“Eu tenho uma obsessão com a morte e com o sexo”.
Foi assim que a icônica e lendária Lady Gaga descreveu suas primeiras incursões para a preparação do EP ‘The Fame Monster’.
Considerado por diversos especialistas como um dos grandes álbuns da história da música, a produção, composta por oito faixas, foi lançada oficialmente como uma reedição de ‘The Fame’, de 2008. Mas o que Gaga jamais poderia imaginar era o impacto que o novo compilado traria para o cenário fonográfico e a revolução que causaria no escopo mainstream – não apenas no âmbito musical, mas na moda e até mesmo nas incursões audiovisuais. Afinal, enquanto seu début trouxe o synth-pop de volta, ‘The Fame Monster’ abriu espaço para uma exaltação do electro-dance music que há muito não se via e uma reformulação da música como state-of-art, conciliando-a não como um elemento solto, mas um sistema orgânico de confluência e simbiose com as outras inflexões artísticas, como já mencionado.
É claro que a ideia da performer nunca foi esta – como ela viria a dizer na faixa-título de ‘ARTPOP’, “eu só gosto da música, não do brilho”. Mas, em outubro de 2009, ela daria o primeiro passo de sua revolução com a estreia de “Bad Romance”. A canção, funcionando como lead single do EP, fez um estrondo gigantesco ao trazer as influências do house e do techno alemães para uma celebração do grotesco e do amor à la Alfred Hitchcock e Quentin Tarantino. Vestida com um collant branco e rastejando para fora de um caixão, Gaga fazia história mais uma vez e pararia o mundo para uma entrega fabulosa – seguida, inclusive, de faixas que reafirmariam seu imortal legado para a cultura pop. Não é surpresa que a música em questão seja idolatrada até os dias de hoje, servindo como parâmetro para inúmeros artistas, tanto estreantes quanto veteranos.
A ideia por trás de ‘The Fame Monster’ é uma espécie de análise dos corolários da fama, temática principal de seu álbum anterior. É claro que as críticas à indústria musical já ganhavam forma com “Paparazzi” e a faixa-título, mas seria com “Bad Romance” que suas conjecturas seriam infundidas com uma profundidade avassaladora, em que a indústria trata os cantores como mercadorias e Gaga insurge como uma vingativa Femme fatale trajando McQueen e armada com um talento invejável – uma ode espectral à morte, seja ela física ou metafísica.
A imagética trazida pela cantora seria recriada pouco depois por titãs conterrâneas do show business, como Katy Perry, que tomaria emprestado as rédeas das pinturas despojadas de Gaga para o ótimo ‘Teenage Dream’; ou Kesha, que se aproveitaria da liberdade feminina para ‘Animal’; e até mesmo Christina Aguilera, que retornaria com tracks impactantes e movidas pelas influências eletrônicas com o subestimado ‘Bionic’. Beyoncé, uma das lendas da música, inclusive aproveitaria para se reunir com Gaga tanto em “Videophone”, quanto em “Telephone” – este trazendo as duas maiores artistas do século em uma road-trip assassina que homenageia ‘Thelma & Louise’.
Cada engrenagem pensada com meticulosidade, cada verso trazendo mais e mais aspectos de uma genialidade inenarrável – “Alejandro”, quebrando tabus sexuais sobre BDSM e fetiches, trouxe a performer em uma mimética coreografia visual e sonora de Bob Fosse, além de comentar sobre relacionamentos tóxicos e abusivos; “Monster”, apoiando-se no dance e no Europop, mergulhando na forma mais crua do amor e do sexo, acompanhada de uma etérea e ressoante atmosfera de instrumentos e sintetizadores; “Speechless” se consagrando como a nostalgia romântica dos anos 1970 e 1980, trazendo o pop-rock para uma belíssima e pungente balada que prenunciaria sua predileção pelas músicas mais lentas.
Há um emblemático significado por trás do EP de Gaga, um que é celebrado ad nauseam e das maneiras mais diversas. A longa sombra que jogou nas décadas seguintes se transformaria em um arauto de fusão entre a música e o espetáculo, a arte e o consumidor – uma fórmula Warholiana que seria repetida em seus álbuns seguintes. A reapropriação da memória como um aspecto de enfrentamento da perda, seja ela como for, é mais um dos elementos presentes em ‘The Fame Monster’ que é recorrente, refletindo o caráter mais pessoalista das tracks: em “Dance in the Dark”, absorvida pelas explosões eletrônicas do Europop e pela fluidez cândida do R&B, reconstrói a história ao exaltar Marilyn Monroe, Judy Garland, Sylvia Plath e Lady Di, pioneiras de suas próprias maneiras, em um compêndio empoderador de libertação e independência.
O diálogo que traça com as partes mais dolorosas da alma humana posa como uma característica que seria emulada por muitas pessoas: nesse tocante, temos a beleza contraditória de “So Happy I Could Die”, em que Gaga se vê diante de um espelho e enxerga os demônios interiores, percebendo que pode conviver em harmonia com as partes de que mais desvia o olhar. Logo, essa música permite que entendamos que ela está feliz consigo mesma, sozinha no meio da pista de dança e segurando uma garrafa de vinho – inebriada pelos efeitos de uma prerrogativa merecida. E, por fim, “Teeth” se volta para o lado mais sexual e mais carnal de cada indivíduo (sendo injustamente criticado por seu caráter mais repetitivo).
‘The Fame Monster’ imortalizou a imagem de Lady Gaga como uma vanguardista sem receio de explorar o mais bizarro e o mais estranho possível. Aqui, ela declara seu amor pelos próprios medos em uma atemporal jornada, regada a uma narcótica perfeição sonora. Uma celebração da vida e da morte, da dualidade de cada um e daquilo que nos faz únicos – que, eventualmente, a permitiu ditar as regras de cada uma das esferas do entretenimento.