Entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 2022, comemora-se o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, um dos movimentos de maior fervor do cenário artístico brasileiro e um dos definidores do século passado no mundo, influenciando inúmeros nomes nacionais e internacionais que viriam depois desse grupo de revolucionários e vanguardistas.
Entretanto, enquanto o evento de celebração já deve ter passado na timeline de suas redes sociais, poucas pessoas sabem de fato o que foi a Semana, o Modernismo e de que forma a ideologia defendida pelos participantes influenciou em praticamente todas as áreas da criação humana – incluindo o cinema. Afinal, em uma análise de ação e reação, o Cinema Novo, por exemplo, não poderia existir sem as rupturas que Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e tantos outros promoveram décadas antes, quando o cinema não tinha expressividade em solo nacional e se valia muito das produções hollywoodianas e da influência estadunidense na cultura mundial.
O movimento em questão foi inspirado, essencialmente, pelas vanguardas europeias do final do século XIX e começo do século XX, como o futurismo, o dadaísmo, o cubismo, o abstracionismo e o expressionismo (todas exercendo força descomunal na sétima arte – ‘Nosferatu’ é um dos maiores representantes da escola expressionista). Mas, diferente do que veríamos nas décadas seguintes, os precursores e fundadores do Modernismo provinham de uma elite intelectual que, conforme aponta Alfredo Bosi em ‘História Concisa da Literatura Brasileira’, era a única que pudesse traduzir, compreender e reformular as ideologias europeias para uma visão nacional e que começasse a exaltar as investidas dentro do país, dando os primeiros passos para que a identidade própria do Brasil começasse a se formar.
É claro que incursões predecessoras já buscavam essa mesma identidade, como visto no Romantismo indianista de José de Alencar e Gonçalves Dias, mas a proposta modernista era se afastar dos preceitos exteriores e investir esforços condizentes à linguagem brasileira, como gírias, jargões e expressões populares. Eventualmente, a asserção seria “melhor” tratada pelas gerações da crítica social que despontariam em meados dos anos 1940, com João Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Ariano Suassuna, porém, não se pode, de maneira alguma, tirar os méritos dos modernistas – ainda mais por confrontarem o academicismo parnasiano e o conservadorismo literário que o consideravam como demônios.
Em 1917, cinco anos antes da Semana, Monteiro Lobato, icônico autor responsável pela franquia infantil ‘Sítio do Pica-Pau Amarelo’, contribuiria para o estopim do movimento ao publicar um controverso artigo destruindo a reputação de Malfatti quando a artista deu vida à sua exposição, em dezembro. Lobato escreveu o texto ‘Paranoia ou Mistificação?’, em que criticava com veemência as tendências pós-impressionistas que Anita assimilara em seus estudos na Alemanha e nos Estados Unidos e trouxera para o Brasil. No artigo, o autor dizimava a carreira da artista plástica, colocando-a dentro de um grupo de criadores que “veem anormalmente a natureza, e interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva” (para ler o texto completo, clique aqui).
Não demorou muito para que os outros membros do grupo se reunissem às pressas para dar início ao plano de apresentarem à tradicionalista sociedade paulistana uma nova vertente artística – e em resposta ao fato de Malfatti ter sofrido tanto com os comentários exagerados de Lobato que até mesmo parou de pintar por um tempo, enclausurando-se em depressão e decepção. Em 29 de janeiro de 2022, O Estado de São Paulo anunciava a Semana de Arte Moderna, que ocorreria nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro no Theatro Municipal de São Paulo. O evento abriria espaço para performances literárias, musicais e imagéticas que, em suma, atacariam e questionariam os nomes que pertenciam ao parnasianismo, um movimento ultrapassado e que precisaria ser deixado de lado para que a cultura nacional pudesse perseguir outras vertentes. Além disso, houve a criação de manifestos que apoiaram a ideologia defendida pelos modernistas, como o Antropofágico, assinado por Oswald de Andrade, cujo objetivo era deglutir as culturas europeia, ameríndia e africana, e regurgitá-las em algo que fizesse sentido à estrutura brasileira – alegando que não se deveria negar o externo, mas também não imitá-lo.
Mais de três décadas depois, o cinema brasileiro partiria de um caminho similar para levar a identidade nacional às telonas. É possível encontrar inúmeras analogias entre os dois: no final dos anos 1950 e 1960, o panorama artístico enfrentava uma altíssima influência estrangeira, principalmente dos Estados Unidos (que se solidificava como um império cinematográfico). Foi nesse contexto que emergiu o supracitado Cinema Novo, que enfrentava rigidamente a dominação que os EUA desejavam efetivar em suas colônias culturais – como o Brasil, que vinha consumindo os clássicos noir e dramáticos com fome inenarrável.
Os realizadores perpassaram por vários acontecimentos simbólicos, desde a redemocratização ao golpe militar de 1964 – aproveitando para abraçar as causas sociais e os problemas enfrentados pelas classes menos abastadas, tematizando narrativas que variavam da miséria da população à disparidade de gênero e de classes, além de ironias ácidas à hipocrisia do setor médio-alto e da elite. De acordo com Randal Johnson em ‘Literatura e Cinema’, “o Cinema Novo foi popular no sentido de haver tomado como seu assunto principal os problemas do povo brasileiro”, dando enfoque, a princípio, aos “setores marginalizados da sociedade, favelados, pescadores, pobres e campesinos que viviam na miséria do nordeste brasileiro”.
É fato dizer que o Cinema Novo sofreu influências do neorrealismo italiano e da nouvelle vague francesa, permitindo que Glauber Rocha e Arnaldo Jabor, por exemplo, ganhassem força. ‘Aruanda’, de Linduarte Noronha, é centrado na história dos remanescentes de um quilombo em Serra do Talhado, mostrando o cotidiano dos moradores locais; ‘Terra em Transe’, um dos longas-metragens mais aclamados de todos os tempos, nos leva para a república fictícia de Eldorado e funciona como alegoria política à situação em que o Brasil se encontrava à época; ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, nos transporta para as mazelas da seca e da desolação territorial no interior do país; ‘Vidas Secas’, de Nelson Pereira dos Santos, é uma das mais conhecidas adaptações do romance homônimo de Graciliano Ramos e gira em torno de uma família do sertão que enfrenta a seca, a fome e a completa falta de prospecto para um futuro digno – algo que, até hoje, permanece nas regiões mais pobres.
É notável como, mesmo com décadas de distância, a literatura e o cinema modernos se aglutinam dentro de uma perspectiva análoga e singular, aproveitando o palco artístico dado a seus respectivos representantes para promover uma mudança na sociedade e escancarar que a continuidade evolutiva é algo intrínseco ao mundo – e deve ser defendida a todo custo.