O termo Giallo (amarelo em italiano) se tornou a definição de um subgênero do terror voltado a produções da Itália. Muitos acreditam que os giallo – em vigor nas décadas de 60 e 70 – sejam inclusive o “pai” dos slasher norte-americanos (cujo boom foi a década de 80). Embora a grande semelhança entre os subgêneros seja a violência gráfica explícita, com mortes detalhadas através de efeitos visuais práticos de muito realismo, é notório como os slasher se tornaram produções voltadas ao público jovem, com tramas centradas em torno de personagens adolescentes e desprotegidos. Os giallo, por sua vez, utilizam personagens adultos em sua narrativa, na maioria das vezes passados em uma história policial envolvendo crimes, mistérios e investigações.
A grosso modo os giallo utilizam muito do que Alfred Hitchcock construiu em sua carreira, ou seja, o argumento do homem errado, no lugar errado, que precisa dar conta de uma trama de grandes proporções. Nos giallo, a tal trama deixa de ser algo relacionado à espionagem internacional (como em muitas das obras de Hitch) para invariavelmente apresentar uma caçada a um psicopata ou serial killer. É deste contexto que vem inclusive o nome giallo, saído de livretos baratos de suspenses detetivescos que tinham em comum suas capas amarelas (daí o significado literal). Tais romances eram muito populares na Itália.
O subgênero sempre foi considerado “filme B” exploitation (de exploração – no caso da violência), mas sua influência no terror em geral é inegável. Um dos nomes mais celebrados e famosos do gênero é o do diretor Dario Argento, que começou a carreira escrevendo o que é para muitos “o” faroeste definitivo do cinema, Era uma Vez no Oeste (1968). Argento se enveredou para o terror e por lá fez seu nome se tornando um dos grandes mestres do segmento. Toda esta introdução para chegarmos até Os Olhos de Laura Mars (1978), considerado uma versão norte-americana dos giallo. Com uma verdadeira constelação de nomes envolvidos na produção – que iremos adereçar nos próximos parágrafos -, o filme está disponível no acervo da plataforma Amazon Prime Video e é recomendação máxima para os fãs do gênero, cinéfilos, estudiosos, entusiastas e conhecedores da arte. Porém, estejam avisados, como de costume nas mancadas da plataforma, o filme só consta com a dublagem brasileira, indisponível com o som do idioma original.
Produzido pela Columbia Pictures (Sony) pelo orçamento de US$7 milhões, a ideia para o filme partiu da mente de nenhum outro senão o cultuado John Carpenter, que no mesmo ano ficaria famoso com o lançamento do que é ainda hoje um de seus filmes mais badalados, Halloween – A Noite do Terror (longa que segue dando frutos, com o segundo capítulo de uma nova trilogia prestes a estrear este ano). A esta altura Carpenter já havia entregue produções que se tornaram cult, vide a ficção científica Dark Star (1974) e o thriller criminal Assalto à 13ª DP (1976). Antes de ganhar o mundo com Halloween, no entanto, o diretor dava mais um passo com o roteiro de Os Olhos de Laura Mars – o que faz deste filme uma espécie de “irmão adotivo” do filme com o maníaco Michael Myers.
Carpenter bolou uma história sobre o mundo da moda e das artes, centrada numa fotógrafa glamourosa que é uma das artistas mais requisitadas de Nova York. Nos anos 70, profissionais do tipo eram verdadeiras celebridades, sobressaindo inclusive a outras áreas da cultura artística e do entretenimento. O poder que certos fotógrafos possuíam antes da era digital era comparável ao de diretores de cinema. Essa sofisticação é sentida no filme, onde ruas de Nova York são fechadas para os ensaios da protagonista, tudo confeccionado com ares de superprodução envolvendo diversos profissionais. Sendo esse um filme de terror e suspense, é claro que teria uma pegadinha. A sacada tanto do texto de Carpenter quanto do título é traçar um paralelo entre o trabalho da protagonista e suas visões tenebrosas, ao se referir aos “olhos de Laura Mars”.
A reviravolta na trama ocorre quando a protagonista Laura Mars, a tal fotógrafa estrela, começa a ter visões de assassinatos violentos. Ela vê o que o assassino vê. E de tais trechos é que sai a proximidade citada com os filmes giallo, tal atmosfera é muito emulada aqui. Para piorar ainda mais o trauma da mulher, as mortes que ela enxerga são de pessoas próximas, muitas profissionais de sua equipe de trabalho. Como todo giallo também, este é um whodunit, um suspense no qual um dos personagens ao redor da protagonista será revelado como a identidade do matador.
Por trás da produção, dois nomes que seriam relacionados aos filmes de super-heróis. Jon Peters colocou seu nome no panteão de Hollywood quando produziu Batman (1989), de Tim Burton, e sua continuação Batman, o Retorno (1992). Antes disso, já havia levado às telas A Cor Púrpura (1985), de Steven Spielberg, por exemplo. Os Olhos de Laura Mars foi seu segundo longa como produtor, tendo estado por trás anteriormente do lançamento de Nasce uma Estrela (1976), a terceira versão, vencedora do Oscar. Ao lado do produtor, estreando na função, Laura Ziskin – que depois viria a marcar seu nome como produtora da trilogia Homem-Aranha, de Sam Raimi. Ziskin, infelizmente viria a falecer em 2011.
Para o comando da obra, após alguns nomes cogitados, foi contratado Irvin Kershner, cineasta que vinha atuando desde a década de 50, tendo comandado grandes nomes do cinema em seus filmes. Os Olhos de Laura Mars marcaria o primeiro terror / fantasia de sua carreira. Após o trabalho, Kershner entregaria um pequeno filme chamado Star Wars: O Império Contra-Ataca (1980), talvez você já tenha ouvido falar. Foi seu desempenho nesta obra que lhe garantiu a função na ópera espacial de George Lucas, já que o próprio criador de tal universo teria ficado impressionado com o esforço do cineasta no filme.
O produtor Jon Peters e o diretor Irvin Kershner pareciam possuir um ponto em comum: a estrela Barbra Streisand. Peters a havia produzido em Nasce uma Estrela (1976) e Kershner a havia dirigido na comédia Além das Fronteiras do Lar (1972). Justamente por isso, Streisand foi a primeira escolha da dupla para estrelar no papel da protagonista Laura Mars. Streisand esteve de fato vinculada ao projeto por um tempo, mas precisou se retirar. Streisand ficou conhecia em sua carreira por comédias, musicais e dramas e talvez este longa fosse simplesmente intenso demais para sua filmografia. A atriz então seguiu para protagonizar mais uma comédia, Meu Lutador Favorito (1979). Como “prêmio de consolação” aos colegas, Streisand gravou a canção tema do filme, ‘Prisoner’, para a trilha sonora, marcando assim a primeira música que a atriz e cantora grava para um longa que não participou.
Sem Streisand estava aberta a temporada de caça por uma protagonista para viver Laura Mars. Dentre os nomes ventilados para o filme estiveram os de Jane Fonda, Diane Keaton, Goldie Hawn e o da francesa Catherine Deneuve. A equipe terminou por encontrar uma atriz principal nas formas de Faye Dunaway, uma intérprete por si só muito renomada. O nome de Dunaway na época era um dos mais comentados de Hollywood, tendo surgido no sucesso Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas (1967), o qual a rendeu sua primeira indicação ao Oscar, e seguido para sucessos como Inferno na Torre e Chinatown (ambos de 1974, com este segundo a conseguindo uma segunda indicação ao Oscar). Na época em que filmava Laura Mars, Dunaway havia acabado de sair do sucesso de Rede de Intrigas, de sua terceira indicação ao Oscar e, finalmente, a primeira vitória. Ou seja, não podia ser um nome mais quente para atrair o público em uma produção.
Colocando a cereja no bolo do cacife de Faye Dunaway, a estrela na época estava envolvida num relacionamento com o fotógrafo da vida real, o britânico Terry O’Neill, ícone na profissão, que a treinou para o papel. Como citado, Laura Mars é uma eximia fotógrafa na trama, referência na arte, cujos trabalhos no filme foram inspirados pelos do alemão Chris Von Wangenheim. Todo este prestígio envolvendo a atriz principal não impediram sua colisão no set com o produtor Jon Peters. Ambos tinham fama de serem difíceis de trabalhar e quando os egos se bicaram, os rumores diários sobre um ambiente tenso e exaustivo foram reportados nos veículos especializados da época.
O veterano Tommy Lee Jones havia começado sua carreira oito anos antes. Aqui, tem um papel de destaque em um de seus maiores projetos até então. O ator vive o protagonista masculino, o policial John Neville – afinal, filmes assim necessitam de um elo com a investigação dos crimes. Cabe ao personagem de Jones o trabalho policial da trama e, por consequência, o envolvimento romântico com a mulher que deve proteger. O saudoso Raul Julia também marca presença no elenco, o ator viria a se destacar em produções como O Beijo da Mulher Aranha (1985) e, é claro, A Família Addams (1991). Aqui, ele interpreta o ex-marido interesseiro da protagonista. E um dos suspeitos dos assassinatos. Brad Dourif, mais conhecido como a voz do boneco Chucky, é mais uma figura de destaque no longa. Muitos podem não saber, mas Dourif foi indicado ao Oscar por Um Estranho no Ninho (1975). Aqui, ele interpreta o misterioso Tommy, motorista de Laura Mars que sofre com apagões e lapsos de memória. Fechando o elenco principal, a belíssima Darlanne Fluegel fazia sua estreia como uma das modelos fotografadas pela protagonista. Fluegel marcaria em suas participações em Era uma Vez na América (1984), Viver e Morrer em Los Angeles (1985) e Condenação Brutal (1989). A atriz faleceu em 2017 aos 64 anos.
Os Olhos de Laura Mars estreou no dia 2 de agosto de 1978, numa época em que o cinema só conhecia entretenimento grandioso há pouquíssimo tempo, servidos por Tubarão (1975) e Guerra nas Estrelas (1977). No mesmo ano, os filmes de gênero seriam marcados pela estreia de Halloween (1978), escrito e dirigido pelo mesmo John Carpenter, sem as amarras de um grande estúdio. O longa conquistou uma bilheteria de US$20 milhões num orçamento de menos da metade, se mostrando um sucesso. No que diz respeito às críticas, o longa não impressionou tanto, gerando avaliações mistas da imprensa. O filme, infelizmente, não se manteve popular ao longo dos anos, se tornando um dos trabalhos não muito comentados de todos estes artistas mais que gabaritados. Plataformas como a Amazon, embora não seja o foco de seu acervo, fazem um bom trabalho ao investirem em produções cult como esta, com a proposta de apresenta-las às novas gerações.