Quando pensamos em explorações metafísicas e psíquicas sobre a condição do ser humano, Charlie Kaufman talvez seja o maior expoente das últimas décadas no tocante a produções cinematográficas de tais temas. Desde seu clássico ‘Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças’ até a animação adulta em stop-motion ‘Anomalisa’, o diretor, roteirista e produtor sempre imprimiu uma perspectiva angustiante e reflexiva sobre a própria existência da humanidade no planeta – e como os mais simples pensamentos podem se transformar em um vicioso ciclo que, eventualmente, representa a mais niilista das convicções: por mais que tentamos seguir em frente, voltamos para o mesmo lugar por estarmos adeptos ao conforto e àquilo que conhecemos.
Em ‘Estou Pensando em Acabar com Tudo’, adaptação do aclamado romance homônimo de Iain Reid, Kaufman supera a si mesmo a entregar a produção mais insana, bizarra e irrestrita de sua carreira. A narrativa, que, na verdade, não se resume apenas a uma sinopse, mas abrange incursões de pura irreverência, gira em torno de uma jovem que viaja a uma fazenda para conhecer os pais de seu namorado. Entretanto, coisas estranhas começam a acontecer uma vez que ela chega ao imponente casarão – fazendo-a duvidar de tudo e de todos (inclusive dela mesma). Tal trama, porém, é guiada por uma escolha artística bastante ousada e que, caso nas mãos erradas, poderia ter se rendido a pedantes convencionalismos dramáticos sem profundidade alguma; a cronologia, que em qualquer outra iteração serviria de base para alavancar o envolvimento do público, é dispensada imediatamente, cultivando um anacronismo cênico infundido com metáforas derradeiras e uma revelação chocante.
Emergindo em um gigantesco papel de destaque, Jessie Buckley interpreta uma mulher sem nome – e, conforme percebemos, sem identidade sólida -, que namora Jake (Jesse Plemons) e que, como já premedita o título, está pensando em terminar o relacionamento por ter ciência de que ambos caminham para um beco sem saída. Entretanto, ela parece não ter forças ou meios para realizar esse sonho, constantemente refletindo sobre a sensibilidade e o senso crítico de seu companheiro – guardando suas verdades em pensamentos vultuosos e, de certa forma, perigosos. Quando finalmente chegam ao seu destino, a protagonista (que até então é revoada por construções antagônicas que lhe garante certos nomes, como Lucy, Lucia ou até mesmo Louisa) deflagra uma tentativa de conquistar os pais de Jake, interpretados por Toni Collette e David Thewlis – que, mesmo aparecendo por breves cenas, entregam atuações irretocáveis e aplaudíveis – e percebe que nada é o que parece ser.
Devo dizer que o longa-metragem não é destinado para todos; entretanto, ele não é complexo no sentido mais conhecido da palavra, mas sim por sua ambição técnica e imagética de se entregar a uma atrevida delineação sinestésica. Desse modo, é necessário deixar claro que Kaufman, mais do que nunca, se transmuta em um realizador que menciona a si próprio sem esbarrar na egolatria, e sim para tirar proveito do que já foi feito: não é surpresa que certas sequências satíricas marcam homenagens distorcidas a suas obras e a obras de seus conterrâneos (como Robert Zemeckis), à medida que chafurdam no classicismo do surrealismo e do expressionismo. No terceiro ato, o teor “bizarro” encontra uma explicação, mas ao mesmo tempo não encontra: toda a história é ambientada na cabeça traumatizada de Jake, que jamais teve qualquer relacionamento e que passa seus dias como o infeliz zelador de sua escola.
O filme é uma grande alegoria aos sonhos que nunca mais irão acontecer. Todavia, em vez de seguir o padrão de nos colocar em uma visão congruente, o protagonismo é transferido para uma persona que não existe e cujos profundos e paradoxais pensamentos são nada mais que um vácuo produzido por alguém que precisava de companhia e que não suportava a dor de se ver abandonado. É por essa razão que o desenrolar dos atos é marcado por certas inconsistências, obrigatoriamente necessárias para que entendamos a fraqueza psíquica daquele que nos conta a história. Jake não consegue se manter fiel a um desejo apenas, a uma narrativa concreta, e por isso imagina diversos cenários possíveis que vão desde a mais trágica resolução até a mais fabulesca e feérica fórmula.
Talvez mais do que nunca, Kaufman perceba que não os limites entre a ficção e a realidade, dentro de um outro mundo ficcional e real, não existem: a maturidade de suas tramas não é fruto de uma mente turbulenta, mas sim a extensão de alguém que sabe exatamente como representar visualmente incursões sobre identidade, anseios, frustrações e medos. Os diálogos conflitantes servem como garantia para que o público compreenda as personalidades dos personagens, como o fato de Lucy/Lucia/Louisa odiar poesia e, pouco depois, recitar de cabeça um solilóquio que oscila entre o pessoal e o universal – e que também serve para entendermos que, por mais que Jake idealize todos aqueles eventos, não se sente seguro ou confiante o bastante para se manter feliz.
Nenhuma das sequências é arquitetada sem minúcia cautelosa e instigante, que nos leva a querer chegar ao fim do filme mesmo sem entender as centelhas de suspense vislumbradas em seu cerne. Desde a escolha do enjoativo papel de parede florido até a exagerada maquiagem que premedita o grand finale, Kaufman conduz com beleza surpreendente um conto lôbrego e que desperta em nós os sentimentos mais primordiais possíveis. No final das contas ‘Estou Pensando em Acabar com Tudo’ nos dá a sensação de um vazio infinito – e, se você se sentiu assim, o filme atingiu seu principal objetivo.