Clarice Lispector foi e é uma das maiores potências da literatura mundial. Nascida na Ucrânia, migrou para o Recife e depois para o Rio de Janeiro, onde fixou residência e começou sua escrita íntima e pessoal; não demorou muito para que seus textos se tornassem conhecidos, especialmente pela nata da literatura carioca. Esposa de diplomata e moradora de um amplo apartamento no bairro do Leme (bairro nobre da cidade), em seus textos Clarice sempre abordou temas que, nos anos 1970, não eram comum e abertamente falados na sociedade, como aqueles relacionados ao mundo feminino. Mas o seu estilo de escrita – digressivo, reflexivo e vertiginoso – também fez com que muitas pessoas não se aproximassem de seus textos; consequentemente, torná-los adaptações audiovisuais virou um desafio extra. Tal desafio acaba de ser brilhantemente superado com o filme ‘A Paixão Segundo G.H.’, adaptação de sua obra homônima que estreia nos cinemas a partir de 11 de abril.
Em seu apartamento perfeitamente limpo e decorado, G.H. (Maria Fernanda Cândido) se depara com o vazio de sua vida a partir do momento em que sua empregada (Samira Nancassa) pede demissão e vai embora. O vazio repentino faz com que G.H. confronte sua casa a partir das demandas pendentes, o que faz com que ela reflita e enxergue pela primeira vez a existência, a partir da ausência, dessa empregada na sua casa. Quando, num ato de coragem, G.H. decide entrar no quarto ocupado pela antiga funcionária, algo terrível acontece: ela encontra uma barata. Desse encontro, todas as inquietações dessa mulher virão à tona e mudarão sua vida para sempre.
Colocar a sinopse de ‘A Paixão Segundo G.H.’ assim, de maneira simples, reduz a potencialidade do enredo. Na verdade, a história é muito mais que isso: é sobre o contraste da branquitude dessa personagem diante da repentina visibilidade de uma mulher que trabalhava para ela mas que se camuflava dentro da própria casa, tamanha a invisibilidade dentro do cotidiano doméstico da vida da classe média alta carioca da protagonista. Desse contraste, Clarice Lispector tece dilemas existenciais do universo feminino fazendo uso de metáforas (chocantes, é verdade) como a alegoria da barata, que pode ganhar inúmeras interpretações.
Com a colaboração da especialista na literatura de Clarice, Nádia Gotlib, o roteiro de Marina Dalboni e Luiz Fernando Carvalho constrói a vida dessa protagonista com uma intensidade contínua e crescente, partindo da futilidade da vida socialite para, aos poucos, transformar o drama pessoal num thriller de terror psicológico oriundo de um ato corriqueiro, mas que, para essa protagonista, se torna momento de angústia e sufocamento.
Mas este dilema cinematográfico só ganha sua total potência a partir da entrega e do espantoso brilhantismo de Maria Fernanda Cândido que, já na primeira cena, em close, demonstra que incorporou em sua totalidade a essência e o mistério existencial de Clarice Lispector. Sua interpretação é tamanha que desde sua primeira aparição no filme o público simplesmente esquece que não está vendo Clarice nas telonas.
Esse projeto, forte e autoral, é comandado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho (responsável por belíssimos sucessos, como a série ‘Hoje é Dia de Maria’ e ‘Capitu’). Luiz Fernando faz intenso uso dos elementos técnicos como agentes de interferência na vida dessa personagem. A iluminação estourada em contraste com repentinas cenas no escuro e uma filmagem que faz uso de uma lente esférica quadrada aumentam o fluxo pulsante do filme, tornando palpável a sensação claustrofóbica da obra de Clarice ao fazer com que Maria Fernanda preencha a tela e por transformar até mesmo o mais absurdo em belo, como a parte de baixo do nariz da atriz que, pelas lentes do diretor, se torna poesia.
‘A Paixão Segundo G.H.’ é, possivelmente, a melhor adaptação da obra de Clarice Lispector já feita. São duas horas de brilhantismo dramatúrgico e questionamentos viscerais que não se resolvem. Um filme belíssimo que consegue alcançar o primor da literatura brasileira e o transformar em imagens.