domingo , 17 novembro , 2024

Artigo | ‘E Não Sobrou Nenhum’ é uma das melhores adaptações de Agatha Christie que você provavelmente não conhece

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O legado da escritora inglesa Agatha Christie é, inquestionavelmente, um dos maiores de toda a história. Não é à toa que resida ao lado de Sir Arthur Conan Doyle como um dos principais nomes da literatura criminal, tendo feito sucesso crítico e comercial durante sua vida, além de ter sido protagonista de verdadeiros mistérios. Até hoje, seus escritos perduram no imaginário popular e a reafirmam com a quase redundante alcunha de Dama do Crime.

Apenas nos últimos anos, diversos livros da autora ganharam adaptações cinematográficas e seriadas: desde a releitura de John Malkovich para os Os Crimes ABC’ até o mediano e modernizado remake de Assassinato no Expresso do Oriente’, passando pela interessante e esquecida investida de A Casa Torta’. Porém, ainda que esteticamente competentes, é inegável dizer que houve sempre uma sensação frustrante ao final das aventuras, como se algo do material original estivesse faltando. Isso é, até nos depararmos com a icônica produção da BBC que toma as rédeas de uma das arrepiante jornadas mais conhecidas de Christie, E Não Sobrou Nenhum’. A minissérie de apenas três episódios não apenas capturou a essência dos personagens e da trama originais, como fez um ótimo uso do drama familiar para construir um chocante tour-de-force do começo ao fim.



A história gira em torno de um grupo de pessoas que é convidada pelos retraídos e talvez excêntricos Sr. e Sra. U.N. Owen, magnatas todos de uma ilha intitulada Ilha do Soldado. Os oito personagens principais recebem cartas estranhas, diferentes umas das outras, e são levados para o meio do oceano onde são recepcionados por um casal de empregados. Entretanto, os Owen não estão por ali e, conforme o primeiro dia chega ao fim, fica bem claro que as coisas não são exatamente o que parecem – e que eles podem ter sido atraídos para uma armadilha.

Logo de cara, fica claro para os telespectadores que a sinestesia aventuresca sempre presente nos romances de Christie deixa de existir em prol de uma brutalidade narrativa, uma aridez capturada com maestria pelas habilidades da roteirista Sarah Phelps. Afastando-se da apresentação sistemática dos protagonistas, como vemos no livro, o público é introduzido a uma agourenta e ambígua backstory estrelada por Vera Claythorne (Maeve Dermody) – que basicamente funciona como a heroína/final girl do show. De fato, não compreendemos exatamente o que está acontecendo, mas percebemos que ela está hesitante em aceitar o trabalho como secretária dos Owen ao descobrir que deverá viajar para a ilha devido a um trauma não muito remoto que continua a assombrá-la. Entretanto, ela decide acatar o novo emprego.

Pouco depois, Vera se encontra com os outros hóspedes, todos desconhecidos entre si que foram requisitados, cada qual para uma situação: o insuportável e infantil ator Anthony Marston (Douglas Booth), que tem irreverência de sobre para irritar todos os seus companheiros; o calculista juiz Lawrence Wargrave (Charles Dance); o histérico médico Edward Armstrong (Toby Stephens); a esnobe socialite Emily Brent (Miranda Richardson), entre outros. Cada um deles se porta com superioridade, tentando compreender e descobrir por conta própria quais os propósitos de seus anfitriões e porque escolheram pessoas tão diferentes entre si para visitarem a gigantesca mansão.

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Pois bem, não demora muito até que descubram do que esse inexplicável jogo se trata: durante o primeiro jantar, o mordomo Thomas Rogers (Noah Taylor) coloca um velho disco para tocar, revelando os supostos crimes que cada um dos convidados cometeu – todos responsáveis pela morte de inocentes, mas nenhum deles tendo enfrentado as consequências de seus pecados e saído impunes. É claro que eles encaram aquilo como uma brincadeira de muito mal gosto e começam a desenvolver um ressentimento mortal pelos Owen; isso é, até Anthony tomar uma bebida envenenada e morrer engasgado com o próprio sangue.

Para aqueles que não estão familiarizados com a história original, os dez visitantes (os funcionários do casarão incluídos) começam a ser sumariamente eliminados pela ordem de uma antiga canção de ninar, uma espécie de trágico poema conhecido por Os Dez Soldadinhos – uma adaptação menos controversa que Os Dez Negrinhos, presente no romance original que foi modificado por seu caráter racista. Aqui, os dez soldados titulares vão perecendo verso após verso, até que sobre apenas um (que se enforca por não ter outra escolha). Após Anthony e a empregada Ethel Rogers (Anna Maxwell Martin) morrerem misteriosamente na mesma noite, Vera começa a acreditar que há um assassino entre eles e que o texto infantil pode não ser só ficção.

A minissérie, assim como o livro, não se restringem apenas ao nicho mercadológico do suspense e do mistério, mas abrem suas portas para uma análise profunda da condição humana dentro do espectro da autopreservação: conforme nos aproximamos do último episódio, percebemos que as vítimas, na verdade, são os verdadeiros antagonistas da trama, construções egoístas, odiosas e tardiamente arrependidas que nada mais são que uma extensão da nossa própria sociedade. E é isso que permite que essa produção vá muito mais além do que esperaríamos.

Se o roteiro se encontra numa perfeição quase onírica, a estética visual e performática também segue no mesmo caminho. Dermody e Richardson, por exemplo, se isolam em duas personalidades extremas que revelam suas verdadeiras facetas nos momentos de maior tensão. Da mesma forma, as reviravoltas e os crimes nunca são expostos cenicamente, preferindo utilizarem-se do foreshadowing e de sutilezas que contribuem para o clímax e a supressão de qualquer esperança para Vera, a única sobrevivente. Diferente das estórias protagonizadas por Hercule Poirot e Miss Marple, não há alguém que miraculosamente virá salvá-los ou resolver o crime: eles estão sozinhos, encarcerados em um melancólico pano de fundo cuja ruína é premeditada desde o princípio.

‘E Não Sobrou Nenhum’ é uma das melhores adaptações dos escritos de Agatha Christie e, sem dúvida alguma, uma das minisséries mais competentes e bem-estruturadas da televisão contemporânea. É claro que ela não está livre de certos deslizes, mas sua envolvente condução e sua fusão entre drama e misticismo felizmente falam bem mais alto.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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O legado da escritora inglesa Agatha Christie é, inquestionavelmente, um dos maiores de toda a história. Não é à toa que resida ao lado de Sir Arthur Conan Doyle como um dos principais nomes da literatura criminal, tendo feito sucesso crítico e comercial durante sua vida, além de ter sido protagonista de verdadeiros mistérios. Até hoje, seus escritos perduram no imaginário popular e a reafirmam com a quase redundante alcunha de Dama do Crime.

Apenas nos últimos anos, diversos livros da autora ganharam adaptações cinematográficas e seriadas: desde a releitura de John Malkovich para os Os Crimes ABC’ até o mediano e modernizado remake de Assassinato no Expresso do Oriente’, passando pela interessante e esquecida investida de A Casa Torta’. Porém, ainda que esteticamente competentes, é inegável dizer que houve sempre uma sensação frustrante ao final das aventuras, como se algo do material original estivesse faltando. Isso é, até nos depararmos com a icônica produção da BBC que toma as rédeas de uma das arrepiante jornadas mais conhecidas de Christie, E Não Sobrou Nenhum’. A minissérie de apenas três episódios não apenas capturou a essência dos personagens e da trama originais, como fez um ótimo uso do drama familiar para construir um chocante tour-de-force do começo ao fim.

A história gira em torno de um grupo de pessoas que é convidada pelos retraídos e talvez excêntricos Sr. e Sra. U.N. Owen, magnatas todos de uma ilha intitulada Ilha do Soldado. Os oito personagens principais recebem cartas estranhas, diferentes umas das outras, e são levados para o meio do oceano onde são recepcionados por um casal de empregados. Entretanto, os Owen não estão por ali e, conforme o primeiro dia chega ao fim, fica bem claro que as coisas não são exatamente o que parecem – e que eles podem ter sido atraídos para uma armadilha.

Logo de cara, fica claro para os telespectadores que a sinestesia aventuresca sempre presente nos romances de Christie deixa de existir em prol de uma brutalidade narrativa, uma aridez capturada com maestria pelas habilidades da roteirista Sarah Phelps. Afastando-se da apresentação sistemática dos protagonistas, como vemos no livro, o público é introduzido a uma agourenta e ambígua backstory estrelada por Vera Claythorne (Maeve Dermody) – que basicamente funciona como a heroína/final girl do show. De fato, não compreendemos exatamente o que está acontecendo, mas percebemos que ela está hesitante em aceitar o trabalho como secretária dos Owen ao descobrir que deverá viajar para a ilha devido a um trauma não muito remoto que continua a assombrá-la. Entretanto, ela decide acatar o novo emprego.

Pouco depois, Vera se encontra com os outros hóspedes, todos desconhecidos entre si que foram requisitados, cada qual para uma situação: o insuportável e infantil ator Anthony Marston (Douglas Booth), que tem irreverência de sobre para irritar todos os seus companheiros; o calculista juiz Lawrence Wargrave (Charles Dance); o histérico médico Edward Armstrong (Toby Stephens); a esnobe socialite Emily Brent (Miranda Richardson), entre outros. Cada um deles se porta com superioridade, tentando compreender e descobrir por conta própria quais os propósitos de seus anfitriões e porque escolheram pessoas tão diferentes entre si para visitarem a gigantesca mansão.

Pois bem, não demora muito até que descubram do que esse inexplicável jogo se trata: durante o primeiro jantar, o mordomo Thomas Rogers (Noah Taylor) coloca um velho disco para tocar, revelando os supostos crimes que cada um dos convidados cometeu – todos responsáveis pela morte de inocentes, mas nenhum deles tendo enfrentado as consequências de seus pecados e saído impunes. É claro que eles encaram aquilo como uma brincadeira de muito mal gosto e começam a desenvolver um ressentimento mortal pelos Owen; isso é, até Anthony tomar uma bebida envenenada e morrer engasgado com o próprio sangue.

Para aqueles que não estão familiarizados com a história original, os dez visitantes (os funcionários do casarão incluídos) começam a ser sumariamente eliminados pela ordem de uma antiga canção de ninar, uma espécie de trágico poema conhecido por Os Dez Soldadinhos – uma adaptação menos controversa que Os Dez Negrinhos, presente no romance original que foi modificado por seu caráter racista. Aqui, os dez soldados titulares vão perecendo verso após verso, até que sobre apenas um (que se enforca por não ter outra escolha). Após Anthony e a empregada Ethel Rogers (Anna Maxwell Martin) morrerem misteriosamente na mesma noite, Vera começa a acreditar que há um assassino entre eles e que o texto infantil pode não ser só ficção.

A minissérie, assim como o livro, não se restringem apenas ao nicho mercadológico do suspense e do mistério, mas abrem suas portas para uma análise profunda da condição humana dentro do espectro da autopreservação: conforme nos aproximamos do último episódio, percebemos que as vítimas, na verdade, são os verdadeiros antagonistas da trama, construções egoístas, odiosas e tardiamente arrependidas que nada mais são que uma extensão da nossa própria sociedade. E é isso que permite que essa produção vá muito mais além do que esperaríamos.

Se o roteiro se encontra numa perfeição quase onírica, a estética visual e performática também segue no mesmo caminho. Dermody e Richardson, por exemplo, se isolam em duas personalidades extremas que revelam suas verdadeiras facetas nos momentos de maior tensão. Da mesma forma, as reviravoltas e os crimes nunca são expostos cenicamente, preferindo utilizarem-se do foreshadowing e de sutilezas que contribuem para o clímax e a supressão de qualquer esperança para Vera, a única sobrevivente. Diferente das estórias protagonizadas por Hercule Poirot e Miss Marple, não há alguém que miraculosamente virá salvá-los ou resolver o crime: eles estão sozinhos, encarcerados em um melancólico pano de fundo cuja ruína é premeditada desde o princípio.

‘E Não Sobrou Nenhum’ é uma das melhores adaptações dos escritos de Agatha Christie e, sem dúvida alguma, uma das minisséries mais competentes e bem-estruturadas da televisão contemporânea. É claro que ela não está livre de certos deslizes, mas sua envolvente condução e sua fusão entre drama e misticismo felizmente falam bem mais alto.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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