Há quase 35 anos, Ariel estreava nos cinemas norte-americanos, chegando ao Brasil pouco mais de um mês depois. Desde então, ‘A Pequena Sereia’ encantava audiências de todas as idades, nos entregando uma emocionante e divertida narrativa que nos incitava a correr atrás de nossos sonhos e, além disso, nos convidava para um competente mundo musical subaquático.
Hoje, são poucas as pessoas que não conhecem a história da personagem-titular: Ariel, filha do Rei Tritão, é uma princesa que nunca se contentou com o reino no qual vivia e sempre foi apaixonada pela vida dos humanos, desejando fazer parte de suas aventuras e, caso possível, encontrando um amor verdadeiro (que se materializou na figura do corajoso Eric). Mas é claro que, como todas as produções dos estúdios Walt Disney, o arco da nossa querida heroína não seria banhado por pura comiseração; na verdade, ela enfrentaria diversos obstáculos, incluindo a mortal Úrsula, a bruxa dos mares.
Eventualmente, o final feliz chegaria para todos os mocinhos: mas, mais que isso, a animação de 1989 seria um marco no império da Casa Mouse e ganharia inúmeras continuações, spin-offs e releituras – uma delas, inclusive, funcionando como um remake em live-action que estreia muito em breve nos cinemas mundiais e que traz no elenco nomes como Halle Bailey, Melissa McCarthy, Javier Bardem, Awkwafina e muitos outros.
E, antes da estreia da nova versão, preparamos uma matéria mais que especial trazendo curiosidades interessantes sobre a animação em si e sobre a história que o originou.
UM CONTO DE TERROR
A Disney tem uma afeição por contos de fada que se estende até os primórdios de seu império. Em 1937, o panteão se iniciava com o lançamento de ‘Branca de Neve e os Sete Anões’ e, desde então, percorreu os quatro cantos do mundo buscando enredos do gênero para levá-los em um escopo otimista, vívido e revolucionário para as telonas.
Assim como grande parte de seus filmes, ‘A Pequena Sereia’ também manteria relações com a estória clássica – cujas incursões não são nada menos que bastante sombrias.
Publicada em 1837, a trama foi construída pelo romancista dinamarquês Hans Christian Andersen, cuja fabulosa mente foi responsável por dar vida a narrativas como ‘A Rainha de Gelo’ (que seria transcrita para ‘Frozen – Uma Aventura Congelante’) e ‘Thumbelina’. Em seus escritos, Andersen, na verdade, se nutria muito da mitologia escandinava para delinear a jornada de uma sereia cujo sonho era conhecer os humanos e outros territórios além daquele a que estava confinada.
Suas irmãs, que já tiveram a oportunidade de subir ao mundo terreno, lhe contavam sobre as maravilhas que a aguardavam, cultivando um sentimento angustiante de vê-las com os próprios olhos. Sua sábia avó, por sua vez, conta para ela que, diferente dos habitantes submarinos, a alma dos humanos era imortal e permanecia vagando pelo cosmos até mesmo depois de mortos.
Não demora muito até que, num belo dia, ela resgata um marinheiro que quase morreu afogado e se apaixona perdidamente por alguém que nem ao menos conhece (coisa que também acontece no filme). Ansiando por ter uma “vida” eterna e por reencontrar com aquele que salvou, ela cruza seu caminho com a Bruxa do Mar (sim, a Úrsula) e implora para que lhe ajude – e a feiticeira decide de bom grado garantir que seu desejo se cumpra.
Até aqui, o exegese é bastante similar à que conhecemos. A Bruxa vende à jovem uma poção que a dará pernas humanas, pedindo em troca sua língua e sua bela voz, visto que a sereia tinha os vocais mais bonitos de todo o mundo. Diferente da peça fílmica, a antagonista do filme avisa à heroína que, no momento em que ela beber a substância mágica, sentirá como se uma espada fosse fincada em seu corpo; quando recobrar a consciência, terá duas pernas e poderá dançar com o homem que deseja reencontrar, mas a cada passo, terá a sensação de andar sob pontiagudas facas que farão seus pés sangrarem terrivelmente. E, além disso, ela deve conquistar o amor do príncipe e se casar com ele, ou então ela irá morrer com o coração quebrado e dissolver nas geladas águas do oceano.
Mórbido, não? Pois bem, não é surpresa que os diretores Ron Clements e John Musker resolveram embelezar esses dramáticos arcos em algo que não remetesse apenas a uma tragédia frequente. Afinal, por mais que Úrsula faça de tudo para impedir que Ariel tenha um final feliz, as coisas acabam se resolvendo e amarrando todos os nós. No conto original, entretanto, a catástrofe é iminente e imparável.
Em certas versões da narrativa, a Bruxa do Mar rasga a cauda da heroína em duas e esse é o motivo pelo qual ela sente dor constantemente. A resolução caminha para uma espécie de escolha de Sofia em que a protagonista, para voltar para o mar, deve assassinar o homem que ama com uma adaga fornecida pela própria vilã. Porém, ela não consegue matá-lo e, desolada, se joga no mar, transformando-se em espuma – com algumas recontagens indicando que foi dessa forma que surgiu a espuma das ondas (poético, mas bastante melancólico). Talvez essa perspectiva fosse traumática demais para as crianças, certo?
A ARTE IMITA A VIDA
Para trazer ‘A Pequena Sereia’ à vida, a dupla de diretores responsável pela adaptação cinematográfica buscou influências da cultura pop e uniu em uma congruência quase anacrônica diversos elementos artísticos.
Sebastião, por exemplo, o guardião de Ariel, originalmente teria um sotaque britânico. Entretanto, o liricista Howard Ashman deu a ideia de que o personagem tivesse um viés caribenho para, dessa forma, abrir caminho para a canção “Under the Sea”, que levou para casa o Oscar de Melhor Canção Original. E, como se não bastasse, a construção musical dessa faixa seria base para um incrível roteiro e outras investidas instrumentais que transformariam a trilha sonora em uma das mais memoráveis do panteão Disney.
Mas isso não é tudo: lembram-se de Úrsula? Pois bem, a feiticeira em forma de polvo não foi simplesmente fruto da imaginação da equipe artística do longa; na verdade, a vilã foi inspirada na estética irreverente da drag queen Divine, colaboradora frequente das vanguardistas produções de John Waters. Desde o forte batom vermelho até os expressivos olhos, Divine de fato influenciou bastante a arquitetura performática de Úrsula – inclusive seu maquiavélico solo, “Poor Unfortunate Souls”.
Como se não bastasse, as emulações da cultura contemporânea também seriam transpostas para os outros personagens: a delineação de Ariel se nutriu de nomes como Alyssa Milano e Sally Ride, enquanto a sequência romântica entre ela e o príncipe Eric é adornada pelo clássico ballet ‘Romeu & Julieta’, de Pyotr Ilyich Tchaikovsky. E, por causa desses e tantos outros motivos, é o motivo da animação ser uma das principais da era renascentista do império Mouse – colocando-a em um patamar de mesma importância que, por exemplo, o revolucionário ‘A Bela Adormecida’.
Ora, até mesmo ‘Duro de Matar’ teve sua presença creditada: afinal, a cena de batalha entre Úrsula e Ariel no terceiro ato foi repaginada com as impecáveis e memoráveis lutas entre John McClane (Bruce Willis) e… Bom, basicamente todo mundo.
UM LEGADO INQUESTIONÁVEL
Para além de tudo que já foi explicado nesta matéria, ‘A Pequena Sereia’ carrega consigo uma legião de fãs que não se cansam de assistir e reassistir as aventuras da jovem Ariel – e não apenas no cinema: afinal, a icônica história ganhou sua versão para os palcos da Broadway em 2007 com Sierra Boggess substituindo Jodi Benson no papel principal. O musical teatral foi aclamado pela crítica e pelo público, sendo indicado para dois Tony Awards e chegando ao Brasil em 2018.
À época, a animação rendeu mais de 184 milhões de dólares nas bilheterias mundiais, o que levou a Disney a produzir dois filmes em VOD contando a história de Melody, filha de Ariel, e uma prequela contando os primórdios da heroína. Ao longo do anos, diversos curtas-metragens foram produzidos, chegando, enfim, ao aguardado remake em live-action que estreia no dia 26 de maio.
Em 2019, foi a vez da ABC recuperar a magia marítima do longa-metragem ao arquitetar um redesenho ao vivo com Auli’i Cravalho e Queen Latifah, cujas perfeitas rendições transformaram o evento especial em um dos mais bem recebidos da última década.
A produção original quebrou outros inúmeros recordes, incluindo a presença de uma quantidade absurda de efeitos especiais desde ‘Fantasia’. A sequência da tempestade, por exemplo, levou dez dias para ser completada, enquanto o supervisor de animação Mark Dindal produziu em conjunto com sua extensa equipe um número milionário de bolhas, através de técnicas de superposição, contraste de luz e aerografia – algo que não era comum nas investidas cinematográficas.
É por esses e tantos outros motivos que não podemos deixar de sentir uma euforia ao mesmo tempo animadora e agridoce quanto ao remake supracitado. Afinal, o filme tem muito em que se respaldar – e não podemos deixar de nos perguntar se ele conseguirá resgatar toda a magia criada há três décadas e meia anos e remodelada das mais diversas maneiras com o passar do tempo.