domingo , 22 dezembro , 2024

Artigo | ‘Histórias Cruzadas’ e a glamourização do racismo: o complexo do “branco salvador”

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Histórias Cruzadas é um dos filmes mais adorados da década passada e, recentemente, completou dez anos desde sua estreia nos cinemas mundiais. Mais do que isso, a produção veio de um premiado romance de época assinado por Kathryn Stockett, cuja narrativa é centrada na pequena cidade de Jackson, Mississippi, nos anos 1960: o longa é focado na jovem aspirante à jornalista Eugenia, apelidada de Skeeter, que resolve dar voz às empregadas negras que abandonam suas vidas para criar os filhos da elite branca; no livro, a narrativa é apresentada através da perspectiva de Eugenia e das empregadas Aibileen Clark e Minnie Jackson – ambos ganhando elogios da crítica internacional e levando inúmeras condecorações para casa.

Entretanto, pouco depois da repopularização da trama, tanto no cenário literário quanto no cinematográfico, inúmeros historiadores começaram a notar certos elementos bastante controversos na narrativa arquitetada por Stockett, indicando que os temas de racismo e segregação presentes nas obras são nada menos que máscaras teatrais que diminuem a importância magnânima de um movimento social que perdura até hoje. Mais do que isso, coloca em voga a fórmula do “branco salvador”, isso é, um personagem que se apropria inexplicavelmente das dores e das vivências de uma minoria para ascender ao cargo de herói ou heroína, eventualmente recebendo crédito por ter “mudado” o cotidiano dessas pessoas.



The Help (2011)
L-R Octavia Spencer and Viola Davis

Se esse artifício criativo é familiar, não se assuste: caso paremos para pensar na história do entretenimento, é notável como a transição do foco corrobora para a perpetuação de uma espécie de indulgência tradicionalista que há muito precisa ser mudado. Vemos isso, por exemplo, em clássicos como ‘Pocahontas’ até recentes longas-metragens como ‘12 Anos de Escravidão’ e ‘Estrelas Além do Tempo’: em determinado momento, o peso dramático e a densa carga dos personagens que fogem do padrão heteronormativo e caucasiano é diminuída em prol de uma construção endeusada que vem para acabar com as injustiças – deixando bem claro que, sem ele, nada poderia ser resolvido e as minorias ainda estariam sob perigo e maus-tratos.

Em Histórias Cruzadas, a síndrome do branco salvador é destinada a Skeeter. Apesar da interpretação incrível de Emma Stone no papel, a condução da trama é óbvia demais para ser deixada de lado e, no final das contas, não apresenta nenhuma reflexão palpável o bastante para aproveitarmos qualquer coisa além do divertimento. Tanto no livro quanto no filme, Skeeter é a única a se postar contra o tratamento que as empregadas negras recebem de suas patroas – principalmente quando percebe a tóxica relação entre Minny (Octavia Spencer) e Hillary (Bryce Dallas Howard). Decidindo colocar um basta nisso, ela resolve escrever um compilado de contos que põe a elite local em xeque, permitindo que as empregadas tenham voz em um território dominado pela segregação.

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“THE HELP”
Emma Stone (left) stars as Skeeter Phelan and Viola Davis stars as Aibileen Clark in this scene from DreamWorks Pictures” “The Help”, based on the New York Times best-selling novel by Kathryn Stockett.
Photo Credit: Dale Robinette
©DreamWorks II Distribution Co., LLC.  All Rights Reserved.

O próprio romance é condescendente e condenável, à medida que coloca Aibileen (vivida por Viola Davis na adaptação fílmica) comparando a cor de sua pele à cor de uma barata – o que levou diversas pessoas a se questionarem sobre o motivo de tal grotesca descrição. Stockett, sendo uma mulher branca, tenta infundir temáticas de extrema importância com uma informalidade desnecessária e uma apropriação que chegou até mesmo a levar as atrizes do longa a se arrependerem de terem participado.

Davis, em entrevista ao New York Times em 2018, sete anos após o lançamento de Histórias Cruzadas, comentou que, se pudesse voltar no tempo, não teria participado da releitura às telonas – deixando claro que o problema não era o papel em si, e sim como um drama circundado por discussões tão significativas conseguiu dar mais foco às vozes brancas do que às negras. “Sinto que não foram as vozes das empregadas que foram ouvidas. Eu conheço Aibileen. Eu conheço Minny. Elas são minha avó. Elas são minha mãe. E eu sei que, se você faz um filme cuja premissa é: ‘quero saber o que significa trabalhar para pessoas brancas e cuidar de crianças em 1963’, quero ouvir como você se sente sobre isso. E não ouvi nada disso no filme”, ela comentou. Em outra entrevista, dessa vez à Vanity Fair, a atriz disse: “Há uma parte de mim que sente que eu traí a mim mesma e ao meu povo, porque estava em um filme que não estava pronto para contar toda a verdade”.

Davis não foi a única a expressar sentimentos conflitantes em relação à história. Howard, que ganhou aclame por sua interpretação como a antagonista Hillary, postou em sua página do Facebook uma categórica publicação em que agradecia às amizades que fez durante a produção do filme, mas deixou claro que, caso as pessoas queiram aprender mais sobre direitos civis e segregação racial, ele não é a melhor indicação: Histórias Cruzadas é um filme ficcional, contado a partir da perspectiva de uma personagem branca e que foi criada por artistas predominantemente brancos. Todos nós conseguimos ir além”. Falando ao USA Today, Darnell Hunt, diretor do Centro de Estudos Afro-Americanos da UCLA, disse que, “se eu tivesse que escolher um filme que nos ajuda a compreender onde as pessoas negras estão hoje e quais os problemas enfrentamos, não seria esse”.

Como fica bem claro à medida que nos aproximamos do final de Histórias Cruzadas, Skeeter é creditada pelo trabalho duro – ora, foi ela quem pensou em “dar voz” às empregadas, dando origem a um livro best-seller que dominou as prateleiras das livrarias e expôs os podres da high society de Jackson. Entretanto, quando paramos para analisar, o resultado não tem qualquer impacto sobre Aibileen, Minny e as outras empregadas; pelo contrário, elas permanecem subjugadas da mesma maneira por seus patrões, enquanto Skeeter consegue um emprego em Nova York, finalmente mudando sua vida. E o livro, basicamente, se transforma em uma coleção de tabloides cuja única função social é perpetuar o prazer culposo de fofocas escandalosas – varrendo para baixo do tapete o que, de fato, deveria ser o principal.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Entretanto, pouco depois da repopularização da trama, tanto no cenário literário quanto no cinematográfico, inúmeros historiadores começaram a notar certos elementos bastante controversos na narrativa arquitetada por Stockett, indicando que os temas de racismo e segregação presentes nas obras são nada menos que máscaras teatrais que diminuem a importância magnânima de um movimento social que perdura até hoje. Mais do que isso, coloca em voga a fórmula do “branco salvador”, isso é, um personagem que se apropria inexplicavelmente das dores e das vivências de uma minoria para ascender ao cargo de herói ou heroína, eventualmente recebendo crédito por ter “mudado” o cotidiano dessas pessoas.

The Help (2011)
L-R Octavia Spencer and Viola Davis

Se esse artifício criativo é familiar, não se assuste: caso paremos para pensar na história do entretenimento, é notável como a transição do foco corrobora para a perpetuação de uma espécie de indulgência tradicionalista que há muito precisa ser mudado. Vemos isso, por exemplo, em clássicos como ‘Pocahontas’ até recentes longas-metragens como ‘12 Anos de Escravidão’ e ‘Estrelas Além do Tempo’: em determinado momento, o peso dramático e a densa carga dos personagens que fogem do padrão heteronormativo e caucasiano é diminuída em prol de uma construção endeusada que vem para acabar com as injustiças – deixando bem claro que, sem ele, nada poderia ser resolvido e as minorias ainda estariam sob perigo e maus-tratos.

Em Histórias Cruzadas, a síndrome do branco salvador é destinada a Skeeter. Apesar da interpretação incrível de Emma Stone no papel, a condução da trama é óbvia demais para ser deixada de lado e, no final das contas, não apresenta nenhuma reflexão palpável o bastante para aproveitarmos qualquer coisa além do divertimento. Tanto no livro quanto no filme, Skeeter é a única a se postar contra o tratamento que as empregadas negras recebem de suas patroas – principalmente quando percebe a tóxica relação entre Minny (Octavia Spencer) e Hillary (Bryce Dallas Howard). Decidindo colocar um basta nisso, ela resolve escrever um compilado de contos que põe a elite local em xeque, permitindo que as empregadas tenham voz em um território dominado pela segregação.

“THE HELP”
Emma Stone (left) stars as Skeeter Phelan and Viola Davis stars as Aibileen Clark in this scene from DreamWorks Pictures” “The Help”, based on the New York Times best-selling novel by Kathryn Stockett.
Photo Credit: Dale Robinette
©DreamWorks II Distribution Co., LLC.  All Rights Reserved.

O próprio romance é condescendente e condenável, à medida que coloca Aibileen (vivida por Viola Davis na adaptação fílmica) comparando a cor de sua pele à cor de uma barata – o que levou diversas pessoas a se questionarem sobre o motivo de tal grotesca descrição. Stockett, sendo uma mulher branca, tenta infundir temáticas de extrema importância com uma informalidade desnecessária e uma apropriação que chegou até mesmo a levar as atrizes do longa a se arrependerem de terem participado.

Davis, em entrevista ao New York Times em 2018, sete anos após o lançamento de Histórias Cruzadas, comentou que, se pudesse voltar no tempo, não teria participado da releitura às telonas – deixando claro que o problema não era o papel em si, e sim como um drama circundado por discussões tão significativas conseguiu dar mais foco às vozes brancas do que às negras. “Sinto que não foram as vozes das empregadas que foram ouvidas. Eu conheço Aibileen. Eu conheço Minny. Elas são minha avó. Elas são minha mãe. E eu sei que, se você faz um filme cuja premissa é: ‘quero saber o que significa trabalhar para pessoas brancas e cuidar de crianças em 1963’, quero ouvir como você se sente sobre isso. E não ouvi nada disso no filme”, ela comentou. Em outra entrevista, dessa vez à Vanity Fair, a atriz disse: “Há uma parte de mim que sente que eu traí a mim mesma e ao meu povo, porque estava em um filme que não estava pronto para contar toda a verdade”.

Davis não foi a única a expressar sentimentos conflitantes em relação à história. Howard, que ganhou aclame por sua interpretação como a antagonista Hillary, postou em sua página do Facebook uma categórica publicação em que agradecia às amizades que fez durante a produção do filme, mas deixou claro que, caso as pessoas queiram aprender mais sobre direitos civis e segregação racial, ele não é a melhor indicação: Histórias Cruzadas é um filme ficcional, contado a partir da perspectiva de uma personagem branca e que foi criada por artistas predominantemente brancos. Todos nós conseguimos ir além”. Falando ao USA Today, Darnell Hunt, diretor do Centro de Estudos Afro-Americanos da UCLA, disse que, “se eu tivesse que escolher um filme que nos ajuda a compreender onde as pessoas negras estão hoje e quais os problemas enfrentamos, não seria esse”.

Como fica bem claro à medida que nos aproximamos do final de Histórias Cruzadas, Skeeter é creditada pelo trabalho duro – ora, foi ela quem pensou em “dar voz” às empregadas, dando origem a um livro best-seller que dominou as prateleiras das livrarias e expôs os podres da high society de Jackson. Entretanto, quando paramos para analisar, o resultado não tem qualquer impacto sobre Aibileen, Minny e as outras empregadas; pelo contrário, elas permanecem subjugadas da mesma maneira por seus patrões, enquanto Skeeter consegue um emprego em Nova York, finalmente mudando sua vida. E o livro, basicamente, se transforma em uma coleção de tabloides cuja única função social é perpetuar o prazer culposo de fofocas escandalosas – varrendo para baixo do tapete o que, de fato, deveria ser o principal.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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