejeitos exagerados. Ela não chega a ser um estereótipo, mas beira a inverossimilhança, apesar de ser bem construída.

Archimedes, a coruja falante, entra como um personagem-coro para Merlin – um guardião para um guardião. Sua presença de cena e seus diálogos afrontosos são deliciosamente engraçados e fornecem camadas mais complexas para uma história simplificada para um público mais jovem e para o fechamento de alguns arcos que poderiam ficar por aberto.

As técnicas de animação também são muito bem aplicadas: apesar da modernização advinda com A Bela Adormecida’ mais de dez anos antes, percebemos ainda a utilização de placas de vidro para a ideia de profundidade, combinadas com idealizações de movimento contrastantes e um pouco mais realistas. A combinação resgata até traços de ‘Branca de Neve e os Sete Anões’ (1937), configurando-se como uma junção entre dois pontos distintos e relativamente distantes entre si.

O grande equívoco do filme – talvez o maior deslize que ele possua – é a sua própria história. Apesar de um roteiro bem estruturado, os acontecimentos e obstáculos enfrentados por Arthur são infantilizados ao extremo: sabemos que o “futuro Rei de Camelot” passou por diversas provas para provar sua coragem e sua habilidade em situações caóticas – e tais “testes”, certamente criados por seu guardião atrapalhado, conseguem permitir que ele induza sua personalidade introspectiva a desenvolver os campos de estratégia, combate e até mesmo feitiçaria. Mas aqui, tudo é monótono e cansativo. Tudo bem, é compreensível que a animação é destinada para o público infantil, mas temos diversos exemplos anteriores e posteriores que conseguiram equilibrar a quantidade necessária de comédia, drama e significados entrelinhados para espectadores em geral.

Os acontecimentos não trazem tanto peso para a trama. As viradas são óbvias e causam uma tensão momentânea que não influencia para o grande desfecho do terceiro ato – e definitivamente não explicam a necessidade do paralelismo narrativo que ocorre nos últimos momentos. O que entendemos é que Arthur, apesar de sair de sua zona de conforto e entrar em “aventuras”, não consegue deixar sua condição imposta pela sociedade em que vive, restringindo-se a saltos nada significativos para a melhora de sua condição de vida. Seu momento de glória vem com a retirada da espada da pedra – fazendo jus ao título do filme e arquitetando-se como a única sequência em que o garoto é posto à prova.

A jornada do herói encontra um desfecho entendível, mas não satisfatório. O protagonista, após sofrer com sua quase rendição às forças do mal – ou seja, passar por uma experiência mortal nas mãos de Madame Mim -, renasce com um novo objetivo e encontra sua paz interior, entrando em outro arco nos últimos cinco minutos de filme. Em um tempo ridiculamente curto, Arthur sofre com o fardo de ser Rei de um povo inteiro, pede ajuda a Merlin e depois entende sua nova função no mundo.

A Espada Era a Lei é um filme fofo, por falta de outro adjetivo. Seus personagens são memoráveis, mas sua inclusão em uma narrativa sem identidade e arrastada ofusca a importância e o potencial de uma releitura digna das histórias de cavalaria que tanto influenciam os contos da contemporaneidade.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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A priori, é necessário entender que a cronologia e a árvore genealógica que perpassam a família de Arthur é um pouco complexa. Nos livros assinados por T.H. White, o personagem em questão é filho – e, portanto, único herdeiro – de Uther e Igraine Pendragon, regentes do Reino de Camelot. Entretanto, ele possui uma meia-irmã chamada Morgana, uma das antagonistas incompreendidas que domina as artes mágicas e retorna para clamar o que é seu por direito, além de ter bastante protagonismo dentro do círculo narrativo.

Na animação da Disney, porém, o diretor Wolfgang Reitherman, em conjunto com o roteirista Bill Peet, resolveu focar apenas na infância do rapaz, fornecendo-lhe uma caracterização que o aproximasse dos protagonistas da “jornada do herói”. Deste modo, este Arthur é um quase esquálido garoto trabalhando como serviçal na casa de Sir Ector, um patriarca impetuoso e preguiçoso que tem olhos apenas para seu filho mais velho. Sua personalidade submissa e não-confrontante o impede de ser mais incisivo no tocante a escolhas e a desejos. A partir daí, faz-se muito compreensível a opção dos criadores ao colocá-lo fora da linhagem real e torná-lo mais “humanizado”, por assim dizer.

Até mesmo o primeiro encontro entre forças opostas – Arthur e Merlin, o Feiticeiro – não segue uma fluidez narrativa, mas sim é arquitetada por aparatos cósmicos que “forçam” esse acontecimento. Logo nos primeiros minutos, após uma narração discorrendo sobre o futuro incerto da Inglaterra, cujo trono permanecia vazio desde a morte do Rei, o arquétipo do guardião e do conselheiro fala sobre a efemeridade do tempo e sobre sua capacidade de ser modelado e compreendido inclusive pelo mais banal dos seres. É claro que essa explicação vem perscrutada por metáforas mais pueris, mas que podem ser absorvidas por pessoas de qualquer faixa etária.

Merlin talvez seja o personagem com o qual mais nos conectamos, não apenas por seus incríveis poderes sobre-humanos, mas também por seus diálogos metafísicos serem carregados de referências contemporâneas – para a época – como a invenção do avião, do helicóptero, do cinema e da televisão (com especial ênfase para uma leve ironia com este último meio audiovisual). É possível traçar comparações inclusive com outros arquétipos secundários que povoaram o imaginário popular com a ascensão do império Disney, como o Gênio da Lâmpada de Aladdin’ (1992), que traz, em sua gama de interpretações, figuras de outro espaço-tempo e outra cronologia.

A construção dos protagonistas e antagonistas de A Espada Era a Lei é admirável. Até mesmo Madame Mim, cujo tempo de cena é ínfimo comparando com os outros, tem seus momentos de brilho. Sua personalidade contrasta com a passividade justiceira de Arthur e com o excesso de falastranismo e comicidade de Merlin: ela é puramente má e louca, e sente orgulho de ser assim por não precisar de mais nenhuma justificativa ou backstory para seus atos horrendos e seu desejo de controle ofuscado por uma construção psicodélica de seu próprio ser: tons de roxo e rosa adornados com uma névoa espessa e perturbante, assim como seus trejeitos exagerados. Ela não chega a ser um estereótipo, mas beira a inverossimilhança, apesar de ser bem construída.

Archimedes, a coruja falante, entra como um personagem-coro para Merlin – um guardião para um guardião. Sua presença de cena e seus diálogos afrontosos são deliciosamente engraçados e fornecem camadas mais complexas para uma história simplificada para um público mais jovem e para o fechamento de alguns arcos que poderiam ficar por aberto.

As técnicas de animação também são muito bem aplicadas: apesar da modernização advinda com A Bela Adormecida’ mais de dez anos antes, percebemos ainda a utilização de placas de vidro para a ideia de profundidade, combinadas com idealizações de movimento contrastantes e um pouco mais realistas. A combinação resgata até traços de ‘Branca de Neve e os Sete Anões’ (1937), configurando-se como uma junção entre dois pontos distintos e relativamente distantes entre si.

O grande equívoco do filme – talvez o maior deslize que ele possua – é a sua própria história. Apesar de um roteiro bem estruturado, os acontecimentos e obstáculos enfrentados por Arthur são infantilizados ao extremo: sabemos que o “futuro Rei de Camelot” passou por diversas provas para provar sua coragem e sua habilidade em situações caóticas – e tais “testes”, certamente criados por seu guardião atrapalhado, conseguem permitir que ele induza sua personalidade introspectiva a desenvolver os campos de estratégia, combate e até mesmo feitiçaria. Mas aqui, tudo é monótono e cansativo. Tudo bem, é compreensível que a animação é destinada para o público infantil, mas temos diversos exemplos anteriores e posteriores que conseguiram equilibrar a quantidade necessária de comédia, drama e significados entrelinhados para espectadores em geral.

Os acontecimentos não trazem tanto peso para a trama. As viradas são óbvias e causam uma tensão momentânea que não influencia para o grande desfecho do terceiro ato – e definitivamente não explicam a necessidade do paralelismo narrativo que ocorre nos últimos momentos. O que entendemos é que Arthur, apesar de sair de sua zona de conforto e entrar em “aventuras”, não consegue deixar sua condição imposta pela sociedade em que vive, restringindo-se a saltos nada significativos para a melhora de sua condição de vida. Seu momento de glória vem com a retirada da espada da pedra – fazendo jus ao título do filme e arquitetando-se como a única sequência em que o garoto é posto à prova.

A jornada do herói encontra um desfecho entendível, mas não satisfatório. O protagonista, após sofrer com sua quase rendição às forças do mal – ou seja, passar por uma experiência mortal nas mãos de Madame Mim -, renasce com um novo objetivo e encontra sua paz interior, entrando em outro arco nos últimos cinco minutos de filme. Em um tempo ridiculamente curto, Arthur sofre com o fardo de ser Rei de um povo inteiro, pede ajuda a Merlin e depois entende sua nova função no mundo.

A Espada Era a Lei é um filme fofo, por falta de outro adjetivo. Seus personagens são memoráveis, mas sua inclusão em uma narrativa sem identidade e arrastada ofusca a importância e o potencial de uma releitura digna das histórias de cavalaria que tanto influenciam os contos da contemporaneidade.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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