sexta-feira , 15 novembro , 2024

Artigo | Conheça ‘Kindred: Laços de Sangue’, icônico livro de Octavia E. Butler que vai virar série

O período pós II Guerra Mundial foi marcado por inúmeras mudanças socioeconômicas que se estenderam pelo restante do século XX e ganham cada vez mais importância à medida em que o mundo atinge um nível progressista considerável – e um desses aspectos definitivamente conversa sobre o protagonismo feminino nos mais diversos âmbitos laborais e criativos do ser humano, o qual retira as mulheres de um estigma submisso para colocá-las em um patamar equivalente aos homens e ao saturado patriarcalismo. E se hoje observamos uma luta que, mais que nunca, tornou-se muito importante para a constante movimentação da sociedade, é porque tivemos nomes muito presentes dentro desses âmbitos, principalmente o criativo, que permitiram tais brechas para mudanças – e um deles, talvez um esquecido com o passar do tempo e com a dominação dos meios de comunicação modernos, seja o de Octavia E. Butler.

Butler foi uma importante escritora afro-americana que ficou conhecida por ser uma das únicas a adentrar o universo da literatura sci-fi com seus escritos incríveis – sempre buscando um protagonismo feminino e negro em narrativas tão belamente escritas que fica muito difícil não se apaixonar pela primeira palavra. O título de “dama da ficção científica” não lhe foi concedido à toa: sua obra-prima Kindred: Laços de Sangue’ é uma análise antropológica e visceral de um dos períodos mais tortuosos e questionáveis da História mundial – a escravidão.

O livro, contado em primeira pessoa, evoca um estilo narrativo de grande parte da Inglaterra vitoriana, trazendo nomes como Jane Austen e Agatha Christie e utilizando suas estéticas de modo inegavelmente moderno. Afastando-se do excesso de descrição e até mesmo de uma cronologia linear, Butler mantém-se fiel à criação de personagens complexas e que tragam um contraste de épocas totalmente distintas – no caso, a heroína de nossa história é Dana, uma escritora negra que misteriosamente é transportada para meados do século XIX em uma Maryland pré-Guerra Civil americana, e pior: ela parece ser chamada pelas desventuras e episódios de quase morte enfrentados por um de seus ancestrais, o jovem Rufus Weylin, filho de brancos e, considerando a época em que está, uma figura com potencial perigo para sua sobrevivência.



O desejo de explorar e de compreender as mirabolantes viagens no tempo ganharam grande força em meio ao imaginário popular e ainda continuam a servir de principal base para a construção de distopias narrativas – é só analisarmos o estrondoso sucesso comercial de franquias atuais como Jogos Vorazes’ e as sagas Divergente’ e Maze Runner’. Entretanto, Butler se afasta dos estigmas do gênero, recusando-se inclusive a ser tachada como mais uma autora dentro desta vertente, e cria um escopo muito mais intimista e que não delineie exatamente os estereótipos de “mocinho” e “vilão” – e isso já diz muito a respeito de suas rendições literárias, visto que um tema como a escravidão poderia muito bem utilizar-se de saídas clichês para cada um de seus personagens. Mesmo com o perigo e com a tendência a ceder a saídas formulaicas, a autora mantém-se fiel a personagens complexos e que são marcados por erros e acertos que o tornam os mais humanos possíveis.

O mais interessante a ser analisado é que Dana, funcionando também como uma guardiã do pequeno Rufus, acompanha o seu crescimento ao longo da obra e é chamada apenas quando ele está prestes a morrer – seja afogado em um rio, seja espancado pelas ofensas cometidas à mulher de outro homem, seja sangrando até a morte. Logo, o que parecem ser apenas horas na cronologia atual, representam dias, meses ou até anos em um passado não tão distante assim. E ela, sendo uma incrível conhecedora da História estadunidense, não apenas encara aquilo como um mero espectador, mas é obrigada a adotar todos os costumes de subserviência para a manutenção de sua própria vida – e, conforme a trama se desenrola, ela acaba por levar seu marido Kevin consigo e ambos adotam personagens para se manterem a salvo, um sendo o dono e outro sendo o servo.

Butler alcança grande sucesso ao trazer temas de bastante questionamento e que, em uma montagem narrativa paralela, também refletem alguns costumes seculares que ainda se mantêm presentes na sociedade contemporânea – afinal, ainda que em 1973 a escravidão já não existisse mais, Dana foi mantida indireta e psicologicamente em um patamar de aceitação mandatória frente aos desejos de Kevin que, quando contrariado, se transformava em um ser irritadiço e extremamente insuportável. A romancista mais uma vez busca sua identidade de obras anteriores para compor essa epopeia histórica: afastando-se do generalismo científico, ela traz o herói numa posição de sobrevivente, muitas vezes em uma situação de submissão vexatória e cuja posição é, em grande parte, marginalizada.

A questão racial obviamente é tratada como um dos motes principais – afinal, Dana é vista em uma posição quase humana ao mostrar-se inteligente, sábia e habilidosa com a escrita e com a leitura, representando tanto uma ameaça quanto um “presente” para a família Weylin. Entretanto, mesmo sendo considerada como mais esperta, ela não está acostumada àquilo e até mesmo culpa-se por adotar o termo e por observar todos aqueles cruéis acontecimentos de modo passivo. As ramificações dessa análise são inúmeras e tão profundas, que é um trabalho difícil traduzir em explicações didáticas o poder que as palavras de Butler trazem para as páginas – e como cada construção tem a sua importância para chocar o leitor e possibilitar-lhe uma visão mais visceral e intimista dos horrores da escravidão.

A história tem como cenário a casa e os territórios adjacentes do patriarca da família, respaldado pelo apartamento que Dana e Kevin dividem no século XX. Mesmo com essa pouca expansão geográfica, a autora articula tão bem cada arco que nos sentimos em um labirinto interminável de tortura, luta e enfrentamento dos obstáculos sem cair na ruína da monotonia e da mesmice. Cada um dos atos é delineado com tamanha perfeição que, com exceção de alguns breves momentos em que parecemos ver o mesmo do mesmo, não podemos deixar de nos chocar com a atitude dos personagens, cuja catarse no leitor oscila o tempo todo entre ódio, amor, complacência e empatia. “É incrível como é fácil ceder à escravidão”, a protagonista devaneia em certo momento.

Kindred é uma obra-prima atemporal e histórica. Sua complexidade e sua envolvência são tão grandes que classificá-lo em determinado gênero é reduzi-lo a um centésimo de todo o potencial que apresenta – e nada disso seria possível sem a brilhante e criativa mente de uma das autoras que definitivamente será lembrada pela eternidade.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Butler foi uma importante escritora afro-americana que ficou conhecida por ser uma das únicas a adentrar o universo da literatura sci-fi com seus escritos incríveis – sempre buscando um protagonismo feminino e negro em narrativas tão belamente escritas que fica muito difícil não se apaixonar pela primeira palavra. O título de “dama da ficção científica” não lhe foi concedido à toa: sua obra-prima Kindred: Laços de Sangue’ é uma análise antropológica e visceral de um dos períodos mais tortuosos e questionáveis da História mundial – a escravidão.

O livro, contado em primeira pessoa, evoca um estilo narrativo de grande parte da Inglaterra vitoriana, trazendo nomes como Jane Austen e Agatha Christie e utilizando suas estéticas de modo inegavelmente moderno. Afastando-se do excesso de descrição e até mesmo de uma cronologia linear, Butler mantém-se fiel à criação de personagens complexas e que tragam um contraste de épocas totalmente distintas – no caso, a heroína de nossa história é Dana, uma escritora negra que misteriosamente é transportada para meados do século XIX em uma Maryland pré-Guerra Civil americana, e pior: ela parece ser chamada pelas desventuras e episódios de quase morte enfrentados por um de seus ancestrais, o jovem Rufus Weylin, filho de brancos e, considerando a época em que está, uma figura com potencial perigo para sua sobrevivência.

O desejo de explorar e de compreender as mirabolantes viagens no tempo ganharam grande força em meio ao imaginário popular e ainda continuam a servir de principal base para a construção de distopias narrativas – é só analisarmos o estrondoso sucesso comercial de franquias atuais como Jogos Vorazes’ e as sagas Divergente’ e Maze Runner’. Entretanto, Butler se afasta dos estigmas do gênero, recusando-se inclusive a ser tachada como mais uma autora dentro desta vertente, e cria um escopo muito mais intimista e que não delineie exatamente os estereótipos de “mocinho” e “vilão” – e isso já diz muito a respeito de suas rendições literárias, visto que um tema como a escravidão poderia muito bem utilizar-se de saídas clichês para cada um de seus personagens. Mesmo com o perigo e com a tendência a ceder a saídas formulaicas, a autora mantém-se fiel a personagens complexos e que são marcados por erros e acertos que o tornam os mais humanos possíveis.

O mais interessante a ser analisado é que Dana, funcionando também como uma guardiã do pequeno Rufus, acompanha o seu crescimento ao longo da obra e é chamada apenas quando ele está prestes a morrer – seja afogado em um rio, seja espancado pelas ofensas cometidas à mulher de outro homem, seja sangrando até a morte. Logo, o que parecem ser apenas horas na cronologia atual, representam dias, meses ou até anos em um passado não tão distante assim. E ela, sendo uma incrível conhecedora da História estadunidense, não apenas encara aquilo como um mero espectador, mas é obrigada a adotar todos os costumes de subserviência para a manutenção de sua própria vida – e, conforme a trama se desenrola, ela acaba por levar seu marido Kevin consigo e ambos adotam personagens para se manterem a salvo, um sendo o dono e outro sendo o servo.

Butler alcança grande sucesso ao trazer temas de bastante questionamento e que, em uma montagem narrativa paralela, também refletem alguns costumes seculares que ainda se mantêm presentes na sociedade contemporânea – afinal, ainda que em 1973 a escravidão já não existisse mais, Dana foi mantida indireta e psicologicamente em um patamar de aceitação mandatória frente aos desejos de Kevin que, quando contrariado, se transformava em um ser irritadiço e extremamente insuportável. A romancista mais uma vez busca sua identidade de obras anteriores para compor essa epopeia histórica: afastando-se do generalismo científico, ela traz o herói numa posição de sobrevivente, muitas vezes em uma situação de submissão vexatória e cuja posição é, em grande parte, marginalizada.

A questão racial obviamente é tratada como um dos motes principais – afinal, Dana é vista em uma posição quase humana ao mostrar-se inteligente, sábia e habilidosa com a escrita e com a leitura, representando tanto uma ameaça quanto um “presente” para a família Weylin. Entretanto, mesmo sendo considerada como mais esperta, ela não está acostumada àquilo e até mesmo culpa-se por adotar o termo e por observar todos aqueles cruéis acontecimentos de modo passivo. As ramificações dessa análise são inúmeras e tão profundas, que é um trabalho difícil traduzir em explicações didáticas o poder que as palavras de Butler trazem para as páginas – e como cada construção tem a sua importância para chocar o leitor e possibilitar-lhe uma visão mais visceral e intimista dos horrores da escravidão.

A história tem como cenário a casa e os territórios adjacentes do patriarca da família, respaldado pelo apartamento que Dana e Kevin dividem no século XX. Mesmo com essa pouca expansão geográfica, a autora articula tão bem cada arco que nos sentimos em um labirinto interminável de tortura, luta e enfrentamento dos obstáculos sem cair na ruína da monotonia e da mesmice. Cada um dos atos é delineado com tamanha perfeição que, com exceção de alguns breves momentos em que parecemos ver o mesmo do mesmo, não podemos deixar de nos chocar com a atitude dos personagens, cuja catarse no leitor oscila o tempo todo entre ódio, amor, complacência e empatia. “É incrível como é fácil ceder à escravidão”, a protagonista devaneia em certo momento.

Kindred é uma obra-prima atemporal e histórica. Sua complexidade e sua envolvência são tão grandes que classificá-lo em determinado gênero é reduzi-lo a um centésimo de todo o potencial que apresenta – e nada disso seria possível sem a brilhante e criativa mente de uma das autoras que definitivamente será lembrada pela eternidade.

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