quarta-feira, agosto 20, 2025
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    Artigo | Como ‘Barbie’ se baseou na filosofia árabe para falar sobre governos falhos e autoritários

    Há dois anos, Greta GerwigMargot Robbie faziam história ao unirem forças para o aclamado live-action ‘Barbie’ – que não apenas superou todas as nossas expectativas, como tornou-se um sucesso de arrecadação e de crítica, além de ter conquistado oito indicações ao Oscar.

    Baseada na famosa franquia de brinquedos lançada pela Mattel, a narrativa convida o público a conhecer a Barbieland, um país fictício e fora da realidade como a conhecemos em que todas as múltiplas variantes da boneca vivem, bem como outros personagens que fazem parte do mesmo universo – como Ken, Allan e Midge. O enredo principal acompanha a versão mais famosa de Barbie, interpretada por Robbie, que se vê compelida a sair de sua terra natal quando eventos estranhos a arrancam de uma perfeição intangível – permitindo que ela comece a vivenciar emoções humanas como a frustração, a tristeza, a raiva e a monotonia. Ao lado de seu companheiro Ken, cuja versão protagonista é interpretada por Ryan Gosling, ela cruza a barreira entre a ficção e a realidade para descobrir o que está acontecendo e como ela pode recuperar a própria vida.

    O filme trouxe à tona inúmeras questões importantes, lançando-se a questões sobre feminismo, disparidade de gênero e até mesmo capitalismo predatório – porém, um dos temas que aparece pela estrutura do projeto, ainda que de maneira mais indireta, refere-se à Cidade Excelente, termo cunhado pelo filósofo árabe Al-Farabi, que viveu em meados do século XII. Através de releituras das obras de Platão, em especial a República, ele disserta sobre a existência humana e de que forma os indivíduos podem utilizar suas capacidades para encontrar a felicidade – em que as cidades, em si, deve “guiar-se pela busca da sabedoria, ao preço de, se não o fizerem, arruinarem a si mesmas e a seus habitantes”.

    Segundo Al-Farabi, um único ser humano não tem a capacidade de suprir as próprias necessidades e, dessa maneira, faz-se necessário que participe de um coletivo para que as múltiplas e diversas habilidades confluam em harmonia. Assim, essa jornada de aperfeiçoamento culmina na excelência em si, em que tal agrupamento, caso “bem organizado e bem dirigido” (a cidade em si), permite que o humano caminhe em direção à felicidade e à completude, sejam elas como for.

    Todavia, é importante destacar que, para que a cidade insurja como meios para esse fim específico de plenitude, ela precisa de um governante que utilize de valores como justiça, amor e sabedoria, por exemplo, para que não desvie os humanos em caminhos a uma pseudo-felicidade. Destarte, Al-Farabi divide os próprios conceitos entre as chamadas cidades excelentes (que levam à felicidade em si) e as cidades desviadas (que guiam os humanos a direções errôneas).

    A cidade excelente, em si, não se configura como uma utopia, e sim como uma arquitetura mais palpável. A utopia é inatingível, enquanto a cidade excelente pode ser traçada ao início, ao momento em que a existência é como tal, uma existência primordial caracterizada pela autossuficiência e pela impossibilidade de uma existência anterior a ela. Partindo desse princípio, as cidades excelentes é una e completa em si, não se deixando levar pelas paixões e pelos instintos, mas sim pela trajetória de aperfeiçoamento de seus habitantes e de que forma agem para que atinjam o objetivo da felicidade, prezando pelo desenvolvimento dos humanos. E, dentro dessa arquitetura, é possível que diferentes habitantes estejam na mesma cidade (espiritual), ainda que em lugares e tempos distintos.

    Em contraposição às cidades excelentes, Al-Farabi delineia uma gama de cidades contrárias que se dividem em: “a cidade ignorante, a cidade depravada, a cidade errática e a cidade desorientada”.. Grosso modo, a cidade ignorante comporta os habitantes (ou existentes) que desconhecem a felicidade e que nem ao menos sabem que podem alcançá-la através da própria cidade e de seu governante ou de seu grupo de governantes; a depravada, por sua vez, engloba as ações dos habitantes que se assemelham às cidades ignorantes, ainda que desfrutem das opiniões das cidades excelentes; a errática, outrora compartilhando das ideias e das ações das cidades excelentes, foi bombardeada com opiniões externas que mudaram o conceito da cidade em si e foram transmutadas em um tortuoso caminho que leva os existentes a um caminho diferente da felicidade; e, por fim, a desorientada traz o governante como um símbolo falso de inspiração, cujos motivos e objetivos podem ser usados para “falsificações, imposturas e ilusão”, deturpando a ideia da felicidade e induzindo os habitantes a uma realização equivocada.

    Para além das delineações acerca das cidades contrárias às excelentes, Al-Farabi também discorre sobre a caracterização dos habitantes dessas cidades, explorando de que forma a pseudo-felicidade ou a falta de conhecimento dela existe em detrimento do que é a verdadeira felicidade. E, a partir das análises feitas pelo pensador, é possível associar esses conceitos a ‘Barbie’.

    Infundido com questões existencialistas e metafísicas que nutrem de inúmeros paralelos com o pensamento de Al-Farabi, um dos pontos de encontro entre a produção cinematográfica e A Cidade Excelente reside no personagem de Ken e de que forma ele emerge como um governante da cidade contrária à excelente após afastar-se do status quo em que todos os Kens estavam submissos à Barbie e colocar em prática um plano de “sequestro social” em que os valores de uma outrora cidade excelente são deturpados a seu bel-prazer e através de motivos ególatras que não prezam pelo aperfeiçoamento do humano, mas sim pela conquista bélica de algo que apenas ressoa familiar à felicidade.

    Em determinado momento do longa-metragem, Ken se depara com uma série de livros que exaltam a masculinidade em sua forma mais estereotipada – um recurso estilístico adotado com sabedoria por Gerwig na produção – e, tendo contato com uma perspectiva que se afasta do papel a que era destinado na Barbieland, ele resolve voltar para casa para mostrar aos outros Kens que, na verdade, o mundo real é essencialmente pautado no patriarcalismo e no tradicionalismo de gênero, em que “as mulheres devem ser submissas ao homem”. Assim, ele utiliza um conhecimento recém-adquirido para remodelar a estrutura social do lugar onde mora e afastá-lo do conceito de cidade excelente para transformá-la em uma cidade contrária.

    É possível associar as ações de Ken aos quatro tipos de cidades contrárias delineadas por Al-Farabi. Iniciando com a cidade ignorante, em que os habitantes desconhecem a felicidade, Ken anuncia aos outros companheiros que eles devem tomar propriedade de Barbieland para saírem da condição de subjugados às Barbies e alçarem voo em direção à soberania. Nota-se o diálogo que a construção do arco do personagem de Gosling à cidade do coletivo, uma das subcategorias da cidade ignorante, em que os supostos governantes “estão em conformidade com a designação de suas cidades, onde cada um deles somente governa a cidade na qual ele é soberano com o intuito de realizar seus caprichos e sua propensão”. Ora, ao serem influenciados pelo Ken “primordial”, por assim dizer, os outros Kens percebem que podem utilizar a exaltação da masculinidade tóxica e estereotípica para mascararem as inseguranças e adotarem um semblante de governantes sem permitir que a busca da felicidade seja, de fato, uma opção dos habitantes. E, impotentes às forças externas e às opiniões diferentes que adentraram Barbieland, as Barbies se transfiguram em figuras submissas – refletindo o caráter de uma cidade errática.

    As feições da cidade ignorante e da errática, quando unidas dentro do cosmos construído por Gerwig, culminam nas características da cidade depravada: à medida que a influência externa trazida por Ken rearranja o modelo de cidade que outrora existia em Barbieland, as ações de cada um dos personagens também passam a se respaldar nas ações dos existentes na cidade ignorante, por mais que acreditem estar em uma cidade excelente e emulem, de modo inautêntico, seus ideários. Por fim, Barbieland se fecha em uma cidade desorientada, em que “seu comandante, o primeiro, é alguém que estima ser inspirado sem que o seja” – ou, no caso, o conglomerado de Kens que ascendem ao poder sem terem as qualidades de um bom governante e premeditando uma queda que, conforme nos aproximamos do desfecho do filme, retorna a própria cidade ao seu status de excelência.

    A verdade é que, após a tomada de controle por parte dos Kens, percebemos que Barbieland nunca, de fato, sagrava-se como cidade excelente. A felicidade impressa pelas Barbies ao seu próprio mundo e aos Kens era momentânea e fugaz, visto que a partida da versão interpretada por Robbie indicava uma considerável remodelação no sistema político-social daquela nação e cultivou as sementes necessárias para que o Ken encarnado por Gosling pudesse desmantelar a ordem outrora estabelecida.

    Barbie, que poderia ter sido encarada como uma “governante da cidade excelente” ao lado das outras variantes, precisava passar por uma jornada de autodescoberta para perceber que renegar os Kens a meros peões em um jogo muito mais complexo do que parece teria resultados catastróficos – motivo pelo qual, com sua volta a Barbieland e seu entendimento de que a estrutura precisava passar por modificações consideráveis, ela evolui ao patamar de uma verdadeira governante, dotada de todos os requisitos para que a cidade, agora, guie os existentes à felicidade verdadeira.

    No vigésimo oitavo capítulo do livro, Al-Farabi discorre sobre as características que fazem de determinado humano um comandante da cidade excelente. O filósofo apresenta doze requisitos inatos que podem ou não destinar-se apenas a um representante do governo da cidade excelente ou a um grupo de pessoas – e, como vemos em Barbie’, faz-se a escolha da segunda opção. A personagem de Robbie, ao voltar do mundo real, nota que é necessário haver uma comunhão entre todos os habitantes da Barbieland, considerando que características como devoção ao aprendizado, completude de faculdades, boa memória, compreensão, justiça, sinceridade e tantos outros defendidos por Al-Farabi não estão, indispensavelmente, confinados em apenas um indivíduo – mas podem estar espalhados em vários.

    Após compreender que a excelência da cidade será alcançada através de um conjunto de fatores que inclui as Barbies, os Kens (e a presença de Midge e Allan, que entram como escapes cômicos da narrativa e uma menção jocosa aos bonecos fora de linha da Mattel), a protagonista resolve abdicar do lugar que ocupa dentro dessa estrutura social, tornar-se humana e assimilar a felicidade através de uma trajetória inesperada e que a coloca dentro de uma cidade excelente pessoal.

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