sábado , 23 novembro , 2024

Artigo | ‘Alô, Amigos’: a animação que introduziu Zé Carioca ao universo Disney

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Com a chegada da última década da metade do século XX, o império construído por Walt Disney continuava a se expandir de forma frenética pelo mundo inteiro. Entretanto, o magnata do entretenimento percebeu eventualmente que não poderia se manter atado com raízes tão profundas à sua terra natal e nem mesmo à incrível mitologia europeia no qual se baseava para construir suas narrativas. Não é nenhuma surpresa, pois, que o produtor tenha percebido que culturas completamente novas e que não possuíam uma visibilidade tão grande quando a homogeneidade norte-americana jaziam quase intactas no Hemisfério Sul, mais precisamente nas Américas abaixo do Trópico de Capricórnio – e foi a partir dessa concepção mais abrangente que Disney nos introduziu ao seu primeiro personagem essencialmente latino ao arquitetar uma obra documentária intitulada Alô, Amigos’.

O média-metragem de quase quarente e cinco minutos é uma amálgama de diferentes estilos e que funciona como uma explanação didática das diversas culturas sul-americanas trazendo como protagonistas personagens icônicos e atemporais das primeiras investidas animadas do estúdio. Cada um deles representa de modo lúdico as reais viagens realizadas pelo time criativo de tal império para países como Chile, Peru, Argentina e Brasil, os quais catalogaram seus valores, morais e características marcantes para fornecer a um público essencialmente movido pelo capitalismo um modo de vida considerado mais “rudimentar e pitoresco”, por mais preconceituoso que isso possa soar aos nossos ouvidos. É claro que, considerando o prévio afastamentos dos Estados Unidos em relação a seus vizinhos, tal incredulidade ao lidar com povos tão diferentes é viável e compreensível, mas não ao ponto de tornar a narrativa algo erroneamente cômico.



De qualquer forma, não podemos tirar mérito do diretor Norman Ferguson em aproximar as múltiplas tramas, que mais funcionam como pequenos blocos narrativos que se unem pela mesma temática, ao necessário didatismo para o jovem público consumidor de produtos fílmicos. E aproximando-se até mesmo da estética de Fantasia’ (1940), temos a mistura entre as técnicas animadas e o live-action, talvez buscando uma estética que também possa conversar com uma audiência mais velha e que conheça as inúmeras figuras que aparecem repetitivamente nas cenas, bem como seus incríveis rascunhos e ideias que originaram os curtas-metragens dentro desse escopo majoritário.

Talvez o maior sucesso do filme seja o seu contexto histórico e o retorno de conhecidos personagens para o panteão Disney, que seriam explorados em futuras obras. A princípio, precisamos entender que esse empresário e magnata tinha plena ciência do que estava acontecendo no mundo à época em que finalmente atingiu o estrelato com Branca de Neve e os Sete Anões’ cinco anos antes de Alô, Amigos’: em 1939, a Europa e a América do Norte chocou-se com o estopim da II Guerra Mundial com a invasão da Polônia pela Alemanha, retomando as disputas territoriais e ideológicas que já haviam se espalhado algumas décadas antes com a I Guerra. Como já era de se esperar, os continentes fragmentaram-se aos poucos e cederam aos avanços nazi-fascistas de Adolf Hitler, cuja mentalidade de supremacia racial ariana acerca do povo judeu e dos povos da África ameaçavam o equilíbrio que os Estados Unidos possuíam acerca do outro lado do oceano.

A partir dessa perspectiva caótica, o presidente Franklin D. Roosevelt orquestrou a Política da Boa Vizinhança, uma espécie de acordo de superintendência com os governos dos países latino-americanos para recuperar seus aliados e manter o status de solidariedade continental. Dessa forma, Hollywood foi um dos primeiros segmentos econômicos a serem atingidos, banindo estereótipos narrativos como os bandidos mexicanos e a falta de pesquisa de campo para obras como Dance Comigo’, estrelando Fred Astaire e Ginger Rogers e que, de forma bizarra, mostrava o Rio de Janeiro ao lado da Floresta Amazônica. Tais erros imperdoáveis dentro de um dos nichos mais importantes da sociedade da época passaram por um pente-fino, o que justifica a presença de inúmeros nomes conhecidos, como Lee e Mary Blair e até mesmo o próprio Disney, nas sequências em live-action.

A entrada dessas personalidades também é acompanhada por uma envolvente e poética narração acerca das disparidades socioculturais da América do Sul e que entram em harmonia justamente por serem tão diferentes entre si: Fred Shields faz um incrível trabalho dissertando acerca dos pontos turísticos mais famosos da fronteira entre Peru e Bolívia, o Lago Titicaca, criando um escopo analítico ao mesmo tempo em que é protagonizado pelo memorável Pato Donald em uma aventura interessante e cômica, ainda que, como supracitada, traga alguns meneios ao preconceito regional. Ele não para por aí, também nos levando aos pampas argentinos em alegres transições coloridas e trazendo outra figura conhecida – o desajeitado Pateta em sua tentativa de se adaptar à cultura local e procurar conhecer a maior parte dos incríveis trejeitos desse grupo.

Sem dúvida alguma o grande mérito do filme, ainda conversando com a política de aproximação estadunidense, emerge com a chegada do breve terceiro ato, trazendo o retorno de Donald e a introdução de um personagem que se tornou carro-chefe da comunidade brasileira no exterior – o divertido Zé Carioca, cuja dublagem é feita por um ator brasileiro (José Oliveira). Retomando a estética realista da literatura brasileira, principalmente dos escritos de Jorge Amado, o alegre e irreverente papagaio é baseado no malandro carioca, trajando paletó e chapéu de aba reta, com o ritmo do samba nos pés (no caso nas patas) e muito sedutor, seja do jeito que for. É clara sua afeição pelo novo amigo, e até mesmo o momento em que os dois se cumprimentam com um aperto de mãos é emblemático – politicamente falando.

É interessante analisar como as técnicas de rotoscopia aqui retornam aos seus primórdios para resgatar o classicismo de Disney e até mesmo uma época mais amigável que aquela em que estavam vivendo. E também não podemos deixar de mencionar o trabalho de arte muito bem pesquisado para conversar com a multiplicidade identitária da fauna e da flora brasileira – e até mesmo de suas personalidades mais famosas (vemos um breve relance da cantora Carmem Miranda dançando alegremente ao som de uma das marchinhas mais famosas da música brasileira).

‘Alô, Amigos’ é um filme com diversos pequenos problemas que eventualmente tiram a completude de seu brilho – incluindo sua tendência ao partidarismo bélico e panfletário. Entretanto, grande parte dessa explicitação histórica e desesperada pode ser ignorada pela caprichosa e interessante animação que não deixa a desejar e que mais uma vez consegue nos prender e aumentar a fidelidade a um dos maiores impérios cinematográficos de todos os tempos.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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O média-metragem de quase quarente e cinco minutos é uma amálgama de diferentes estilos e que funciona como uma explanação didática das diversas culturas sul-americanas trazendo como protagonistas personagens icônicos e atemporais das primeiras investidas animadas do estúdio. Cada um deles representa de modo lúdico as reais viagens realizadas pelo time criativo de tal império para países como Chile, Peru, Argentina e Brasil, os quais catalogaram seus valores, morais e características marcantes para fornecer a um público essencialmente movido pelo capitalismo um modo de vida considerado mais “rudimentar e pitoresco”, por mais preconceituoso que isso possa soar aos nossos ouvidos. É claro que, considerando o prévio afastamentos dos Estados Unidos em relação a seus vizinhos, tal incredulidade ao lidar com povos tão diferentes é viável e compreensível, mas não ao ponto de tornar a narrativa algo erroneamente cômico.

De qualquer forma, não podemos tirar mérito do diretor Norman Ferguson em aproximar as múltiplas tramas, que mais funcionam como pequenos blocos narrativos que se unem pela mesma temática, ao necessário didatismo para o jovem público consumidor de produtos fílmicos. E aproximando-se até mesmo da estética de Fantasia’ (1940), temos a mistura entre as técnicas animadas e o live-action, talvez buscando uma estética que também possa conversar com uma audiência mais velha e que conheça as inúmeras figuras que aparecem repetitivamente nas cenas, bem como seus incríveis rascunhos e ideias que originaram os curtas-metragens dentro desse escopo majoritário.

Talvez o maior sucesso do filme seja o seu contexto histórico e o retorno de conhecidos personagens para o panteão Disney, que seriam explorados em futuras obras. A princípio, precisamos entender que esse empresário e magnata tinha plena ciência do que estava acontecendo no mundo à época em que finalmente atingiu o estrelato com Branca de Neve e os Sete Anões’ cinco anos antes de Alô, Amigos’: em 1939, a Europa e a América do Norte chocou-se com o estopim da II Guerra Mundial com a invasão da Polônia pela Alemanha, retomando as disputas territoriais e ideológicas que já haviam se espalhado algumas décadas antes com a I Guerra. Como já era de se esperar, os continentes fragmentaram-se aos poucos e cederam aos avanços nazi-fascistas de Adolf Hitler, cuja mentalidade de supremacia racial ariana acerca do povo judeu e dos povos da África ameaçavam o equilíbrio que os Estados Unidos possuíam acerca do outro lado do oceano.

A partir dessa perspectiva caótica, o presidente Franklin D. Roosevelt orquestrou a Política da Boa Vizinhança, uma espécie de acordo de superintendência com os governos dos países latino-americanos para recuperar seus aliados e manter o status de solidariedade continental. Dessa forma, Hollywood foi um dos primeiros segmentos econômicos a serem atingidos, banindo estereótipos narrativos como os bandidos mexicanos e a falta de pesquisa de campo para obras como Dance Comigo’, estrelando Fred Astaire e Ginger Rogers e que, de forma bizarra, mostrava o Rio de Janeiro ao lado da Floresta Amazônica. Tais erros imperdoáveis dentro de um dos nichos mais importantes da sociedade da época passaram por um pente-fino, o que justifica a presença de inúmeros nomes conhecidos, como Lee e Mary Blair e até mesmo o próprio Disney, nas sequências em live-action.

A entrada dessas personalidades também é acompanhada por uma envolvente e poética narração acerca das disparidades socioculturais da América do Sul e que entram em harmonia justamente por serem tão diferentes entre si: Fred Shields faz um incrível trabalho dissertando acerca dos pontos turísticos mais famosos da fronteira entre Peru e Bolívia, o Lago Titicaca, criando um escopo analítico ao mesmo tempo em que é protagonizado pelo memorável Pato Donald em uma aventura interessante e cômica, ainda que, como supracitada, traga alguns meneios ao preconceito regional. Ele não para por aí, também nos levando aos pampas argentinos em alegres transições coloridas e trazendo outra figura conhecida – o desajeitado Pateta em sua tentativa de se adaptar à cultura local e procurar conhecer a maior parte dos incríveis trejeitos desse grupo.

Sem dúvida alguma o grande mérito do filme, ainda conversando com a política de aproximação estadunidense, emerge com a chegada do breve terceiro ato, trazendo o retorno de Donald e a introdução de um personagem que se tornou carro-chefe da comunidade brasileira no exterior – o divertido Zé Carioca, cuja dublagem é feita por um ator brasileiro (José Oliveira). Retomando a estética realista da literatura brasileira, principalmente dos escritos de Jorge Amado, o alegre e irreverente papagaio é baseado no malandro carioca, trajando paletó e chapéu de aba reta, com o ritmo do samba nos pés (no caso nas patas) e muito sedutor, seja do jeito que for. É clara sua afeição pelo novo amigo, e até mesmo o momento em que os dois se cumprimentam com um aperto de mãos é emblemático – politicamente falando.

É interessante analisar como as técnicas de rotoscopia aqui retornam aos seus primórdios para resgatar o classicismo de Disney e até mesmo uma época mais amigável que aquela em que estavam vivendo. E também não podemos deixar de mencionar o trabalho de arte muito bem pesquisado para conversar com a multiplicidade identitária da fauna e da flora brasileira – e até mesmo de suas personalidades mais famosas (vemos um breve relance da cantora Carmem Miranda dançando alegremente ao som de uma das marchinhas mais famosas da música brasileira).

‘Alô, Amigos’ é um filme com diversos pequenos problemas que eventualmente tiram a completude de seu brilho – incluindo sua tendência ao partidarismo bélico e panfletário. Entretanto, grande parte dessa explicitação histórica e desesperada pode ser ignorada pela caprichosa e interessante animação que não deixa a desejar e que mais uma vez consegue nos prender e aumentar a fidelidade a um dos maiores impérios cinematográficos de todos os tempos.

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