Tolkien chegou a esboçar uma continuação que nunca passou das primeiras páginas
Graças a vindoura série do Prime Vídeo, Os Anéis do Poder, a clássica saga criada por J. R. R. Tolkien voltou a ficar nos holofotes após conquistar o mundo no início dos anos 2000 e voltar ser apreciada em meados da década de 2010. Tanto a trilogia Senhor dos Anéis quanto a vindoura série do Prime Vídeo se passam em momentos muito distintos.
Enquanto que a primeira se ambienta no período conhecido como terceira era, o último em que Tolkien trabalhou profundamente antes de falecer, a segunda aparenta adaptar a segunda era, época essa que contempla não só a forjadura dos anéis de poder mas também a ascensão de Sauron como segundo Senhor do Escuro e a presença de diversos grandes reinos dos homens e elfos.
O autor ainda trabalhou consideravelmente bem a primeira era por meio da obra Silmarillion, uma coletânea de histórias que narra a formação do mundo bem como a ameaça de Melkor. Ainda assim, tendo três eras no mínimo plenamente apresentadas o que pode haver além?
Tal pergunta é natural, até inevitável, quando se termina a trilogia do Anel; Sauron foi derrotado após a destruição do Um Anel; Aragorn se tornou rei; a corrupção do mal não dominou o coração dos homens; Frodo e Sam puderam retornar para casa (apesar da terrível surpresa decorrente dessa vitória). Com a Terra-Média visivelmente salva é facil imaginar que outro mal seria suficiente para ameaçar essa aparente vitória eterna.
Em 1996, Christopher Tolkien (filho e herdeiro de J.R.R) terminou a edição e publicou em nome de seu pai o décimo segundo e último volume de A História da Terra-Média, intitulado As Pessoas da Terra-Média. Com base em artigos deixados pelo escritor e reunidos por seu filho, cada volume se propõe a contemplar o processo criativo que levou o autor a criar a Terra-Média e sua cultura.
No mencionado décimo segundo a estrutura se mantém, no entanto é perceptível a presença de um material em particular cujo nome é Uma Nova Sombra. Com pouco menos de vinte páginas apenas, Tolkien esboça um cenário que se passa há mais de um século após o fim da Guerra do Anel, mais especificamente durante o reinado do rei gondoriano Eldarion (filho de Aragorn e Arwen).
O início segue Borlas de Pen-Arduin, filho de Beregond (soldado de Gondor que faz amizade com Pippin durante a batalha de Minas Tirith), já envelhecido em um mundo o qual há muito já se esqueceu de Sauron e a raça dos homens é a única na Terra-Média; os elfos rumaram para as terras imortais e os anões se voltaram para os reinos subterrâneos.
Um tema constantemente abordado é a metáfora ao mal, cujas raízes crescem quando ninguém se mantém vigilante. O fato dos humanos terem esquecido da guerra tornou-os indiferentes aos sinais de violência que cresciam; situação que pode encontrar paralelos com o mundo real em gerações que se distanciam cada vez mais de grandes conflitos do passado e, sem terem a experiência do mesmo, repetem ou não percebem os mesmos erros que levaram à tragédias.
Tal como a geração que presenciou, bem como sofreu, os horrores da Segunda Guerra Mundial e do totalitarismo diminui cada vez mais, a leva de pessoas responsável por combater as forças de Sauron e que presenciou o avanço dos exércitos dos orcs já se reduziu o suficiente para tanto garantir uma Terra Média estável para as gerações futuras quanto para não notar o retorno do inimigo.
Borlas, então, representa o choque de diferente gerações, principalmente quando conversa com o jovem Saelon sobre os diversos sinais de que algo ruim estava se aproximando, como foi no passado, e Saelon se mostra cético. Entretanto, o jovem fala com o ancião sobre como estava o ânimo da população; sobre como muitos estavam insatisfeitos após a morte de Aragorn e facções se proliferavam entre o povo comum.
Tolkien termina o rascunho com Saelon oferecendo a Borlas a chance de encontrá-lo ao anoitecer; ele então volta para casa com a certeza que o mal estava renascendo. Nas palavras do autor, muito do motivo para a sequência ter sido deixada de lado é que ela era seria tanto “sinistra quanto depressiva”; sobre como o longo sentimento de segurança deixaria a humanidade descontente com o mundo e todos os governantes que viriam após Aragorn jamais poderiam alcançar sua vitória e se tornariam políticos comuns.
A natureza de tal decisão criativa ia contra o tom otimista que Tolkien sempre imprimiu em suas histórias, onde um inimigo poderoso sempre gerava uma esperança de mesma intensidade aos heróis. Com um enredo mais semelhante a um thriller (como o autor ressaltou) a ideia tradicional de esperança seria mais fosca do que tradicionalmente ele priorizava.