A Walt Disney Studios elevou as expectativas da onda de remakes em live-action quando anunciou um longa-metragem de origem de uma das personagens mais icônicas da história: Cruella de Vil.
A antagonista de ‘101 Dálmatas’ ascendeu, desde sua estreia nas telonas ainda em 1961, como uma das mais bem construídas da Casa Mouse – e uma das mais perversas, sem sombra de dúvida. A guru da moda, dona de uma maison inglesa cuja marca principal eram as peles de animais, resolveu voltar sua atenção para uma horda de dálmatas para dar o próximo passo em sua psicopatia irrefreável. Não é surpresa que ela tenha sido revisitada diversas vezes, sendo levada para animações derivadas e um dos primeiros live-actions da Casa Mouse com Glenn Close encarnando a vilã.
Obviamente a aclamada atriz eternizou a personagem com uma rendição espetacular (e um dos únicos pontos positivos dos dois filmes lançados entre os anos 1990 e 2000). Então como as coisas seriam diferentes?
Craig Gillespie, que ficou a encargo da direção de ‘Cruella’, tinha uma visão bastante clara desde o começo: além de dar vida a uma narrativa que apresentasse um novo lado à personagem titular, ele se uniu com Jenny Beavan, conhecida pelo premiado trabalho como figurinista em ‘Mad Max: Estrada da Fúria’, para uma repaginação fashion que se afastasse da costumeira haute couture de meados do século passado para a introdução da estética punk-rock, um dos principais movimentos de transgressão contra a cultura mainstream do Reino Unido.
A princípio, é notável que a inspiração de Beavan provém das incursões artísticas da obra de 2015, fosse pela ambivalência representativa do couro, fosse pela potência das vestes futuristas que caminhavam com o cenário pós-apocalíptico. Porém, não estamos lidando com uma atmosfera distópica – muito pelo contrário: estamos na transição entre o auge e a decadência das casas de moda britânicas da década de 1970, em que a falta de acessibilidade e o plateau criativo tomavam conta das grandes mentes da época. E é nesse circinal panorama que Cruella, interpretada com maestria por Emma Stone, percebe que está na hora de se colocar como um dos símbolos do futuro.
Desde a primeira aparição da protagonista, nascida Estella, nota-se um apreço pela contravenção. A jovem, apaixonada por desenhos e por um futuro como estilista, era alicerçada nas próprias convicções e não deixava que outras pessoas ditassem regras a ela – motivo pelo qual não se importava com o cabelo dicromático ou com a jaqueta propositalmente adornada com excessos, sempre se destacando em meio à amálgama vinho dos uniformes de seus colegas; mais tarde, tendo perdido a mãe num trágico “acidente”, junta-se a dois ladrões e passa a construir disfarces para conseguir roubar o que puder para sobreviver, mas sempre apoiando-se na moda como guia.
Não demorou muito até que Cruella cruzasse caminho com a Baronesa (Emma Thompson), uma renomada e narcisista designer que, na verdade, emerge como a forcinha da qual a protagonista precisava para sair de seu casulo e reclamar pelo trono que lhe pertencia. Tudo se explica com as constantes aparições do alter-ego de Estella do modo mais chamativo possível, fosse com um vestido púrpura em uma festa em branco e preto, fosse com uma montagem DIY de tecidos desperdiçados, posando sobre um caminhão de lixo. Todas as incursões (incluindo a metalinguística maquiagem The Future no rosto), partem do revolucionário momento setentista já mencionado.
Mais do que uma mera desobediência, o punk começou como “uma proclamação e um abraço da discórdia”. Ganhando espaço num cenário cujas incertezas e fragilidades sociopolíticas eram fruto das consequências pós-II Guerra Mundial – e apoiado por artistas como Malcolm McLaren e Vivienne Westwood, por exemplo -, as principais críticas vinham como uma resposta à chatice da cultura que estava em voga (ou seja, elitizadas ideologias que já não tinham mais lugar entre a nova geração e que representava um retrocesso em praticamente todas as camadas da comunidade). É claro que o punk teve início em Nova York, mas talvez tenha encontrado seu ápice em Londres, que permanecia como um dos centros de atenção do planeta.
Cruella e a Baronesa, nesse espectro, são as duas linhas de força opostas que entram em embate no filme: obviamente, a Baronesa é a representação de uma burguesia que ainda acha que tem poder, mas que está tão envolvida nas próprias mentiras que não percebe uma tsunami vindo em seu caminho; toda a hipocrisia e a iconografia idolatrada por aqueles que detinham o domínio da sociedade são confrontadas pela originalidade diabólica de Cruella: assim como o punk, ninguém entende exatamente o que ela quer, mas todos são atraídos pela visceralidade violenta das constatações que apresenta. Suas aparições em público são potencializadas por coreografias explosivas, figurinos que variam desde o mais esvoaçante vestido até a sensualidade do couro, ameaçando o império fashion da Baronesa e encontrando aliados nas camadas mais marginalizadas (vide Artie, vivido por John McCrea).
É claro que os símbolos mais clássicos da estética punk não aparecem com tanta clareza em ‘Cruella’, mas é notável o modo como as mensagens de rebelião e de não-conformidade despontam de praticamente todos os lados da narrativa. E, por mais que tenha seus defeitos, o live-action já alcançou tamanha popularidade por se relacionar com tanta afeição àqueles que entendem a necessidade da mudança e que sabem que as regras precisam ser quebradas.