sábado , 2 novembro , 2024

Artigo | Dualidade sobre a vida e a morte transforma ‘Missa da Meia-Noite’ em pura análise metafísica

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Cuidado: muitos spoilers à frente.

Mike Flanagan retornou recentemente com mais uma produção original para a Netflix, intitulada Missa da Meia-Noite – e, com rapidez assustadora, se tornou um dos melhores títulos não apenas do ano, mas também de sua carreira.

Ambientada na fictícia Ilha Crockett, a narrativa tem como ponto de início a chegada de um misterioso reverendo chamado Paul Hill (Hamish Linklater), que substitui o já velho monsenhor local e promove uma mudança radical no cotidiano dos moradores da comunidade insular. É a partir daí que cada um dos protagonistas e coadjuvantes mergulha de cabeça em uma autorreflexão sobre a vida e a morte, a fé e a ciência, o medo e a coragem – centrado, da mesma forma, no arco de redenção do jovem Riley Flynn (Zach Gilford), recém-saído da prisão por ter cometido homicídio culposo.

Apesar da intrincada trama, Flanagan é auxiliado tanto por uma equipe criativa de peso quanto por um estelar elenco que encarna cada uma das metáforas que se espalham pelos episódios. Assim como as outras incursões do realizador, como A Maldição da Residência Hill e ‘A Maldição da Mansão Bly’, há um apreço pelo terror gótico e por elementos sobrenaturais – ora, temos até mesmo a presença de uma criatura vampiresca que se alimenta das esperanças (e do sangue) dos personagens. Entretanto, há um outro aspecto analisado com profundidade por Flanagan e por seus colaboradores que se afasta das obviedades do horror e abre espaço para discussões metafísicas que remontam a explorações filosóficas de séculos passados.

Se há um tema que sempre esteve ativo na sociedade, desde as primeiras inflexões humanas, esse é o da morte. Afinal, não há explicações concretas do que podemos esperar após nosso tempo no plano terreno chegar ao fim, ainda que algumas mitologias tentem buscá-las: os egípcios acreditavam que a vida é apenas um dos capítulos de uma longínqua jornada que continua com a morte (e tal crença se estenderia para inúmeras ramificações religiosas e filosóficas, como o espiritismo, que compreende a existência da reencarnação); os católicos encaram a passagem da vida para a morte como consequência direta das ações que tomamos no espectro mundano, motivo pelo qual há a clara distinção entre o paraíso e o inferno; ademais, há uma crença tão igual do vazio houve antes do nascimento e do vazio que haverá depois de morrermos.

De qualquer forma, as questões envolvendo a morte despertam curiosidade e receio naqueles que ousem se aventurar em tais escavações – ainda mais pelo fato das espécies animais, incluindo a nossa, terem uma afeição intrínseca pela conservação, ou seja, pelo medo da destruição do organismo. Há um consenso generalizado de que a morte é o que coloca em xeque a própria essência do ser – algo rebatido, por exemplo, pelo pensador polonês Arthur Schopenhauer, que afirma que o medo da morte é uma tolice. Segundo ele, a incerteza reside sobre a vida (um período tão efêmero que não deveria ter o peso que tem sobre nós), enquanto o temor pela morte se destrincha em um não conhecimento sobre o não-ser, ou seja, sobre o infinito. Se não arreceamos frente à infinitude anterior à nossa existência, por que deveríamos nos preocupar com a infinitude futura?

Flanagan parece adotar com certo cinismo esse pensamento schopenheauriano e resolve fornecer uma resposta, por mais incrível que seja, a essas perguntas existencialistas. Ainda que finque suas inspirações nos escritos bíblicos do catolicismo ortodoxo, ele é feliz o suficiente ao escolher passagens certeiras que fogem das particularidades ideológicas e se expandem para uma universalidade convidativa – representado, até mesmo, pela crescente presença dos habitantes da ilha em sua congregação. Paul, em momento algum, se mostra como um representante da figura divina em meio aos humanos, mas sim um arauto de experiências pessoas que transcendem as fracas convicções e que trazem uma aura de compreensão quase blasfema (uma sutil ironia respingada na produção).

O vampiro, ou “anjo”, como é caracterizado por Paul e por aqueles que decidem segui-lo, exige, em troca da vida eterna – mais uma construção paradoxal, considerando que homem e eternidade são conceitos conflitantes -, um sacrifício que exige a boa morte (cuja derivação do grego originou o termo eutanásia) para que o retorno à vida, agora repleta de conhecimentos que ultrapassam os limites do homem, ocorra sem quaisquer problemas. Há um complexo jogo entre livre arbítrio e influência que se respalda em estudos feitos por Immanuel Kant e por Baruch Spinoza, por exemplo, no tocante à boa morte voluntária (benéfica para a pessoa) e à morte do coletivo – afinal, a comunidade ou aceita de bom grado uma mudança radical naquilo que adotavam como normal, ou é levada a se submeter à nova verdade, seja para o bem ou para o mal.

A luta contra a morte é o que prenuncia a ruína dos personagens: Paul, cego pelo poder que lhe foi dado, não consegue enxergar além da necessidade incontrolável de compartilhar seus dons e a verdade que se mostrou a ele – e dá aval, ainda que inconscientemente, para a ascensão de um perigoso fanatismo encarnado por Bev Keane (Samantha Sloyan), que não aceita qualquer discordância do presente que recaiu sobre a comunidade. E, à medida que Crockett se transforma em uma espécie de conclave que renasceu como seu salvador, não percebem que a batalha já esteve perdida há muito tempo – e que a conquista sobre a inevitabilidade da passagem ao outro plano (seja lá qual ele for) foi asfixiada pela própria ambição desmedida.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Ambientada na fictícia Ilha Crockett, a narrativa tem como ponto de início a chegada de um misterioso reverendo chamado Paul Hill (Hamish Linklater), que substitui o já velho monsenhor local e promove uma mudança radical no cotidiano dos moradores da comunidade insular. É a partir daí que cada um dos protagonistas e coadjuvantes mergulha de cabeça em uma autorreflexão sobre a vida e a morte, a fé e a ciência, o medo e a coragem – centrado, da mesma forma, no arco de redenção do jovem Riley Flynn (Zach Gilford), recém-saído da prisão por ter cometido homicídio culposo.

Apesar da intrincada trama, Flanagan é auxiliado tanto por uma equipe criativa de peso quanto por um estelar elenco que encarna cada uma das metáforas que se espalham pelos episódios. Assim como as outras incursões do realizador, como A Maldição da Residência Hill e ‘A Maldição da Mansão Bly’, há um apreço pelo terror gótico e por elementos sobrenaturais – ora, temos até mesmo a presença de uma criatura vampiresca que se alimenta das esperanças (e do sangue) dos personagens. Entretanto, há um outro aspecto analisado com profundidade por Flanagan e por seus colaboradores que se afasta das obviedades do horror e abre espaço para discussões metafísicas que remontam a explorações filosóficas de séculos passados.

Se há um tema que sempre esteve ativo na sociedade, desde as primeiras inflexões humanas, esse é o da morte. Afinal, não há explicações concretas do que podemos esperar após nosso tempo no plano terreno chegar ao fim, ainda que algumas mitologias tentem buscá-las: os egípcios acreditavam que a vida é apenas um dos capítulos de uma longínqua jornada que continua com a morte (e tal crença se estenderia para inúmeras ramificações religiosas e filosóficas, como o espiritismo, que compreende a existência da reencarnação); os católicos encaram a passagem da vida para a morte como consequência direta das ações que tomamos no espectro mundano, motivo pelo qual há a clara distinção entre o paraíso e o inferno; ademais, há uma crença tão igual do vazio houve antes do nascimento e do vazio que haverá depois de morrermos.

De qualquer forma, as questões envolvendo a morte despertam curiosidade e receio naqueles que ousem se aventurar em tais escavações – ainda mais pelo fato das espécies animais, incluindo a nossa, terem uma afeição intrínseca pela conservação, ou seja, pelo medo da destruição do organismo. Há um consenso generalizado de que a morte é o que coloca em xeque a própria essência do ser – algo rebatido, por exemplo, pelo pensador polonês Arthur Schopenhauer, que afirma que o medo da morte é uma tolice. Segundo ele, a incerteza reside sobre a vida (um período tão efêmero que não deveria ter o peso que tem sobre nós), enquanto o temor pela morte se destrincha em um não conhecimento sobre o não-ser, ou seja, sobre o infinito. Se não arreceamos frente à infinitude anterior à nossa existência, por que deveríamos nos preocupar com a infinitude futura?

Flanagan parece adotar com certo cinismo esse pensamento schopenheauriano e resolve fornecer uma resposta, por mais incrível que seja, a essas perguntas existencialistas. Ainda que finque suas inspirações nos escritos bíblicos do catolicismo ortodoxo, ele é feliz o suficiente ao escolher passagens certeiras que fogem das particularidades ideológicas e se expandem para uma universalidade convidativa – representado, até mesmo, pela crescente presença dos habitantes da ilha em sua congregação. Paul, em momento algum, se mostra como um representante da figura divina em meio aos humanos, mas sim um arauto de experiências pessoas que transcendem as fracas convicções e que trazem uma aura de compreensão quase blasfema (uma sutil ironia respingada na produção).

O vampiro, ou “anjo”, como é caracterizado por Paul e por aqueles que decidem segui-lo, exige, em troca da vida eterna – mais uma construção paradoxal, considerando que homem e eternidade são conceitos conflitantes -, um sacrifício que exige a boa morte (cuja derivação do grego originou o termo eutanásia) para que o retorno à vida, agora repleta de conhecimentos que ultrapassam os limites do homem, ocorra sem quaisquer problemas. Há um complexo jogo entre livre arbítrio e influência que se respalda em estudos feitos por Immanuel Kant e por Baruch Spinoza, por exemplo, no tocante à boa morte voluntária (benéfica para a pessoa) e à morte do coletivo – afinal, a comunidade ou aceita de bom grado uma mudança radical naquilo que adotavam como normal, ou é levada a se submeter à nova verdade, seja para o bem ou para o mal.

A luta contra a morte é o que prenuncia a ruína dos personagens: Paul, cego pelo poder que lhe foi dado, não consegue enxergar além da necessidade incontrolável de compartilhar seus dons e a verdade que se mostrou a ele – e dá aval, ainda que inconscientemente, para a ascensão de um perigoso fanatismo encarnado por Bev Keane (Samantha Sloyan), que não aceita qualquer discordância do presente que recaiu sobre a comunidade. E, à medida que Crockett se transforma em uma espécie de conclave que renasceu como seu salvador, não percebem que a batalha já esteve perdida há muito tempo – e que a conquista sobre a inevitabilidade da passagem ao outro plano (seja lá qual ele for) foi asfixiada pela própria ambição desmedida.

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