Em 2009, quase três décadas depois de ter comandado o clássico e aclamado ‘O Estranho Mundo de Jack‘, Henry Selick estava pronto para fazer história novamente ao adaptar a arrepiante narrativa ‘Coraline e o Mundo Secreto’ para as telonas.
Baseando-se nos escritos do lendário autor Neil Gaiman, Selick voltou a explorar o gênero da animação em stop-motion para narrar a jornada de Coraline Jones (Dakota Johnson), uma jovem garota que se mudou contra a própria vontade para uma casa isolada no interior dos Estados Unidos, afastada dos amigos e do mundo que outrora conhecia. Apesar de cruzar caminho com inúmeros personagens bizarros e excêntricos, Coraline sempre se sentiu sozinha – isso é, até encontrar uma misteriosa porta escondida no casarão e descobrir um universo “ao contrário”, em que todos os seus desejos se realizassem.
Considerando que estamos lidando com uma obra assinada por Gaiman, a beleza e o encantamento com que Coraline enxerga essa nova dimensão não duram muito tempo – afinal, um mal espreita sua ingenuidade e sua inocência para mantê-la presa em um ciclo de caos e de terror. A princípio, a protagonista compreende que está em um lugar muito similar àquele que vive, mas com uma diferença: o irrefreável otimismo de seus Outros Pais e de todos que habitam o Outro Mundo funcionam como máscaras para os terríveis objetivos da Outra Mãe (dublada pela sempre incrível Teri Hatcher), também conhecida como Bela Dama, e que se transmuta de mãe em mãe para atrair as crianças e se alimentar de suas almas.
Quando lemos essa análise nua e crua sobre o teor do enredo, jamais imaginaríamos que a animação fosse direcionada aos mais jovens. Entretanto, é notável como Selick, talvez pegando algumas páginas emprestadas de obras conterrâneas que fizeram algo similar, arquiteta uma aventura destinada aos mais diversos públicos, desde as crianças até os adultos. Pessoalmente, lembro-me muito bem de me assustar com os botões nos olhos dos personagens do Outro Mundo e de como a Bela Dama se transforma em uma criatura aracnídea assustadora para atacar Coraline.
A genialidade da condução de Selick está atrelada à genialidade criativa de Gaiman – e é claro que o autor não havia escrito o romance pensando em levá-lo às mídias audiovisuais, o que deixa essa naturalidade e esse complexo organismo ainda mais surpreendentes. Há um notável respeito do diretor ao novelista e uma mutualidade de pensamento que se infiltra nas sutis entrelinhas da produção.
Até mesmo o nome da dimensão que divide a portinhola é genial – no português, traduzido como o supracitado Outro Mundo. A escolha do pronominal indefinido (other, no original) carrega consigo um teor simbólico de extremo valor para os laços entre pai e filho e para os futuros laços que o filho irá solidificar com o mundo: é normal que pessoas mais velhas alertem às crianças sobre possíveis perigos que possam encontrar no caminho – inclusive estranhos que podem “sequestrá-las” (não consigo contar nos dedos quantas vezes ouvi isso de minha mãe). Ao mesmo tempo, a questão do outro é chamativa por ser nova e por ser diferente do protegido e confortável microcosmos a que estamos acostumados – ou seja, nosso lar.
Coraline, sendo uma criança, ainda não tem experiência suficiente para lidar com os males do mundo e, movida pela imaginação e pelo agravante dos pais serem viciados em trabalho, é arrastada pela magia que se esconde atrás da portinhola. O mundo secreto que acompanha o título do longa-metragem coloca ambas as partes em um patamar de simbiose que é explorada ao extremo por um impecável roteiro e uma preocupação imagética que puxa elementos desde o expressionismo alemão até o minimalismo estético.
Assim como tantos outras produções da Laika, como ‘ParaNorman’ e ‘Kubo e as Cordas Mágicas’, escolher personagens mais jovens é emblemático. Coraline, Norman e Kubo são estandartes da plasticidade sociológica e o fato de lidarem com eventos que fogem do
“normal” e que não são representados no dia a dia permite que cresçam e aprendam a reconhecer os próprios erros, utilizando as fraquezas como motores para destruir os vilões e resgatar aquilo que perderam. Coraline, sendo uma das primeiras a ganhar palanque considerável no mainstream e se afastando por completo da fabulesca e míope personalidade das princesas clássicas da Walt Disney, por exemplo, tem espaço de amadurecimento infinito – sendo apresentada, dessa maneira, como uma menina multifacetada que compreende os tortuosos caminhos que o destino lhe aguarda.
A heroína canaliza temas de universalidade bastante clara, sem que sejam analisados de forma cansativa e enfadonha. Incursões sobre medo, paranoia, confiança, traição e coragem de desdobram em cada do filme, ramificando-se em um crescendo que prenuncia, desde a sequência inicial, o embate final entre Coraline e seus temores mais profundos – motivo pelo qual o longa merece e deve ser redescoberto geração a geração.