A ambiciosa e aguardada minissérie ‘Cavaleiro da Lua’ exibiu seu primeiro episódio nos últimos dias e já conquistou o público ao redor do mundo, além de ter garantido vários elogios por parte da crítica especializada.
Para aqueles que não conhecem, a narrativa é centrada em um jovem rapaz chamado Steven Grant, que sofre de transtorno dissociativo de imagem e se vê arrastado para um mundo de perigos que envolve uma persona estadunidense chamada Marc Spector (Oscar Isaac), que se esconde em seu subconsciente e toma conta de seu corpo quando menos espera, e uma amedrontadora divindade conhecida como Khonshu – que visa livrar o mundo de um crescente mal que pode destruir a humanidade para sempre.
Entretanto, apesar de todos os elementos conhecidos dentro do MCU, certas incursões arquitetadas pelo showrunner Jeremy Slater nos apresentam a um dos panteões literários e culturais mais explosivas e vibrantes de nossa história – a antiga, mais especificamente a egípcia. É claro que a trama é ambientada na metrópole londrina, mas nota-se que há uma confluência com a própria representação desse milenar povo no cenário audiovisual, em que a Inglaterra, depois de ter invadido as terras egípcias, se apropriou de sua cultura e a levou para os intermináveis corredores de seus museus, até mesmo nos afastando de algumas verdades que foram mascaradas com o passar do tempo.
Obviamente, ‘Cavaleiro da Lua’ não tem a intenção de nos educar sobre a problemática política que envolve as duas nações, e sim incitar nossa curiosidade acerca dos personagens desse infinito universo de sabedoria. De fato, temos uma modernização considerável das figuras divinas que dão as caras na série, mas o mais interessante é que, de certa maneira, Slater e seu time criativo, que inclui o diretor Mohamed Diab, se afastam dos convencionalismos orientalistas de produções similares – vide ‘Aladdin’ ou ‘A Múmia’ – e, em vez de tratarem a cultura em questão como uma peça alheia ao tempo e pincelada com o exótico e com o místico, apostam fichas exatamente no que precisam, à medida que canalizam uma nova perspectiva ocidental para o que realmente é o oriente (não explorando por completo essa potencialidade, mas fazendo um trabalho sólido, ao menos por enquanto).
PESEDJET
Uma das primeiras referências citadas por Steven é a enéade – cujo nome provém do grego e, na língua egípcia, é intitulada pesedjet.
O protagonista cita brevemente que a enéade é um grupo de nove divindades, geralmente ligadas entre si por laços familiares, e que se distinguiam de cidade a cidade. Segundo a pesquisadora Cristiana Serra, uma das mais importantes enéades localizava-se na cidade de Heliópolis, no Baixo Egito, um dos principais territórios do Mundo Antigo. Essas figuras eram cultuadas pelos cidadãos e, essencialmente, envolviam os seguintes nomes: o deus do sol, Atum; seus filhos, Shu e Tefnut; seus netos, Geb e Nut; e seus bisnetos, Osíris, Ísis, Set e Néftis. A ideia principal era unificar uma determinada dinastia sob a redoma de um culto em comum, liderado por seu respectivo governante e construindo uma linha bastante reconhecível que separaria um grupo de outro.
Não deixe de assistir:
Na série da Marvel, a enéade em questão é mencionada brevemente e, considerando que assistimos apenas ao primeiro episódio, é possível que esses deuses, considerados como alguns dos mais poderosos da cultura antiga, tenham um papel maior nas próximas semanas – ou ao menos exerçam sua influência nos personagens.
AMMIT
O principal antagonista da narrativa é Arthur Harrow (Ethan Hawke), uma espécie de figura messiânica que conquista seus seguidores por uma retórica instigante e por sua capacidade de manipular os desejos das pessoas – utilizando-se de um poder concedido pela divindade Ammit, a Devoradora dos Mortos.
Na religião e na mitologia egípcias, Ammit era retratada como uma figura feminina, com cabeça de crocodilo, pernas dianteiras de leão e pernas traseiras de hipopótamo. A deusa, descrita principalmente em textos funerários como O Livro dos Mortos, tinha como principal missão pesar o coração das pessoas em uma balança: caso o coração se equilibrasse com uma pena, poderiam alcançar a vida eterna; caso contrário, eram devorados por essa perigosa fera e sua memória, varrida para o esquecimento.
Ammit tem sua história relacionada a Thoth, deus escriba da lua, do cômputo, do aprendizado e da escrita, e a Maat, deusa da verdade e da justiça que emprestou uma pena de avestruz para que Ammit pudesse pesar o coração daqueles que cruzavam seu caminho. Para se tornarem um dos mortos abençoados e ascenderem ao lado de Osíris, o deus do submundo, deveriam ter uma índole pura, reverenciada e honesta. Em ‘Cavaleiro da Lua’, Arthur tem a capacidade de medir a pureza das pessoas e prever seus atos futuros: caso não tenham uma natureza boa, têm a vida drenada; se provarem seu caráter digno, entram para o culto e aumentam o número de seguidores de Ammit (cujo principal objetivo é livrar o planeta de todo o mal).
KHONSHU
Enquanto Ammit faz parte dos antagonistas da série, Khonshu posa como um dos mocinhos – ainda que sua amedrontadora presença no cause mais arrepio do que segurança.
Khonshu se manifesta através da materialidade corpórea de Steven/Marc, permitindo que esse avatar seja agraciado com seus poderes e lute contra as forças das trevas que se erguem para desbalancear as forças que regem o mundo. Khonshu, inclusive, premedita um confronto épico contra Ammit – e é bem provável que seus respectivos receptáculos (isso é, Steven e Arthur), sirvam como peões nesse dêitico jogo.
Na mitologia egípcia, Khonshu é o deus da religião e da lua, normalmente caracterizado como um jovem e descrito como filho de Amon e de Mut. No último período do Novo Reino, um templo gigantesco foi construído em sua homenagem em Karnak, um complexo localizado na cidade de Tebas. Dentro da Marvel, o personagem é uma espécie de divindade rebelde, afastado de seus semelhantes por posar como um “deus bélico que luta contra injustiças”.