Nos últimos anos, principalmente a partir do início da década passada, o cinema hollywoodiano passou por um processo de resgatar clássicos de seu infinito catálogo e trazê-los com uma roupagem atualizada ou remasterizada à nova geração. Tivemos, por exemplo, a ascensão de um número considerável de remakes em live-action das animações da Disney, histórias de origem como ‘Cruella’ e ‘Malévola’ e até mesmo uma repaginação de ‘Convenção das Bruxas’ no ano passado. Mas não são apenas obras infantis que vêm recebendo tal tratamento – e, agora, lidamos com uma versão ambiciosa do musical ‘Amor, Sublime Amor’, sob as mãos do icônico cineasta Steven Spielberg.
Para aqueles que não conhecem, a narrativa é inspirada tanto no musical de 1957 quanto no longa-metragem de 1961, comandado por Robert Wise e Jerome Robbins. Na primeira adaptação para os cinemas, a trama foi centrada na intricada cidade de Nova York dos anos 1950, afetada pela rixa constante de duas gangues locais (os Jets e os Sharks) e pelo inesperado enlace romântico entre dois jovens diferentes entre si e que lutam contra os mais diversos obstáculos para ficarem juntos. Apesar das controvérsias e da falta representatividade latina na produção (que colocou um descendente grego interpretando um porto-riquenho, por exemplo), o título recebeu aclame universal por parte da crítica e levou para casa dez estatuetas do Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante para George Chakiris e Melhor Atriz Coadjuvante para Rita Moreno.
Mexer em uma joia do cinema estadunidense como a mencionada no parágrafo acima é sempre um trabalho demorado e doloroso – ainda mais considerando a memória afetiva de boa parte do público. Mas, se houvesse alguém que poderia incorporar esse projeto, seria Spielberg. O diretor já demonstrou que tem todos os atributos essenciais para viajar entre os mais diversos gêneros, desde aventuras espetaculares como ‘Jurassic Park’ e ‘Indiana Jones’ até poderosos dramas como ‘Império do Sol’ e ‘The Post – A Guerra Secreta’. Prestes a completar 75 anos, Spielberg demonstra que está no ápice de sua carreira, arquitetando uma apaixonante rendição com a elegância tradicionalista da Era de Ouro do cinema e uma releitura vibrante que é guiada por performances incríveis e coreografias de tirar o fôlego.
Assim como o enredo original, ‘Amor, Sublime Amor’, nos leva para o crescente embate que insurge entre os Jets e os Sharks – destilados dentro de uma cena de abertura impecável que presta homenagem ao longa dos anos 1960. Sem a necessidade de diálogos, a personalidade contrastante que ressoa de ambas as gangues é canalizada para os líderes Riff (Mike Faist) e Bernardo (David Alvarez); Riff é fruto de uma geração desamparada por um governo neoimperialista e desconta suas frustrações para os imigrantes latinos que “querem tirar os trabalhos” das pessoas de bem; Bernardo, por sua vez, reclama o que lhes pertence por direito e tem como principal objetivo deixar um legado para sua família e para aqueles que se inspiram nele. Mas o que acontece quando essa explosiva rivalidade serve de ponte para unir almas predestinadas?
O espectro do musical é inspirado na tragédia shakespeariana ‘Romeu e Julieta’, cujos protagonistas titulares pertencem a família inimigas e, por mais que enfrentem a desaprovação bélica dos pais, provam que o amor tem uma força maior que a desavença. É nesse contexto que surgem Tony (Ansel Elgort) e María (Rachel Zegler): Tony era líder dos Jets e melhor amigo de Riff, mas viu sua vida virar de cabeça para baixo quando foi levado à prisão por quase assassinar um porto-riquenho em um acesso psicótico; María é a irmã mais nova de Bernardo e, mesmo trabalhando como faxineira e conquistando seu ganha-pão, é superprotegida pela ideologia nacionalista que manteve os imigrantes latinos unidos inclusive em situações de puro desespero. Em um determinado baile, o destino dos dois se cruza, dando origem a uma série de reviravoltas chocantes, emocionantes e que refletem o pensamento medievalista da época.
O principal feito da obra é sua atemporalidade: Spielberg em momento algum resvala no anacronismo – pelo contrário, se mostra ciente do que quer fazer e conduz cada enquadramento e sequência com naturalidade invejável, resplandecendo cores vivazes e uma fotografia requintada que nunca deseja ser mais do que consegue. Mas isso não é tudo, visto que a própria estética oferecida aos espectadores abraça a arte teatral e rompe as barreiras entre as telonas e os palcos, levando-nos a conhecer um pedacinho esquecido de uma antiga Broadway. No topo de tudo isso, coreografias cuidadosamente demarcadas e absorvidas por um corpo de baile on point que nunca decepciona – e um roteiro assinado pelo vencedor do Pulitzer Tony Kushner, que imprime sua identidade sem perder a bem-vinda reverência ao clássico.
Se uma competente equipe técnica faz o máximo para nos engajar nessa história de amor e vingança, o elenco protagonista e coadjuvante se eleva ao mesmo nível. Zegler encanta com seu alcance vocal impressionante, trabalhando dentro do que lhe é proposto ao lado de Elgort (cujas limitações são visíveis, mas não o suficiente para causar qualquer desconexão). E, apesar da química não aparecer em todas as cenas, fascinam por uma inocência jovial manchada pelo trauma e por coisas que não conhecem. Alvarez, Faist e Moreno (agora dando vida a Valentina) também fazem um trabalho admirável; porém, é Ariana DeBose como Anita quem comanda os holofotes, seja com seus fluidos movimentos nas danças, seja com a representatividade concisa que traz ao filme.
Pontuais deslizes à parte, ‘Amor, Sublime Amor’ é uma competente revisitação à clássica trama, construindo um espetáculo que une passado e presente em um mesmo lugar. Fomentados por uma força performática fantástica e por uma cautela imagética aplaudível, a produção merece e deve ser apreciada em sua completude.