Na mitologia grega e romana, a Champs-Élysées é o lugar onde residem os mortos. Já na avenida homônima mais famosa do mundo na capital francesa, é o luxo chamativo que domina as esquinas aos olhos aturdidos dos turistas. Esta é a ponta do iceberg dos motivos do mítico cinema UGC Normandie fechar as portas no próximo dia 13 de junho, após 90 anos de projeção.
Não por acaso, no último 11 de abril, Thierry Frémaux organizou a conferência de imprensa do Festival de Cinema de Cannes 2024 neste recinto. Com 865 lugares, a sala principal é majestosa com uma arquitetura em curva, com poltronas de tons azuis escuros em contraste com a madeira dourada, iluminada pelo teto estrelado. Em dezembro de 2023, o CinePOP esteve presente na avant-premiére de Wonka (2023), com a presença de Timothée Chalamet e Hugh Grant.
Por que o cinema vai fechar?
Se por uma lado, o UGC Normandie marca a opulência de grandes eventos, nos dias da semana ele não consegue atrair o público local. Na estreia de Besouro Azul, 16 de agosto de 2023, na sessão de 18h, a grandiosa sala contava comigo e mais seis pessoas. As minhas risadas solitárias como as piadas de Chapolin Colorado apenas não faziam eco porque a sonorização do local, reformado em 2019, é tão boa quanto o seu visual.
Contudo, os atuais frequentadores das Avenida Champs-Élysées são majoritariamente turistas com seus celulares em busca de uma foto com o Arco do Triunfo no fundo ou logos de marcas famosas, como o grande “LV” da Louis Vuitton. De acordo o jornal francês Le Figaro, a família real do Qatar, proprietária do edifício que abriga o cinema, recusou-se a baixar o valor do aluguel para salvar o local de exibição.
Segundo dados da imobiliária Cushman & Wakefield, os aluguéis comerciais da Avenida Champs-Élysées atingiram em média 15 mil euros por metro quadrado em 2023. O objetivo dos proprietários dos prédios é transformar a charmosa avenida em um centro comercial de luxo a céu aberto para efémeros visitantes. Desde a década de 1990, nove salas de cinema fecharam na capital francesa, duas na mesma região: UGC George V, em março de 2020; e Gaumont Marignan, no final de 2023.
Cadê o Público Cinéfilo na França?
Em contrapartida, a quatro quilômetros de distância encontra-se o UGC Cité Les Halles, o cinema mais frequentado no mundo em 2022, com 27 salas de projeção. Mesmo que o complexo situado no primeiro distrito de Paris, não possua o mesmo acabamento estético e refinado do oitavo distrito, o local ganha o público em diversidade e acessibilidade de transporte.
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Se a Champs-Élysées já foi conhecida por ostentar diversos cinemas e ser o coração da Nouvelle Vague nos anos 1960, hoje ela é conhecida por glamourizar o luxo de grandes marcas de moda e hotéis cinco estrelas para estrangeiros endinheirados. Um artigo publicado pela revista francesa Première, em 2008, afirmou que, em 1974, a Champs-Élysées chegou a contar com 65 cinemas, no entanto, não é dito se todos funcionaram durante o mesmo período.
Antes de fechar as cortinas, o espaço celebra a abertura em 1937 — sendo 50 anos sob a bandeira UGC —, entre os dias 1 de maio a 13 de junho, com o evento: “Obrigado UGC Normandie: 1 mês para 50 anos de história”. A programação será baseada em clássicos do cinema, apresentados através de masterclasses, seleção de filmes infantis; noites especiais, como concertos ou pré-estreias; e um leilão de objetos icônicos do cinema.
Toda Sala de Projeção tem Seu Fim ?
Servido de apenas de uma linha de metrô por toda sua extensão, porém outras três na altura do Arco do Triunfo, a avenida “mais bela do mundo” será completamente fechada durante os Jogos Olímpicos de Paris 2024. Já com os iniciais movimentos para montagem das instalações do evento esportivo à sua porta, o UGC Normandie encerra as atividades antes de entrar no vermelho e com tempo para despedir-se do seu público.
O fechamento de salas de cinema não é um drama atual, ao longo do tempo o público tem diminuído e se fragmentado em outras telas. As capitais brasileiras Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife sofrem com os mesmo dilemas, vide o recente abandono do patrocínio do banco Itaú Unibanco de 40 salas de projeção nestas e outras cidades.
Seja no Brasil, seja na França, a busca pelo lucro de bancos ou famílias do país do gás não dá tempo para arte “pagar” por seu espaço. Como Kleber Mendonça Filhos expôs de modo belíssimo no seu documentário Retratos Fantasmas (2023), o cinema de rua torna-se cada vez mais apenas uma reminiscência de décadas atrás. Se no Brasil constrói-se igrejas, em Paris projeta-se lojas de luxo.