sábado , 2 novembro , 2024

Artigo | Irreverência, rebeldia e drama: relembrando o clássico ‘Maria Antonieta’

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Essencialmente, Maria Antonieta é um filme que se finca muito à sua estética para prover uma quase satisfatória diversão ao público. Dirigido por Sofia Coppola, o drama é focado em uma das figuras histórias mais contraditórias da família real franco-austríaca – a qual empresta seu nome para o título – e sobre seu conturbado reinado como arquiduquesa da Áustria, porém fornecendo uma perspectiva completamente nova para a nobreza europeia, focando em um lado mais descontraído e romântico em detrimento de uma narrativa sólida. 

Estrelado por Kirsten Dunst, o terceiro filme de Coppola traz um tom um tanto quanto duvidoso e dúbio. Iniciando-se com um breve prólogo sobre a passagem da duquesa de suas raízes austríacas para um mundo completamente novo, a atmosfera aflitiva constantemente segue a personagem através de uma jornada crescente e perscrutada com obstáculos. Desde o começo da história, conseguimos identificar alguns traços de sua personalidade que serão definitivos ou para sua ruína, ou para sua ascendência e adoração por parte do povo: influenciada pelos trâmites de sua mãe, Maria Teresa, Antonieta emerge como um peão dentro de um jogo político perigoso e mortal, arquitetado como forma de recuperar a aliança entre duas nações inimigas – Áustria e França – ao casar-se com o delfim francês Luís XVI (Jason Schwartzman) e poder fornecer um fim aos conflitos bélicos. 

É claro que, considerando a época na qual o trama é ambientada, a protagonista não seria bem recebida por um povo acostumado a uma linhagem sangue-puro de repente enfrentando uma mudança em suas estruturas políticas que poderia ditar uma revolução sem precedentes. O interessante aqui não é exatamente como as cenas são conduzidas, visto que cada quadro pode ser previsto (o formulaico jogo do campo-contracampo), mas sim como as cores conversam tanto com os personagens quanto com os espectadores. Antonieta permanece grande parte do primeiro ato embebida em tons frios de azul, cinza e roxo, concomitantes à sua sensação ao cruzar as florestas nórdicas que separam os dois reinos. Quando chega a Versailles, a neutralidade da paleta continua, mas a ambiência mórbida toma conta dos grandes jardins do palácio, principalmente em se tratando do pré-julgamento feito pelos membros da corte à nova alteza. 

Ela não é vista com bons olhos; ao longo de seu reinado, ela foi acusada de perdulária e promíscua, influenciando o marido a favor dos interesses austríacos e colocando-o contra seu próprio povo. Entretanto, como bem passamos a saber ao longo dos 120 minutos de narrativa, Antonieta é na verdade constantemente bombardeada por cartas da matriarca de sua família, além de carregar na consciência o peso da realeza, sentindo-se compelida a gerar um herdeiro para manter a linhagem e garantir a supremacia de sangue. De uma perspectiva verossímil e externa, podemos enxergá-la como uma jovem vítima das circunstâncias, cujo trágico fim a transformou em um ícone de inocência e resistência. 

Coppola, também responsável pelo roteiro, resolve colocar seus próprios maneirismos, resgatando alguns elementos semióticos de filmes predecessores – principalmente As Virgens Suicidas’ -, a cineasta consegue de forma cômica e irreverente, unir presente, passado e futuro em pleno século XVII. Para a compreensão total do que está acontecendo e do porquê das escolhas um tanto quanto estranhas à prima vista, é necessário saber que Antonieta casou-se quando tinha apenas catorze anos, ou seja, no auge de sua adolescência. Traçando um paralelo com a mesma faixa etária do século XXI, Coppola opta pelo hibridismo cinematográfico e busca inspiração em diversas comédias românticas do final da década de 1990 e começo dos anos 2000 para compor sequências animadas e que dialoguem com mais vivacidade e força com um público diferenciado, abrindo o leque de possibilidades interpretativas. 

Em determinado momento, mais precisamente em meados do segundo ato, a nossa protagonista deixa-se levar pelo sentimento de culpa de não conseguir cumprir com suas obrigações, além de ser constantemente atacada por rótulos pejorativos sobre sua condição e seu casamento, emergindo como a principal responsável pela decadência do império austro-franco. Desse modo, ela “abdica” de sua condição social para se permitir a alguns prazeres mundanos, inclinando-se diretamente a ícones do cinema contemporâneo como Regina George (Rachel McAddams) em Meninas Malvadas’ ou Cher (Alicia Silverstone) em As Patricinhas de Beverly Hills’. Parece superficial traçar paralelos entre os três longas-metragens, mas é justamente essa distorção temporal que torna ‘Maria Antonieta um dos marcos da própria diretora. 

Durante a “prova de roupas” – uma metáfora para a prerrogativa de “ir às compras” -, vemos Antonieta e suas damas de companhia dispondo-se de inúmeros vestidos pomposos e perscrutados com cores vibrantes e tecidos esvoaçantes, refletindo a própria frivolidade da sociedade do século XVIII. Não contentando-se com trajes, uma montagem com ritmo mais acelerado adiciona um frenesi sensorial que inclui um jogo de cartas, uma degustação de diversos doces e a escolha de adornos como leques, anéis, gargantilhas e outros. 

Em meio a tanta preocupação com a estética dessa obra – ela não levou o Oscar de Melhor Figurino à toa -, o qual resgata exatamente o que procuramos em um drama histórico, principalmente com um momento decisivo para a manutenção da monarquia europeia, Coppola parece ter se esquecido de um dos elementos mais importantes da narrativa: os personagens. A história está lá, o cenário está lá, e os acontecimentos envolvendo a Antonieta, Luís XVI e todas as figuras deste período são conhecidos, profunda ou superficialmente. Entretanto, a própria heroína da história finca-se muito aos estereótipos adolescentes e não tem seu arco bem desenvolvido. Durante duas horas, a encarnação provida por Dunst é apaixonante por um tempo, mas permanece em uma linearidade construtiva insuportavelmente imutável. Ela começa inocente e termina mais inocente ainda, mesmo sendo alvo de perjúrios, rebeliões e até mesmo um trágico fim – o qual não é mostrado. 

Diferentemente da iteração de 1938, estrelada por Norma Shearer e Tyrone Power, a perspectiva de 2006 prefere muito mais direcionar o espectador para como uma dissertação sobre o passado pode ser extremamente irreverente e ainda sim manter-se fiel a suas raízes. Os elementos contraditórios e “fora de contexto” são inúmeros, desde a trilha sonora voltada para o rock e para o pop até a presença de um par de sapatos All-Star em meio a uma coleção rococó. 

Em suma, Maria Antonieta é uma joia bruta, cuja beleza está expressa de forma muito clara em cena, mas que desliza várias vezes na construção de arcos e no encontro de resoluções. Apesar disso, Coppola e Dunst mais uma vez conseguem entregar uma obra um tanto quanto divertida e satisfatória, principalmente para aqueles que não tinham muitas expectativas. Tudo depende da perspectiva – e, baseando-se na qual você escolher, o longa pode ser muito bom ou um desastre completo. 

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Estrelado por Kirsten Dunst, o terceiro filme de Coppola traz um tom um tanto quanto duvidoso e dúbio. Iniciando-se com um breve prólogo sobre a passagem da duquesa de suas raízes austríacas para um mundo completamente novo, a atmosfera aflitiva constantemente segue a personagem através de uma jornada crescente e perscrutada com obstáculos. Desde o começo da história, conseguimos identificar alguns traços de sua personalidade que serão definitivos ou para sua ruína, ou para sua ascendência e adoração por parte do povo: influenciada pelos trâmites de sua mãe, Maria Teresa, Antonieta emerge como um peão dentro de um jogo político perigoso e mortal, arquitetado como forma de recuperar a aliança entre duas nações inimigas – Áustria e França – ao casar-se com o delfim francês Luís XVI (Jason Schwartzman) e poder fornecer um fim aos conflitos bélicos. 

É claro que, considerando a época na qual o trama é ambientada, a protagonista não seria bem recebida por um povo acostumado a uma linhagem sangue-puro de repente enfrentando uma mudança em suas estruturas políticas que poderia ditar uma revolução sem precedentes. O interessante aqui não é exatamente como as cenas são conduzidas, visto que cada quadro pode ser previsto (o formulaico jogo do campo-contracampo), mas sim como as cores conversam tanto com os personagens quanto com os espectadores. Antonieta permanece grande parte do primeiro ato embebida em tons frios de azul, cinza e roxo, concomitantes à sua sensação ao cruzar as florestas nórdicas que separam os dois reinos. Quando chega a Versailles, a neutralidade da paleta continua, mas a ambiência mórbida toma conta dos grandes jardins do palácio, principalmente em se tratando do pré-julgamento feito pelos membros da corte à nova alteza. 

Ela não é vista com bons olhos; ao longo de seu reinado, ela foi acusada de perdulária e promíscua, influenciando o marido a favor dos interesses austríacos e colocando-o contra seu próprio povo. Entretanto, como bem passamos a saber ao longo dos 120 minutos de narrativa, Antonieta é na verdade constantemente bombardeada por cartas da matriarca de sua família, além de carregar na consciência o peso da realeza, sentindo-se compelida a gerar um herdeiro para manter a linhagem e garantir a supremacia de sangue. De uma perspectiva verossímil e externa, podemos enxergá-la como uma jovem vítima das circunstâncias, cujo trágico fim a transformou em um ícone de inocência e resistência. 

Coppola, também responsável pelo roteiro, resolve colocar seus próprios maneirismos, resgatando alguns elementos semióticos de filmes predecessores – principalmente As Virgens Suicidas’ -, a cineasta consegue de forma cômica e irreverente, unir presente, passado e futuro em pleno século XVII. Para a compreensão total do que está acontecendo e do porquê das escolhas um tanto quanto estranhas à prima vista, é necessário saber que Antonieta casou-se quando tinha apenas catorze anos, ou seja, no auge de sua adolescência. Traçando um paralelo com a mesma faixa etária do século XXI, Coppola opta pelo hibridismo cinematográfico e busca inspiração em diversas comédias românticas do final da década de 1990 e começo dos anos 2000 para compor sequências animadas e que dialoguem com mais vivacidade e força com um público diferenciado, abrindo o leque de possibilidades interpretativas. 

Em determinado momento, mais precisamente em meados do segundo ato, a nossa protagonista deixa-se levar pelo sentimento de culpa de não conseguir cumprir com suas obrigações, além de ser constantemente atacada por rótulos pejorativos sobre sua condição e seu casamento, emergindo como a principal responsável pela decadência do império austro-franco. Desse modo, ela “abdica” de sua condição social para se permitir a alguns prazeres mundanos, inclinando-se diretamente a ícones do cinema contemporâneo como Regina George (Rachel McAddams) em Meninas Malvadas’ ou Cher (Alicia Silverstone) em As Patricinhas de Beverly Hills’. Parece superficial traçar paralelos entre os três longas-metragens, mas é justamente essa distorção temporal que torna ‘Maria Antonieta um dos marcos da própria diretora. 

Durante a “prova de roupas” – uma metáfora para a prerrogativa de “ir às compras” -, vemos Antonieta e suas damas de companhia dispondo-se de inúmeros vestidos pomposos e perscrutados com cores vibrantes e tecidos esvoaçantes, refletindo a própria frivolidade da sociedade do século XVIII. Não contentando-se com trajes, uma montagem com ritmo mais acelerado adiciona um frenesi sensorial que inclui um jogo de cartas, uma degustação de diversos doces e a escolha de adornos como leques, anéis, gargantilhas e outros. 

Em meio a tanta preocupação com a estética dessa obra – ela não levou o Oscar de Melhor Figurino à toa -, o qual resgata exatamente o que procuramos em um drama histórico, principalmente com um momento decisivo para a manutenção da monarquia europeia, Coppola parece ter se esquecido de um dos elementos mais importantes da narrativa: os personagens. A história está lá, o cenário está lá, e os acontecimentos envolvendo a Antonieta, Luís XVI e todas as figuras deste período são conhecidos, profunda ou superficialmente. Entretanto, a própria heroína da história finca-se muito aos estereótipos adolescentes e não tem seu arco bem desenvolvido. Durante duas horas, a encarnação provida por Dunst é apaixonante por um tempo, mas permanece em uma linearidade construtiva insuportavelmente imutável. Ela começa inocente e termina mais inocente ainda, mesmo sendo alvo de perjúrios, rebeliões e até mesmo um trágico fim – o qual não é mostrado. 

Diferentemente da iteração de 1938, estrelada por Norma Shearer e Tyrone Power, a perspectiva de 2006 prefere muito mais direcionar o espectador para como uma dissertação sobre o passado pode ser extremamente irreverente e ainda sim manter-se fiel a suas raízes. Os elementos contraditórios e “fora de contexto” são inúmeros, desde a trilha sonora voltada para o rock e para o pop até a presença de um par de sapatos All-Star em meio a uma coleção rococó. 

Em suma, Maria Antonieta é uma joia bruta, cuja beleza está expressa de forma muito clara em cena, mas que desliza várias vezes na construção de arcos e no encontro de resoluções. Apesar disso, Coppola e Dunst mais uma vez conseguem entregar uma obra um tanto quanto divertida e satisfatória, principalmente para aqueles que não tinham muitas expectativas. Tudo depende da perspectiva – e, baseando-se na qual você escolher, o longa pode ser muito bom ou um desastre completo. 

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