sábado , 21 dezembro , 2024

Artigo | ‘As Crônicas de Nárnia: O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa’ e o poder de uma boa história

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Ninguém poderia imaginar que o sucesso de C.S. Lewis no período que compreendeu os anos de 1940 e 1950 conseguiria ser traduzido para as telonas de forma tão pura e delicada. Afinal, o compêndio amalgamado de diversas mitologias que resolveu intitular As Crônicas de Nárnia não apenas representou um marco na literatura mundial, como tornou-se uma das compilações mais traduzidas de todos os tempos, além de ter vendido mais de 120 milhões de cópias pelo mundo inteiro. Gostos à parte – eu particularmente encaro os escritos de Lewis como uma doutrinação mascarada dos preceitos católicos -, o diretor Andrew Adamson tinha um trabalho um tanto quanto complexo pela frente, e definitivamente não poderia trazer certos maneirismos à tona e perder a essência do material original.

Adamson, em poucas palavras, consegue extrair o épico em quase todas as cenas que arquiteta para o longa – e digo quase, pois em alguns momentos nos sentimos presenciando uma releitura das epopeias bíblicas que tanto se tornaram populares desde o século passado, caindo em convencionalismos só não desperdiçados tanto pela fotografia quanto pela trilha sonora. A trama principal gira em torno dos irmãos Pevensie que, fugindo da iminente ameaça nazista contra a Inglaterra no ápice da II Guerra Mundial, acabam por encontrar o mágico mundo de Nárnia e percebem que encarnam papéis muito maiores do que imaginavam.



A princípio, é bem perceptível que o núcleo familiar dos irmãos se desenrola de modo conturbado. Temos, por exemplo, o crescimento compulsório dos mais velhos, Pedro (William Moseley) e Suzana (Anna Popplewell), emergindo como as figuras parentais dos caçulas e tentando manter uma ordem que há muito já não existe mais. Em contrapartida, o equilíbrio trazido pela rebeldia do irreverente Edmundo (Skandar Heynes) e pela fértil imaginação otimista de Lúcia (Georgie Henley) trazem camadas de profundidade que não simplesmente jogadas na narrativa, mas que servem como respaldo para aquilo que virá.

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Eventualmente – e como é de se esperar na clássica jornada do herói – o quarteto se muda para um grande casarão pertencente ao Professor Kirke (Jim Broadbent), um místico personagem que, apesar de aparecer em pouquíssimas cenas, incita-os a não se deixar levar pelo realismo exacerbado que a guerra lhes causou e acreditar no impossível. Afinal, Lúcia, sendo a mais inocente e a mais pueril, é a primeira a aventurar-se em Nárnia e conhecer algumas das criaturas mais adoráveis dessa repaginada mitologia criada por Lewis – e, de praxe, é desacreditada por seus irmãos. Não é até o começo do segundo ato que todos mergulham de cabeça no novo mundo e passam a fazer parte de uma história que mantinha-se imutável até sua chegada.

É claro que alguns elementos soam bastante familiares – e devemos levar em consideração o boom da ficção fantástica à época de seu lançamento; quando pensamos no mercado cinematográfico, O Senhor dos Anéis’ foi a primeira franquia a ganhar uma adaptação às telonas, seguido por Harry Potter’ e só então chegando em As Crônicas de Nárnia. Logo, o crescente público apaixonado pelo drama aventuresco de diversos heróis e heroínas já estava acostumado a encontrar fórmulas para a delineação de suas histórias, como a magia, as constantes batalhas, as epifanias e os vilões.

Adamson, que também contribuiu fortemente para o roteiro do longa, consegue trabalhar de modo justo para cada um dos protagonistas e antagonistas, fornecendo o arco necessário para compreendermos sua evolução e desfecho. Isso inclui também a onipotência de Aslan, o Grande Leão (Liam Neeson), que, representando nos livros a materialização de Deus Todo-Poderoso, sofre uma antropomorfização de seus atos e se torna mais afável em relação aos espectadores e aos próprios personagens da trama, sendo dotado inclusive de falhas humanizadas. Ele funciona como o arquétipo do Guardião e do Guia Espiritual, auxiliado anteriormente pelas controversas atitudes do fauno Tumnus (James McAvoy) – cuja participação final não faz jus à importância que poderia representar.

TILDA SWINTON, SKANDAR KEYNES

Além de Neeson, que traz uma retumbante e preponderante voz ao filme, um dos ápices da produção reside na incrível performance de Tilda Swinton como Jadis, a Feiticeira Branca, usurpadora do Trono Real e causadora do interminável inverno que assola Nárnia. Ao contrário do poderíamos esperar, Swinton mantém-se em uma linearidade expressiva que é articulada com poucas explosões emocionais, nenhuma saturada ou obliterada pela canastrice; ela nem mesmo precisa de muitos diálogos para mostrar seu poder, visto que este reside apenas em seu olhar.

Dito isso, é necessário pontuar que certas sequências se mostram um tanto redundantes no quesito desenvolvimento narrativo: dentro de adaptações, é necessário separar aquilo que pode ser traduzido para imagens e aquilo que se mantém em um âmbito mais intimista e inexprimível para o grande espetáculo do cinema. Adamson, em diversas ocasiões, parece ter se esquecido dessa premissa e realizado mirabolantes saídas que não mudariam essencialmente em nada na trajetória dos protagonistas e de sua luta pela salvação de Nárnia e pela destituição de Jadis. E pior: ele peca em excesso nessas mesmas sequências quando poderia transferir tamanha preocupação imagética para momentos mais importantes – como o sacrifício de Aslan ou a batalha final.

E é justamente aí que entra o poder de uma boa trilha sonora; utilizando-se da grandiloquência épica dos arranjos musicais de violinos e violoncelos em crescendo, além de harmonizá-los com os instrumentos que os próprios personagens usam em cena (como o berrante), o compositor Harry Gregson-Williams deixou sua marca na indústria hollywoodiana ao transformar palavras em sinfonias orquestrais belíssimas que atuam em crescendo o tempo inteiro, passando pela preparação de terreno, chegando ao clímax e encontrando um desfecho digno para uma obra tão esteticamente bela quanto esta.

‘O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa’ é um equivalente mais brando e sutil às outras adaptações literárias fantasiosas para o cinema – e ela funciona na maior parte do tempo. Apesar dos clichês e dos deslizes óbvios, o filme tem a grande vantagem de conseguir cativar o público e permitir-lhe navegar por entre o incrível mundo de Nárnia, coisa que infelizmente não aconteceria nas duas iterações a seguirem a saga.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Adamson, em poucas palavras, consegue extrair o épico em quase todas as cenas que arquiteta para o longa – e digo quase, pois em alguns momentos nos sentimos presenciando uma releitura das epopeias bíblicas que tanto se tornaram populares desde o século passado, caindo em convencionalismos só não desperdiçados tanto pela fotografia quanto pela trilha sonora. A trama principal gira em torno dos irmãos Pevensie que, fugindo da iminente ameaça nazista contra a Inglaterra no ápice da II Guerra Mundial, acabam por encontrar o mágico mundo de Nárnia e percebem que encarnam papéis muito maiores do que imaginavam.

A princípio, é bem perceptível que o núcleo familiar dos irmãos se desenrola de modo conturbado. Temos, por exemplo, o crescimento compulsório dos mais velhos, Pedro (William Moseley) e Suzana (Anna Popplewell), emergindo como as figuras parentais dos caçulas e tentando manter uma ordem que há muito já não existe mais. Em contrapartida, o equilíbrio trazido pela rebeldia do irreverente Edmundo (Skandar Heynes) e pela fértil imaginação otimista de Lúcia (Georgie Henley) trazem camadas de profundidade que não simplesmente jogadas na narrativa, mas que servem como respaldo para aquilo que virá.

Eventualmente – e como é de se esperar na clássica jornada do herói – o quarteto se muda para um grande casarão pertencente ao Professor Kirke (Jim Broadbent), um místico personagem que, apesar de aparecer em pouquíssimas cenas, incita-os a não se deixar levar pelo realismo exacerbado que a guerra lhes causou e acreditar no impossível. Afinal, Lúcia, sendo a mais inocente e a mais pueril, é a primeira a aventurar-se em Nárnia e conhecer algumas das criaturas mais adoráveis dessa repaginada mitologia criada por Lewis – e, de praxe, é desacreditada por seus irmãos. Não é até o começo do segundo ato que todos mergulham de cabeça no novo mundo e passam a fazer parte de uma história que mantinha-se imutável até sua chegada.

É claro que alguns elementos soam bastante familiares – e devemos levar em consideração o boom da ficção fantástica à época de seu lançamento; quando pensamos no mercado cinematográfico, O Senhor dos Anéis’ foi a primeira franquia a ganhar uma adaptação às telonas, seguido por Harry Potter’ e só então chegando em As Crônicas de Nárnia. Logo, o crescente público apaixonado pelo drama aventuresco de diversos heróis e heroínas já estava acostumado a encontrar fórmulas para a delineação de suas histórias, como a magia, as constantes batalhas, as epifanias e os vilões.

Adamson, que também contribuiu fortemente para o roteiro do longa, consegue trabalhar de modo justo para cada um dos protagonistas e antagonistas, fornecendo o arco necessário para compreendermos sua evolução e desfecho. Isso inclui também a onipotência de Aslan, o Grande Leão (Liam Neeson), que, representando nos livros a materialização de Deus Todo-Poderoso, sofre uma antropomorfização de seus atos e se torna mais afável em relação aos espectadores e aos próprios personagens da trama, sendo dotado inclusive de falhas humanizadas. Ele funciona como o arquétipo do Guardião e do Guia Espiritual, auxiliado anteriormente pelas controversas atitudes do fauno Tumnus (James McAvoy) – cuja participação final não faz jus à importância que poderia representar.

TILDA SWINTON, SKANDAR KEYNES

Além de Neeson, que traz uma retumbante e preponderante voz ao filme, um dos ápices da produção reside na incrível performance de Tilda Swinton como Jadis, a Feiticeira Branca, usurpadora do Trono Real e causadora do interminável inverno que assola Nárnia. Ao contrário do poderíamos esperar, Swinton mantém-se em uma linearidade expressiva que é articulada com poucas explosões emocionais, nenhuma saturada ou obliterada pela canastrice; ela nem mesmo precisa de muitos diálogos para mostrar seu poder, visto que este reside apenas em seu olhar.

Dito isso, é necessário pontuar que certas sequências se mostram um tanto redundantes no quesito desenvolvimento narrativo: dentro de adaptações, é necessário separar aquilo que pode ser traduzido para imagens e aquilo que se mantém em um âmbito mais intimista e inexprimível para o grande espetáculo do cinema. Adamson, em diversas ocasiões, parece ter se esquecido dessa premissa e realizado mirabolantes saídas que não mudariam essencialmente em nada na trajetória dos protagonistas e de sua luta pela salvação de Nárnia e pela destituição de Jadis. E pior: ele peca em excesso nessas mesmas sequências quando poderia transferir tamanha preocupação imagética para momentos mais importantes – como o sacrifício de Aslan ou a batalha final.

E é justamente aí que entra o poder de uma boa trilha sonora; utilizando-se da grandiloquência épica dos arranjos musicais de violinos e violoncelos em crescendo, além de harmonizá-los com os instrumentos que os próprios personagens usam em cena (como o berrante), o compositor Harry Gregson-Williams deixou sua marca na indústria hollywoodiana ao transformar palavras em sinfonias orquestrais belíssimas que atuam em crescendo o tempo inteiro, passando pela preparação de terreno, chegando ao clímax e encontrando um desfecho digno para uma obra tão esteticamente bela quanto esta.

‘O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa’ é um equivalente mais brando e sutil às outras adaptações literárias fantasiosas para o cinema – e ela funciona na maior parte do tempo. Apesar dos clichês e dos deslizes óbvios, o filme tem a grande vantagem de conseguir cativar o público e permitir-lhe navegar por entre o incrível mundo de Nárnia, coisa que infelizmente não aconteceria nas duas iterações a seguirem a saga.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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