Antes de comandarem o elogiado quinto capítulo da saga ‘Pânico’, os nomes de Matt Bettinelli-Olpin e de Tyler Gillett ainda não eram muito conhecidos dentro do cenário mainstream – mas a dupla havia investido esforços em trazer o found footage de volta às glórias de um passado não muito distante com o longa antológico ‘V/H/S’. E, antes de mergulharem de cabeça na mitologia do Ghostface, eternizada por Wes Craven, os cineastas uniram forças para uma das comédias de terror mais incríveis e bizarras dos últimos anos – e que é uma ótima pedida para o próximo Dia das Bruxas.
Em ‘Casamento Sangrento’, Samara Weaving sai de sua costumeira atuação adolescente (vista na tragicomédia trash ‘A Babá’, da Netflix) e se entrega para algo bem mais estruturado, ao mesmo tempo em que se diverte ao extremo com a encarnação de Grace, uma jovem moça que está morrendo de medo em se casar com o herdeiro dos Le Domas, Alex (Mark O’Brien), filho de uma rica família que construiu seu império com jogos clássicos de tabuleiro e de cartas. Afinal, ela está crente de que os outros membros da família a desprezam por não ter “sangue azul o suficiente” para se tornar um membro desse clã imperioso – não que ela realmente se importe. Na verdade, Grace e Alex já desfrutam de uma envolvente intimidade que parece saída de um conto de fadas.
A atmosfera muda drasticamente quando o casal troca os votos entre si e Grace é convidada para participar de uma pequena iniciação, uma tradição comum a todos os novos membros do clã: à meia-noite, na sala de música, ela deverá participar de um jogo escolhido por uma pequena caixa construída pelo já falecido Sr. Le Bail, um personagem desconhecido que, ao que tudo indica, é responsável por ter trazido e mantido a imensa riqueza da família. Então, ela acaba tirando uma carta que indica que todos deverão brincar de “esconde-esconde”, com a moça se escondendo e sendo o alvo do restante do grupo. O problema é que, diferente do que ela pode imaginar, seus sogros e cunhados, na verdade, a estão caçando para performar um satânico ritual até o nascer do sol – para se manterem vivos e renovarem os demoníacos votos de boa fortuna.
Logo de cara, os diretores nos convidam para um cenário propositalmente anacrônico, ambientado numa mansão vitoriana cuja histórica construção se expande até mesmo às vestimentas dos protagonistas – e às armas que escolhem para ir atrás de Grace. Chega a ser engraçado discorrer acerca da forma com que essa disparidade cronológica se ergue nas telonas, visto que temos, em um mesmo lugar, a tecnologia contemporânea das câmeras de segurança ao lado de bestas e carabinas seculares. Felizmente, o cuidado do time artístico com esses detalhes intencionais é o que impede a produção de se render a erros amadores – ainda mais aliados ao comando imagético promovido por Olpin e Gillett.
Isso não é tudo que nos rouba a atenção: a performance dramática e hilária de Weaving é reflexo de uma persona que, com a chegada do terceiro ato, se move pela força do ódio e da necessidade de escapar de um núcleo familiar psicótico e sem qualquer sentido. Ainda que de cara sejamos apresentados a construções superficiais, os coadjuvantes se restringem a um compreensível e específico comportamento, como a solenidade de Tony (Henry Czerny), a narcótica loucura de Emilie (Melanie Scrofano) ou os esnobes olhares da socialite Charity (Elyse Levesque). Mas é Andie MacDowell quem divide os holofotes com Weaving, dando vida à matriarca Becky – que, em um arco de tirar qualquer um do sério, se mostra amiga de Grace apenas para apunhalá-la pelas costas de forma a proteger quem realmente ama (ou aquilo que realmente ama: sua riqueza).
É certo dizer que, em momentos bastante pontuais, os pouco mais de noventa minutos podem se arrastar em algumas sequências longas demais ou desnecessárias para a compreensão da história; a exploração da labiríntica mansão, inclusive, poderia ganhar mais destaque em detrimento de certos diálogos que existem apenas como filler. Entretanto, não podemos negar que o próprio roteiro (assinado pelas mentes de Guy Busick e do work-a-holic do terror Ryan Murphy) brinca com explícitas e sanguinolentas ideias que transformam cada frame em um espetáculo gore que, sem sombra de dúvida, culminará no futuro status de filme cult que a obra ganhará – aliás, não me admiraria se a iteração em questão ganhasse uma legião de fãs em pouquíssimo tempo.
A coesa narrativa não abre mão do horror e nem da comédia, como já mencionado – e, apesar de caminhar para um convencional final que expurga os pecados cometidos pela família antagonista, termina em um ápice inesperado que nos arranca mais risadas do que suspiros de choque. Obviamente clichês aparecem vez ou outra, mas são bem-vindos em um território fértil que não preza pela originalidade, por assim dizer (o filme não se propõe a revolucionar o gênero, mas a desconstruí-lo com rebeldes pitadas estéticas). E talvez essa seja sua maior e melhor característica.
‘Casamento Sangrento’ é uma deliciosa e bizarra aventura que toma como base uma tradição a princípio inocente, que se transforma em uma perigosa perseguição para satisfazer desejos de outro mundo. Carregado pelas incríveis atuações de Weaving e MacDowell, o filme é aprazível em sua completude – e, de fato, nenhuma cena será tão icônica quanto a de Grace segurando uma espingarda em mãos e tentando atirar no mordomo.