“Acho que é importante que as coisas tenham falhas. É isso o que faz de uma peça de arte algo interessante às vezes – aquele pedacinho que está errado ou o erro que você cometeu”.
Kate Bush não se consagrou como um dos maiores nomes da história da música por qualquer razão: além da percepção da imperfeição de si mesma e da própria carreira, como bem denotou na citação acima (feita em entrevista à BBC), a cantora e compositora britânica tornou-se precursora de uma espécie de levante da música alternativa no cenário mainstream, influenciando, através deu um estilo marcado pelo multiplicidade de gêneros e uma expressão vocal impecável, desde nomes como Björk a atos contemporâneos como Charli XCX e A.G. Cook.
Começando sua carreira no final dos anos 1970, Bush ascendeu a uma carreira meteórica, marcada por inúmeros sucessos de crítica e de público – ora, ela até mesmo se tornou o primeiro ato feminino solo a atingir as paradas do Reino Unido. E, agora, a lendária performer adentra uma nova geração de fãs e retoma seu atemporal status como ícone de jovens que estão redescobrindo ou descobrindo sua versatilidade identitária e suas narrativas relacionáveis e recheadas de simbologia.
A não ser que você tenha vivido sob uma rocha nas últimas semanas, deve ter conferido os recentes episódios de ‘Stranger Things’, um dos maiores fenômenos globais da Netflix, e percebido que Bush tem uma presença mais do que marcante na última temporada. Além de integrar a trilha sonora oficial, sua clássica canção “Running Up That Hill” (também conhecida como “Running Up That Hill (A Deal With God)”) tem papel importantíssimo no arco da jovem Max (Sadie Sink), servindo literalmente como uma válvula de escape da dura realidade que enfrenta e dos perigos que a sondam. Considerando a popularidade da série (que quebrou recordes desde sua reestreia na plataforma de streaming), a canção, lançada há quase quarenta anos, caiu no gosto dos espectadores e foi impulsionada por veículos como Spotify e TikTok de forma surpreendente, chegando até mesmo a reentrar nas principais paradas do planeta.
É claro que a explicação para essa recuperação drástica de uma das principais entradas da carreira de Bush é óbvia – e está intimamente ligada a uma globalização social que descreve o que é passageiro e efêmero. É notável como esse viés sociológico é de necessidade ímpar para compreendermos o funcionamento da engrenagem de informações da contemporaneidade, mas não só isso: ele também serve para reafirmar a importância de Bush como símbolo da música avant-garde e das pulsões criativas que vêm acompanhando sua carreira desde os primórdios.
Já faz um tempo desde que a artista não nos agracia com músicas novas e, honestamente, ela mesmo já comentou sobre o longo hiato entre seus álbuns (seu último, ‘50 Words for Snow’, completou dez anos em 2021). Enquanto Madonna, Cher, Elton John e Bob Dylan desfrutam de uma discografia que beira a infinidade, Bush segue a idiossincrasia de um ritmo que recusa a pressa e que acompanha inflexões propositalmente demoradas, infundidas em um cosmos que desmistifica as linhas entre as esferas da arte e as aglutina em possibilidades múltiplas – como visto em “Wuthering Heights”, readaptação inspirada no romance ‘O Morro dos Ventos Uivantes’, de Emily Brontë, movido por um variação soubrette que seria emulada décadas depois por Carly Rae Jepsen ou Kylie Minogue.
“É muito frustrante que os álbuns demorem o tanto que demoram”, ela disse, também em entrevista à BBC. Mas a verdade é que Bush não deveria se sentir frustrada, visto que gesta produções marcantes e que denotam sua paixão pelo novo, pela originalidade. Afinal, ela respira o drama, o teatral e o gótico, transformando a perspectiva que tem do mundo em rendições sinestésicas, pinceladas com metáforas que exalam um profundo conhecimento literário, cinematográfico e fonográfico. À medida que seu nome se tornava mais conhecido pelos ouvintes, sua legião de fãs aumentava exponencialmente, retirando-a do confinamento underground e colocando-a no centro dos holofotes. Porém, esse mesmo sucesso a estimulou a se manter mais fiel àquilo que era compatível e precioso – motivo pelo qual lidamos com vibrações que oscilam do art pop ao pop-rock ao baroque-pop.
Caso esteja familiarizado com o trabalho de Fiona Apple, cuja reconstrução dos estilos musicais lhe deram material o suficiente para o ovacionado ‘Fetch the Bolt Cutters’, agradeça a Bush, pois foi graças a ela que a permissibilidade de experimentações se transformou em uma opção bastante viável para as décadas seguintes. Não obstante o apreço pelas novidades artísticas, nada é engendrado de forma a se perder em revoluções sem sentido: de fato, percebemos as predileções da performer pelo anacronismo proposital, mas sem se deixar perder na estrutura das canções e dos discos; temos o flerte com o glam-rock com a balística exuberância de “Babooshka” e “The Wedding List”; as brincadeiras com a então rudimentar música eletrônica europeia de “Hounds of Love” (título emprestado ao álbum homônimo de 1985) e da supracitada “Running Up That Hill”; e os espetáculos performáticos de “Breathing”, uma ode antêmica pós-apocalíptica, e da gloriosa “This Woman’s Work”.
É sempre ótimo ver grandes artistas recebendo o reconhecimento que merecem – e, no caso de Kate Bush, uma “validação” multigeracional que reitera sua importância e seu legado na indústria do entretenimento. E, para parafrasear um comentário que vi recentemente nas redes sociais, ouvi-la pela primeira vez nos dias de hoje é um convite a revisitar um passado recheado de joias musicais e convidá-la para um agora que, sem dúvida alguma, se torna mais colorido com a sua presença.