domingo , 22 dezembro , 2024

Artigo | ‘Hairspray’: temáticas do musical continuam mais importantes do que nunca

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Há quinze anos, o mundo parava para conferir a mais nova adaptação musical a chegar às telonas: Hairspray.

Baseado na peça homônima da Broadway e no subversivo clássico de John Waters dos anos 1980 (que inclusive trouxe a icônica Divine em um de seus últimos papéis antes de falecer), a história nos leva para a pequena cidade de Baltimore, no começo dos anos 1960, e acompanha a divertida Tracy Turnblad (Nikki Blonsky em sua estreia no cenário cinematográfico), uma garota plus-size cujo sonho é participar do maior programa de televisão local, o The Corny Collins Show, quebrando os paradigmas estéticos da época e, ao mesmo tempo, lutando contra a crescente segregação racial que ocorria à sua volta. Movido a músicas esplendorosas, performances irretocáveis e coreografias exuberantes, Hairspray, de fato, se tornou uma das melhores produções do século e, até hoje, é adorado por inúmeros fãs do gênero.



Entretanto, analisar o longa-metragem apenas por seu conteúdo visual e não levar em consideração as múltiplas mensagens que se escondem atrás dos versos eximiamente assinados por Marc Shaiman e Scott Witman e nas entrelinhas de uma competente direção de Adam Shankman (mesmo nome por trás do vindouro ‘Desencantada’ e do divertido ‘Doze É Demais’). Afinal, como mencionado no parágrafo acima, a narrativa não é apenas uma celebração musical da vida e dos sonhos, mas uma crítica ferrenha ao racismo e à exaltação da estética mercadológica de meados do século XX – algo que, infelizmente, ainda ressoa na sociedade em pleno 2022.

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O primeiro ponto de análise é, de fato, Tracy. A protagonista, interpretada com exímia paixão por Blonsky, é o ponto de encontro entre o passado, o presente e o futuro e, diferente do que poderíamos imaginar, não é pintada como uma “salvadora branca”. Ele tem os próprios problemas ao ser fora dos padrões quando comparada à, por exemplo, Velma (Michelle Pfeiffer), gerente da estação de televisão WYZT, ou a Amber (Brittany Snow), filha de Velma – ambas representando um lado antagonista muito forte e que usa de um poder monetário e visual para se mostrarem superior a quaisquer outros. Tracy, dessa maneira, utiliza a voz que ganha ao ser selecionada para participar do programa para garantir que seus amigos negros também tenham o mesmo protagonismo que tem – porque não há explicação que justifique essa disparidade obtusa.

Tracy existe não para tomar as dores de quem sofre o racismo diário, e sim entendendo seu lugar privilegiado como mulher branca quando justaposta a homens e mulheres negros. Logo, a presença de Maybelle (Queen Latifah em um de seus personagens mais marcantes) não é consequência da abertura de discussão promovida por Tracy, e sim algo que já vinha sendo premeditado há muito tempo. Ela existe como séculos e mais séculos de algo que continua se repetindo em um ciclo inquebrantável de injustiças que apenas tomam formas distintas – a escravidão nos séculos XVI e XVII e a segregação social do século XX. Maybelle anuncia uma espécie de encerramento de ciclo quando se posta à frente de uma manifestação pacífica contra o racismo – e usa sua potente voz para estrelar números como “Big, Blonde and Beautiful”, “I Know Where I’ve Been” e o conjunto “You Can’t Stop the Beat”.

O filme também expressa de modo bastante claro uma exaltação à cultura afro-americana, constantemente apropriada pelos brancos em detrimento de um reconhecimento necessário e obrigatório. Os movimentos de dança encabeçados por Seaweed (Elijah Kelley) e Inez (Taylor Parks) são aliados a um festejo de incursões como o blues, o jazz e o R&B, fundidos a um escopo atemporal de trompetes, pianos e bateria que provam que toda música é música negra – ou seja, tudo o que conhecemos hoje provém do que essa comunidade ofereceu como remodelamento e reestruturação ao escopo do entretenimento. Seaweed, inclusive, desenvolve uma relação com a ingênua Penny (Amanda Bynes) e ambos tratam com sutileza acessível e apaixonante a temática de casais inter-raciais, cuja configuração era condenada à época da narrativa do filme.

Enquanto a expressividade racial e o prospecto da gordofobia são dois dos principais pontos tratados no filme, há uma outra questão que vai para além do universo do musical – e que se refere à construção de Edna Turnblad, mãe de Tracy. Desde a primeira versão da narrativa, Edna sempre foi interpretada por uma drag queen, como vimos na escalação história de Divine (um movimento ousado e de extrema importância para a representatividade LGTBQIA+ no mainstream, ainda mais nos anos 1980). A caracterização de Edna é uma ode à arte performática – e ganhou uma nova camada ao ser encarnada por Harvey Fierstein nos palcos da Broadway e uma outra quando John Travolta, certamente um dos maiores astros de sua geração, revisitou a personagem com tanta beleza e respeito quanto poderia.

Hairspray tem ares formulaicos dentro de um propósito específico – mas passa longe de ser apenas mais uma incursão musical como qualquer outra dos últimos vinte anos. Pelo contrário, a adaptação comandada por Shankman é recheada de detalhes que, apesar de parecerem fragmentados, se juntam em uma explosão ecoante de análises bem-vindas e pinceladas com algumas das melhores músicas que já ouvimos.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Baseado na peça homônima da Broadway e no subversivo clássico de John Waters dos anos 1980 (que inclusive trouxe a icônica Divine em um de seus últimos papéis antes de falecer), a história nos leva para a pequena cidade de Baltimore, no começo dos anos 1960, e acompanha a divertida Tracy Turnblad (Nikki Blonsky em sua estreia no cenário cinematográfico), uma garota plus-size cujo sonho é participar do maior programa de televisão local, o The Corny Collins Show, quebrando os paradigmas estéticos da época e, ao mesmo tempo, lutando contra a crescente segregação racial que ocorria à sua volta. Movido a músicas esplendorosas, performances irretocáveis e coreografias exuberantes, Hairspray, de fato, se tornou uma das melhores produções do século e, até hoje, é adorado por inúmeros fãs do gênero.

Entretanto, analisar o longa-metragem apenas por seu conteúdo visual e não levar em consideração as múltiplas mensagens que se escondem atrás dos versos eximiamente assinados por Marc Shaiman e Scott Witman e nas entrelinhas de uma competente direção de Adam Shankman (mesmo nome por trás do vindouro ‘Desencantada’ e do divertido ‘Doze É Demais’). Afinal, como mencionado no parágrafo acima, a narrativa não é apenas uma celebração musical da vida e dos sonhos, mas uma crítica ferrenha ao racismo e à exaltação da estética mercadológica de meados do século XX – algo que, infelizmente, ainda ressoa na sociedade em pleno 2022.

O primeiro ponto de análise é, de fato, Tracy. A protagonista, interpretada com exímia paixão por Blonsky, é o ponto de encontro entre o passado, o presente e o futuro e, diferente do que poderíamos imaginar, não é pintada como uma “salvadora branca”. Ele tem os próprios problemas ao ser fora dos padrões quando comparada à, por exemplo, Velma (Michelle Pfeiffer), gerente da estação de televisão WYZT, ou a Amber (Brittany Snow), filha de Velma – ambas representando um lado antagonista muito forte e que usa de um poder monetário e visual para se mostrarem superior a quaisquer outros. Tracy, dessa maneira, utiliza a voz que ganha ao ser selecionada para participar do programa para garantir que seus amigos negros também tenham o mesmo protagonismo que tem – porque não há explicação que justifique essa disparidade obtusa.

Tracy existe não para tomar as dores de quem sofre o racismo diário, e sim entendendo seu lugar privilegiado como mulher branca quando justaposta a homens e mulheres negros. Logo, a presença de Maybelle (Queen Latifah em um de seus personagens mais marcantes) não é consequência da abertura de discussão promovida por Tracy, e sim algo que já vinha sendo premeditado há muito tempo. Ela existe como séculos e mais séculos de algo que continua se repetindo em um ciclo inquebrantável de injustiças que apenas tomam formas distintas – a escravidão nos séculos XVI e XVII e a segregação social do século XX. Maybelle anuncia uma espécie de encerramento de ciclo quando se posta à frente de uma manifestação pacífica contra o racismo – e usa sua potente voz para estrelar números como “Big, Blonde and Beautiful”, “I Know Where I’ve Been” e o conjunto “You Can’t Stop the Beat”.

O filme também expressa de modo bastante claro uma exaltação à cultura afro-americana, constantemente apropriada pelos brancos em detrimento de um reconhecimento necessário e obrigatório. Os movimentos de dança encabeçados por Seaweed (Elijah Kelley) e Inez (Taylor Parks) são aliados a um festejo de incursões como o blues, o jazz e o R&B, fundidos a um escopo atemporal de trompetes, pianos e bateria que provam que toda música é música negra – ou seja, tudo o que conhecemos hoje provém do que essa comunidade ofereceu como remodelamento e reestruturação ao escopo do entretenimento. Seaweed, inclusive, desenvolve uma relação com a ingênua Penny (Amanda Bynes) e ambos tratam com sutileza acessível e apaixonante a temática de casais inter-raciais, cuja configuração era condenada à época da narrativa do filme.

Enquanto a expressividade racial e o prospecto da gordofobia são dois dos principais pontos tratados no filme, há uma outra questão que vai para além do universo do musical – e que se refere à construção de Edna Turnblad, mãe de Tracy. Desde a primeira versão da narrativa, Edna sempre foi interpretada por uma drag queen, como vimos na escalação história de Divine (um movimento ousado e de extrema importância para a representatividade LGTBQIA+ no mainstream, ainda mais nos anos 1980). A caracterização de Edna é uma ode à arte performática – e ganhou uma nova camada ao ser encarnada por Harvey Fierstein nos palcos da Broadway e uma outra quando John Travolta, certamente um dos maiores astros de sua geração, revisitou a personagem com tanta beleza e respeito quanto poderia.

Hairspray tem ares formulaicos dentro de um propósito específico – mas passa longe de ser apenas mais uma incursão musical como qualquer outra dos últimos vinte anos. Pelo contrário, a adaptação comandada por Shankman é recheada de detalhes que, apesar de parecerem fragmentados, se juntam em uma explosão ecoante de análises bem-vindas e pinceladas com algumas das melhores músicas que já ouvimos.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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