domingo , 22 dezembro , 2024

Artigo | Misticismo, revolução e fábula na clássica animação da Disney ‘A Bela e a Fera’

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É inegável que, na década de 1990, os estúdios Disney já estavam com seu império cinematográfico extremamente consolidado. Desde o final da década de 1930, com o lançamento de ‘Branca de Neve e os Sete Anões’, as técnicas para filmagem em animação alcançaram uma evolução exponencial, atravessando a utilização de lâminas de vidro para a ilusão de profundidade até culminar nas animações em 3D que conhecemos hoje. Entretanto, ouso dizer que não há animação mais marcante que ‘A Bela e a Fera’, uma das principais obras que colocaram os estúdios na chamada Era de Ouro – e que permitiu a produção de outros clássicos como ‘A Pequena Sereia’, ‘Aladdin’ e ‘O Rei Leão’.

Devemos ter em mente de que a narrativa desta obra é atemporal, até mais que outras histórias adaptadas pela companhia supracitada. A trama principal gira em torno de uma jovem garota, emprestando seu nome ao título, que vê sua vida mudar completamente ao incidentalmente se tornar prisioneira de uma terrível criatura – que também dá nome às cartas do jogo. Conhecendo o estilo de releituras de contos de fada seculares, já é de se esperar que os maniqueísmos conflituosos entre “bem x mal” acompanhem as viradas no roteiro – mas, diferente do que estávamos acostumados, cada entrada de personagem tem um propósito muito maior.



O longa começa com uma composição sonora essencialmente formada por violoncelos e a suave melodia modal de um piano, arquitetada por um dos grandes mestres da música, Alan Menken – em companhia de seu letrista Howard Ashman. A câmera desliza por paisagens quase paradisíacas até se aproximar de um vitral adornado por campânulas murchas – cujos tons de lilás casam perfeitamente com a sobriedade da narração de David Ogden Stiers (também dublador original de outro personagem, Cogsworth). Somos apresentados ao pano de fundo da obra, e a utilização das janelas como recurso estilístico confere uma aura angelical e macabra, combinada com uma geometria exacerbada que prevê conflitos e obstáculos.

O foco desta introdução é a Fera (Raymond Benson), um personagem arrogante e mimado que se importa mais com as aparências que com as essências – uma metáfora interessante inclusive para a sociedade contemporânea. Seu reino e sua estabilidade monárquica são ameaçados pela inevitável aparição de uma Feiticeira, cuja maldição é fortalecida pelo símbolo da rosa vermelha (uma flor associada à paz, à pureza e aos novos começos). A potência de seu feitiço é tamanha que todos os habitantes do Castelo são transformados em mobília, enquanto o príncipe regente exterioriza toda a podridão de sua personalidade, ganhando chifres, presas, garras e um temperamento agressivo.

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O foreshadowing entra como um recurso óbvio aqui, indicando que a outra protagonista será a responsável por quebrar a maldição e livrá-los de um destino muito pior que a morte. Deste modo, prever o desfecho não é um trabalho complicado, mas isso em momento algum interfere na grandiosidade de sua composição e no desenrolar dos eventos. Os acontecimentos são muito bem delineados pelo roteiro assinado por Linda Woolverton, cujas inúmeras referências à história original e a produções anteriores (vide a ópera ‘La Belle et la Bête’) contribuem para endossar A Bela e a Fera como uma obra-prima.

Já aqui percebemos a identidade teatral do filme: o foco oscila entre os vários elementos dentro de uma sequência, como se seguisse um holofote invisível capaz de desviar ou canalizar a atenção do público. Os takes em que a Fera entra em autocomiseração logo a colocam em pontos cegos para que o espectador seja atraído pelo mortal brilho da rosa e da redoma encantada, pincelada com um misticismo aterrorizante.

Até mesmo a brutal diferença de atmosferas entre o Castelo e o vilarejo é tratada com naturalidade. O corte é acompanhado pelo fade out antes de sermos finalmente apresentados à comunidade de Villeneuve, um lugar praticamente saído dos livros de ficção e que não é muito diferente de outras cidadelas tão presentes em narrativas épicas. Temos cenários levemente distorcidos e curvilíneos, como se estivessem buscando uma estabilidade dentro de um microcosmos homogêneo, tudo adornado com simplicidade de humildade – em contraste com a imponência exacerbada da morada da Fera. A paleta de cores encontra sua voz na excentricidade e na mistura de cores vivas como amarelo, dourado e vermelho, indicando a inegável ficcionalidade daquele lugar.

E então, finalmente, Bela (Paige O’Hara) se mostra. E sua presença é notada quase de imediato, justamente por não seguir o padrão dos outros moradores – ela é excêntrica por não ser excêntrica. Suas vestes restringem-se à simples combinação transparecida de branco e azul, conferindo-lhe uma graça à medida que anda pelas ruas de pedra. Ela sai de casa carregando uma cesta de cânhamo em uma mão, e um livro em outra, como se estivesse flutuando – e então vemos a primeira característica de sua personalidade: o instinto de aventura. Através de seu solo, chamado “Belle” (no original), ela constantemente diz para si mesma que “deve haver mais além desta vida provinciana”. Bela deseja e está pronta para expandir seus horizontes e sair da bolha à qual todos os outros parecem estar presos; ela é um arquétipo sobrepondo-se em meio a tantos estereótipos.

Seja o padeiro, o vendedor, a dama-de-companhia ou a dona-de-casa, seus vizinhos são cobertos com uma luz dura que os funde às instalações do vilarejo; eles já fazem parte daquela comunidade e não querem alguma mudança – e a protagonista é rechaçada justamente por estar à frente de seu tempo e remexer no comodismo social, seja pelo fato de ler, seja pelo fato de sonhar grande. O próprio arranjo orquestral traz uma animação interior que se aproxima da psique libertária de Bela.

Mas a narrativa não seria envolvente o suficiente caso ela não encontrasse obstáculos – e em A Bela e a Fera, tais conflitos vêm encarnados pelas personalidades extremamente caricaturadas de Gaston (Richard White) e LeFou (Jesse Corti), a “dupla herói-ajudante” que claramente faz uma referência irreverente às construções heroicas das narrativas gregas. Gaston é um homem sem caráter e completamente cego pela própria megalomania – o típico valentão musculoso e primitivo da épica antiga -, enquanto LeFou é uma vítima da circunstância, cuja adoração por seu “mestre” o transforma em um escape cômico submisso e sem qualquer traço de personalidade aparente.

Suas tentativas para conquistar Bela são no máximo cômicas, se não fossem trágicas. Ele constantemente tenta submetê-la ao padrão milenar do casamento, diminuindo sua incrível força de vontade para transformá-la num fantoche. Mas é claro que ela não se deixa vencer e volta a sonhar com uma vida completamente diferente – note que a protagonista não se restringe aos valores que lhe são impostos, mas deseja criar seu próprio entendimento sobre o mundo, afastando-se da massa amorfa e inalterável da comunidade em que vive.

Um dos grandes motivos dessa afinidade com a mudança é representado por seu pai, Maurice (Rex Everhart), que também emerge como o estereótipo do cientista louco de bom coração. Sua caracterização se baseia principalmente na falta de senso coletivo e na individualização de seus problemas – citando aqui seu enclausuramento no porão que utiliza para suas criações. Entretanto, ele não consegue passar um sentimento de segurança totalmente legível, sendo amparado diversas vezes pela filha, a qual deseja se desprender de sua vida campesina e explorar o desconhecido.

É possível até dizer que, se não fosse por seu pai, Bela jamais teria o motivo essencial para abandonar sua vida campesina. Afinal, logo depois que consegue fazer uma de suas últimas invenções funcionar, Maurice viaja até a cidade mais próxima para vendê-la, mas acaba entrando no caminho errado e chegando ao Castelo da Fera. A transição entre segurança e mortandade é evidenciada principalmente pela paleta de cores, a qual oscila entre tons de vermelho e verde para os mais neutros e pastéis, e pela melodia – uma composição em piano e xilofone tétrica que contribui para a atmosfera de suspense.

A estética expressionista é também muito presente na animação. Além dos cenários distorcidos do vilarejo, a arquitetura do Castelo é uma mistura híbrida e muito certeira das obras góticas do século XIII com toques da vanguarda artística supracitada. As sombras metamórficas são constantes e, a princípio, indicam a presença de um perigo eminente – ainda que se revelem inofensivas, como podemos ver em algumas sequências de Maurice dentro da morada da Fera. Árvores secas e com galhos retorcidos, a constância da névoa e a sensação de aprisionamento se relacionam ao locus horrendus da escola simbolista – e mostram a capacidade de intertextualidade que este filme traz consigo.

A imponência é também evidenciada pela composição dos planos: contra plongées muito bem colocados, exacerbação da dramaticidade, o contraste entre a pequenez dos personagens humanos e o gigantismo do “refúgio simbólico” e a continuidade azulada que reafirma a sensação de solidão, mesmo num cenário tão vasto quanto aquele. A superposição de tons cálidos e frios entra como um elemento assertivo para a sensação de profundidade e de infinitude, além de ajudar a narrativa a declarar que há mais coisas além do que observamos na superfície.

Ao descobrir que seu pai tornou-se prisioneiro da Fera (o suposto antagonista), Bela finalmente decidi sair do enclausuramento e firmar-se como a heroína da história, atravessando o mesmo perigoso bosque para dar de cara com uma cenário inesperado: torres alterosas rasgando um céu nublado, e um jardim seco tomado pela neve. E é aí que o incidente incitante da narrativa tem seu objetivo cumprido.

Talvez eu possa dizer que, assim que a protagonista se oferece para ocupar o lugar do pai, A Bela e a Fera comece a se configurar como um filme realmente da Disney, primeiramente pela presença dos personagens coadjuvantes e segundamente por alguns traços identitários difíceis de abandonar – mas que garantiram a solidez deste império cinematográfico.

É necessário dizer que, na obra original (assinada por Gabrielle-Suzanne Barbot), as criações secundárias que nos permitiram se apaixonar ainda mais pelo filme não existem. Sua grandiosidade é acompanhada de uma narrativa simples e brilhante, que foca nas relações intimistas entre os protagonistas. Provavelmente uma adaptação literal do romance não teria sido bem-vista e bem aceita pelo público – levando em conta a densidade da estória. Deste modo, optar por introduzir uma mobília encantada foi um tiro certeiro.

A adorabilidade de personagens como Lumière (Jerry Orbach), Cogsworth (Stiers), Mrs. Potts (Angela Lansbury), Chip (Bradley Pierce) e outros entra em constante conflito com a impetuosidade de seu mestre. A paixão pela servitude e a cordialidade extremas são valores inerentes a suas personalidades, mas, diferentemente dos camponeses da vila, estes traços não os transformam em um coletivo homogêneo – muito pelo contrário: enquanto Lumière é mais irreverente e mais sedutor, Mrs. Potts preza pela justiça e pelo equilíbrio, enquanto Cogsworth deixa-se levar ao pé da letra pelas regras.

A primeira noite de Bela no Castelo retoma elementos de outras criações audiovisuais dos estúdios, principalmente ‘Branca de Neve’ e ‘Bela Adormecida’. A utilização de planos holandeses, atrelada ao jogo de luz e sombra, aumentam o clima de tensão. Mas conforme o tempo vai passando, percebemos que a protagonista talvez tenha encontrado seu lugar em meio a um caos aparente – concretizada pela música “Something There”, sequência na qual duas personalidades completamente diferentes começam a se entender. A Fera não consegue compreender o conceito de altruísmo e de benevolência emanado por Bela, enquanto ela não consegue entender sua falta de controle temperamental e sua arrogância constante.

A mudança atmosférica entre os dois cenários principais é gradativa, mas notável. Enquanto o vilarejo a priori se mostra embebido por cores vivas e por uma instabilidade amorfa, a morada da Fera parece ter sido retirada diretamente de obras como ‘Drácula’ ou ‘Nosferatu’, afastando os viajantes que ousassem passar por ali. Mas conforme a narrativa se desenrola, toda a identidade visual é transgredida: a trilha sólida e dramática do Castelo dá espaço para o misticismo de um piano de causa, indicando uma compreensão mútua entre os protagonistas.

A chegada de um inverno brusco também marca uma reviravolta na história. É preciso compreender que o território comandado pela Fera se configura como um microcosmos independente, no qual o abandono de esperança é constante – e aqui a melodramaticidade registrada das adaptações Disney encontra o espaço com o puro sofrimento de Bela. Mas a primavera logo vem com mais força, transformando inclusive as sensações que outrora tínhamos quanto àquele lugar.

Um dos grandes ápices da animação é a sequência musical de “Be Our Guest”. Tanto a melodia e a letra quanto a coreografia fornecem o cenário seiscentista da narrativa, combinado com a identidade essencialmente francesa. Lumière é o astro principal, e começa a dissertar sobre a arte do jantar e das habilidades de cada um dos habitantes do Castelo enquanto é acompanhada por notas de sanfona soberbas. A escolha das cores é muito bem pensada – um hibridismo psicodélico entre cores complementares e harmônicas que arranca um sorriso até dos mais céticos (a composição entre verde e rosa é de uma perfeição inenarrável).

Outro ponto extremamente positivo é a consumação romântica entre Bela e a Fera com o baile de gala, sustentado por uma rendição emocionante de Lansbury com “Beauty and the Beast” – música ganhadora do Oscar em 1992. A justaposição entre dourado e azul é encantadora, e enquanto nas sequências anteriores as cores se fundiam, aqui a profusão é quase inexistente, marcando uma evolução no relacionamento e no amadurecimento entre eles.

Os momentos de tensão também encontram um crescimento exponencial na metade do terceiro ato, em que Gaston, mergulhando de cabeça em sua própria personalidade evasiva e controladora, consegue manipular todo o vilarejo para invadirem o Castelo e matarem a Fera, como forma de livrar Bela e Maurice de um “estado letárgico das trevas” – mas, na verdade, é o modo em que o real antagonista encontra para reafirmar sua virilidade e sua superioridade perante aos outros personagens.

A batalha final, travada e coreografada com maestria entre dois símbolos paradoxais, funciona como uma sequência resumida de todos os elementos da animação. Os planos holandeses encontram ainda mais voz, bem como as angulações distorcidas e os contra plongées. Mas diferentemente dos dois primeiros atos, o comportamento antissocial e repulsivo da Fera está subjugado à cegueira exacerbada de Gaston. À medida em que os dois se aproximam de uma construção semelhante a um penhasco, o antagonista levanta sua arma, pronto para desferir o golpe no príncipe amaldiçoado. Toda a composição do quadro mostra por segundos angustiantes o triunfo do mal sobre o bem, até que Bela, surgindo como objeto de foco, consegue – ainda que indiretamente – inverter a situação.

É quase automático prever o desfecho da obra: assim como filmes antecessores, o bem triunfa sobre o mal e os personagens encontram sua redenção perante à maldição da Feiticeira. Além disso, a evolução dos protagonistas se concretiza de modo a declarar independência à personalidade aventureira de Bela – que, além disso, encontrou seu amor verdadeiro – e mostrando a generosidade e o altruísmo da Fera – que voltou ao seu estado original (assim como todos os servos do Castelo. Este finalzinho do último ato é completamente perscrutado pela melodia em crescendo de Menken, e a re-transformação é toda acompanhada por uma construção orquestral épica.

Caracterizar A Bela e a Fera como uma obra-prima é um trabalho complicado, principalmente pelas diversas e complexas camadas que compõe a animação. Sua superioridade frente a outros filmes do estúdio vai além da narrativa emocionante e envolvente, alastrando-se para vertentes simbólicas muito bem estruturadas. Temos, como exemplo mais visível, a rosa, cujo significado usual está diretamente relacionado à segurança e ao novo começo. Entretanto, o próprio design deste objeto cênico é diferenciado, e seu brilho mortal entrega as reais intenções da Feiticeira: uma versão inanimada do príncipe arrogante (bonito por fora e intragável por dentro).

O espelho é outro elemento de grande importância narrativa, e está presente na animação de diversas formas – água, janela, o objeto em si e até no reflexo dos olhos dos animais. Com grande associação ao mito de Narciso, jovem grego que se apaixonou pelo próprio reflexo do lago e acabou por se afogar, o espelho funciona como elemento de autocontemplação pessoal e universal, correlacionando-se ao fato da Fera não se importar com outras criaturas além de si mesma. Mas ele também está conectado à pureza e à sinceridade, fatores muito presentes com a chegada de Bela ao Castelo, prevendo uma mudança drástica na vida de todos que ali vivem.

Uma das comparações mais marcantes de todo o longa é, sem dúvida, os dois frames que iniciam e fecham a história. Como já dito, os vitrais do começo estão tomados por uma geometria extenuante que conversa com as flores mortas ao redor – afinal, os conflitos apenas começaram. Nos segundos finais, a mesma composição aparece, mas com uma paleta de cores mais uniforme e, desta vez, com ramos de botões de rosa formando uma pérgula arqueada.

A Era de Ouro da Disney talvez não tenha um melhor representante. A Bela e a Fera permanece até hoje conservada em sua atemporalidade, servindo como grande exemplo narrativo e técnico e entrando como o primeiro longa de animação a ser indicado para o Oscar de Melhor Filme. E, bom, convenhamos que um conto tão eterno quanto o próprio tempo não merece menos que este patamar na história.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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É inegável que, na década de 1990, os estúdios Disney já estavam com seu império cinematográfico extremamente consolidado. Desde o final da década de 1930, com o lançamento de ‘Branca de Neve e os Sete Anões’, as técnicas para filmagem em animação alcançaram uma evolução exponencial, atravessando a utilização de lâminas de vidro para a ilusão de profundidade até culminar nas animações em 3D que conhecemos hoje. Entretanto, ouso dizer que não há animação mais marcante que ‘A Bela e a Fera’, uma das principais obras que colocaram os estúdios na chamada Era de Ouro – e que permitiu a produção de outros clássicos como ‘A Pequena Sereia’, ‘Aladdin’ e ‘O Rei Leão’.

Devemos ter em mente de que a narrativa desta obra é atemporal, até mais que outras histórias adaptadas pela companhia supracitada. A trama principal gira em torno de uma jovem garota, emprestando seu nome ao título, que vê sua vida mudar completamente ao incidentalmente se tornar prisioneira de uma terrível criatura – que também dá nome às cartas do jogo. Conhecendo o estilo de releituras de contos de fada seculares, já é de se esperar que os maniqueísmos conflituosos entre “bem x mal” acompanhem as viradas no roteiro – mas, diferente do que estávamos acostumados, cada entrada de personagem tem um propósito muito maior.

O longa começa com uma composição sonora essencialmente formada por violoncelos e a suave melodia modal de um piano, arquitetada por um dos grandes mestres da música, Alan Menken – em companhia de seu letrista Howard Ashman. A câmera desliza por paisagens quase paradisíacas até se aproximar de um vitral adornado por campânulas murchas – cujos tons de lilás casam perfeitamente com a sobriedade da narração de David Ogden Stiers (também dublador original de outro personagem, Cogsworth). Somos apresentados ao pano de fundo da obra, e a utilização das janelas como recurso estilístico confere uma aura angelical e macabra, combinada com uma geometria exacerbada que prevê conflitos e obstáculos.

O foco desta introdução é a Fera (Raymond Benson), um personagem arrogante e mimado que se importa mais com as aparências que com as essências – uma metáfora interessante inclusive para a sociedade contemporânea. Seu reino e sua estabilidade monárquica são ameaçados pela inevitável aparição de uma Feiticeira, cuja maldição é fortalecida pelo símbolo da rosa vermelha (uma flor associada à paz, à pureza e aos novos começos). A potência de seu feitiço é tamanha que todos os habitantes do Castelo são transformados em mobília, enquanto o príncipe regente exterioriza toda a podridão de sua personalidade, ganhando chifres, presas, garras e um temperamento agressivo.

O foreshadowing entra como um recurso óbvio aqui, indicando que a outra protagonista será a responsável por quebrar a maldição e livrá-los de um destino muito pior que a morte. Deste modo, prever o desfecho não é um trabalho complicado, mas isso em momento algum interfere na grandiosidade de sua composição e no desenrolar dos eventos. Os acontecimentos são muito bem delineados pelo roteiro assinado por Linda Woolverton, cujas inúmeras referências à história original e a produções anteriores (vide a ópera ‘La Belle et la Bête’) contribuem para endossar A Bela e a Fera como uma obra-prima.

Já aqui percebemos a identidade teatral do filme: o foco oscila entre os vários elementos dentro de uma sequência, como se seguisse um holofote invisível capaz de desviar ou canalizar a atenção do público. Os takes em que a Fera entra em autocomiseração logo a colocam em pontos cegos para que o espectador seja atraído pelo mortal brilho da rosa e da redoma encantada, pincelada com um misticismo aterrorizante.

Até mesmo a brutal diferença de atmosferas entre o Castelo e o vilarejo é tratada com naturalidade. O corte é acompanhado pelo fade out antes de sermos finalmente apresentados à comunidade de Villeneuve, um lugar praticamente saído dos livros de ficção e que não é muito diferente de outras cidadelas tão presentes em narrativas épicas. Temos cenários levemente distorcidos e curvilíneos, como se estivessem buscando uma estabilidade dentro de um microcosmos homogêneo, tudo adornado com simplicidade de humildade – em contraste com a imponência exacerbada da morada da Fera. A paleta de cores encontra sua voz na excentricidade e na mistura de cores vivas como amarelo, dourado e vermelho, indicando a inegável ficcionalidade daquele lugar.

E então, finalmente, Bela (Paige O’Hara) se mostra. E sua presença é notada quase de imediato, justamente por não seguir o padrão dos outros moradores – ela é excêntrica por não ser excêntrica. Suas vestes restringem-se à simples combinação transparecida de branco e azul, conferindo-lhe uma graça à medida que anda pelas ruas de pedra. Ela sai de casa carregando uma cesta de cânhamo em uma mão, e um livro em outra, como se estivesse flutuando – e então vemos a primeira característica de sua personalidade: o instinto de aventura. Através de seu solo, chamado “Belle” (no original), ela constantemente diz para si mesma que “deve haver mais além desta vida provinciana”. Bela deseja e está pronta para expandir seus horizontes e sair da bolha à qual todos os outros parecem estar presos; ela é um arquétipo sobrepondo-se em meio a tantos estereótipos.

Seja o padeiro, o vendedor, a dama-de-companhia ou a dona-de-casa, seus vizinhos são cobertos com uma luz dura que os funde às instalações do vilarejo; eles já fazem parte daquela comunidade e não querem alguma mudança – e a protagonista é rechaçada justamente por estar à frente de seu tempo e remexer no comodismo social, seja pelo fato de ler, seja pelo fato de sonhar grande. O próprio arranjo orquestral traz uma animação interior que se aproxima da psique libertária de Bela.

Mas a narrativa não seria envolvente o suficiente caso ela não encontrasse obstáculos – e em A Bela e a Fera, tais conflitos vêm encarnados pelas personalidades extremamente caricaturadas de Gaston (Richard White) e LeFou (Jesse Corti), a “dupla herói-ajudante” que claramente faz uma referência irreverente às construções heroicas das narrativas gregas. Gaston é um homem sem caráter e completamente cego pela própria megalomania – o típico valentão musculoso e primitivo da épica antiga -, enquanto LeFou é uma vítima da circunstância, cuja adoração por seu “mestre” o transforma em um escape cômico submisso e sem qualquer traço de personalidade aparente.

Suas tentativas para conquistar Bela são no máximo cômicas, se não fossem trágicas. Ele constantemente tenta submetê-la ao padrão milenar do casamento, diminuindo sua incrível força de vontade para transformá-la num fantoche. Mas é claro que ela não se deixa vencer e volta a sonhar com uma vida completamente diferente – note que a protagonista não se restringe aos valores que lhe são impostos, mas deseja criar seu próprio entendimento sobre o mundo, afastando-se da massa amorfa e inalterável da comunidade em que vive.

Um dos grandes motivos dessa afinidade com a mudança é representado por seu pai, Maurice (Rex Everhart), que também emerge como o estereótipo do cientista louco de bom coração. Sua caracterização se baseia principalmente na falta de senso coletivo e na individualização de seus problemas – citando aqui seu enclausuramento no porão que utiliza para suas criações. Entretanto, ele não consegue passar um sentimento de segurança totalmente legível, sendo amparado diversas vezes pela filha, a qual deseja se desprender de sua vida campesina e explorar o desconhecido.

É possível até dizer que, se não fosse por seu pai, Bela jamais teria o motivo essencial para abandonar sua vida campesina. Afinal, logo depois que consegue fazer uma de suas últimas invenções funcionar, Maurice viaja até a cidade mais próxima para vendê-la, mas acaba entrando no caminho errado e chegando ao Castelo da Fera. A transição entre segurança e mortandade é evidenciada principalmente pela paleta de cores, a qual oscila entre tons de vermelho e verde para os mais neutros e pastéis, e pela melodia – uma composição em piano e xilofone tétrica que contribui para a atmosfera de suspense.

A estética expressionista é também muito presente na animação. Além dos cenários distorcidos do vilarejo, a arquitetura do Castelo é uma mistura híbrida e muito certeira das obras góticas do século XIII com toques da vanguarda artística supracitada. As sombras metamórficas são constantes e, a princípio, indicam a presença de um perigo eminente – ainda que se revelem inofensivas, como podemos ver em algumas sequências de Maurice dentro da morada da Fera. Árvores secas e com galhos retorcidos, a constância da névoa e a sensação de aprisionamento se relacionam ao locus horrendus da escola simbolista – e mostram a capacidade de intertextualidade que este filme traz consigo.

A imponência é também evidenciada pela composição dos planos: contra plongées muito bem colocados, exacerbação da dramaticidade, o contraste entre a pequenez dos personagens humanos e o gigantismo do “refúgio simbólico” e a continuidade azulada que reafirma a sensação de solidão, mesmo num cenário tão vasto quanto aquele. A superposição de tons cálidos e frios entra como um elemento assertivo para a sensação de profundidade e de infinitude, além de ajudar a narrativa a declarar que há mais coisas além do que observamos na superfície.

Ao descobrir que seu pai tornou-se prisioneiro da Fera (o suposto antagonista), Bela finalmente decidi sair do enclausuramento e firmar-se como a heroína da história, atravessando o mesmo perigoso bosque para dar de cara com uma cenário inesperado: torres alterosas rasgando um céu nublado, e um jardim seco tomado pela neve. E é aí que o incidente incitante da narrativa tem seu objetivo cumprido.

Talvez eu possa dizer que, assim que a protagonista se oferece para ocupar o lugar do pai, A Bela e a Fera comece a se configurar como um filme realmente da Disney, primeiramente pela presença dos personagens coadjuvantes e segundamente por alguns traços identitários difíceis de abandonar – mas que garantiram a solidez deste império cinematográfico.

É necessário dizer que, na obra original (assinada por Gabrielle-Suzanne Barbot), as criações secundárias que nos permitiram se apaixonar ainda mais pelo filme não existem. Sua grandiosidade é acompanhada de uma narrativa simples e brilhante, que foca nas relações intimistas entre os protagonistas. Provavelmente uma adaptação literal do romance não teria sido bem-vista e bem aceita pelo público – levando em conta a densidade da estória. Deste modo, optar por introduzir uma mobília encantada foi um tiro certeiro.

A adorabilidade de personagens como Lumière (Jerry Orbach), Cogsworth (Stiers), Mrs. Potts (Angela Lansbury), Chip (Bradley Pierce) e outros entra em constante conflito com a impetuosidade de seu mestre. A paixão pela servitude e a cordialidade extremas são valores inerentes a suas personalidades, mas, diferentemente dos camponeses da vila, estes traços não os transformam em um coletivo homogêneo – muito pelo contrário: enquanto Lumière é mais irreverente e mais sedutor, Mrs. Potts preza pela justiça e pelo equilíbrio, enquanto Cogsworth deixa-se levar ao pé da letra pelas regras.

A primeira noite de Bela no Castelo retoma elementos de outras criações audiovisuais dos estúdios, principalmente ‘Branca de Neve’ e ‘Bela Adormecida’. A utilização de planos holandeses, atrelada ao jogo de luz e sombra, aumentam o clima de tensão. Mas conforme o tempo vai passando, percebemos que a protagonista talvez tenha encontrado seu lugar em meio a um caos aparente – concretizada pela música “Something There”, sequência na qual duas personalidades completamente diferentes começam a se entender. A Fera não consegue compreender o conceito de altruísmo e de benevolência emanado por Bela, enquanto ela não consegue entender sua falta de controle temperamental e sua arrogância constante.

A mudança atmosférica entre os dois cenários principais é gradativa, mas notável. Enquanto o vilarejo a priori se mostra embebido por cores vivas e por uma instabilidade amorfa, a morada da Fera parece ter sido retirada diretamente de obras como ‘Drácula’ ou ‘Nosferatu’, afastando os viajantes que ousassem passar por ali. Mas conforme a narrativa se desenrola, toda a identidade visual é transgredida: a trilha sólida e dramática do Castelo dá espaço para o misticismo de um piano de causa, indicando uma compreensão mútua entre os protagonistas.

A chegada de um inverno brusco também marca uma reviravolta na história. É preciso compreender que o território comandado pela Fera se configura como um microcosmos independente, no qual o abandono de esperança é constante – e aqui a melodramaticidade registrada das adaptações Disney encontra o espaço com o puro sofrimento de Bela. Mas a primavera logo vem com mais força, transformando inclusive as sensações que outrora tínhamos quanto àquele lugar.

Um dos grandes ápices da animação é a sequência musical de “Be Our Guest”. Tanto a melodia e a letra quanto a coreografia fornecem o cenário seiscentista da narrativa, combinado com a identidade essencialmente francesa. Lumière é o astro principal, e começa a dissertar sobre a arte do jantar e das habilidades de cada um dos habitantes do Castelo enquanto é acompanhada por notas de sanfona soberbas. A escolha das cores é muito bem pensada – um hibridismo psicodélico entre cores complementares e harmônicas que arranca um sorriso até dos mais céticos (a composição entre verde e rosa é de uma perfeição inenarrável).

Outro ponto extremamente positivo é a consumação romântica entre Bela e a Fera com o baile de gala, sustentado por uma rendição emocionante de Lansbury com “Beauty and the Beast” – música ganhadora do Oscar em 1992. A justaposição entre dourado e azul é encantadora, e enquanto nas sequências anteriores as cores se fundiam, aqui a profusão é quase inexistente, marcando uma evolução no relacionamento e no amadurecimento entre eles.

Os momentos de tensão também encontram um crescimento exponencial na metade do terceiro ato, em que Gaston, mergulhando de cabeça em sua própria personalidade evasiva e controladora, consegue manipular todo o vilarejo para invadirem o Castelo e matarem a Fera, como forma de livrar Bela e Maurice de um “estado letárgico das trevas” – mas, na verdade, é o modo em que o real antagonista encontra para reafirmar sua virilidade e sua superioridade perante aos outros personagens.

A batalha final, travada e coreografada com maestria entre dois símbolos paradoxais, funciona como uma sequência resumida de todos os elementos da animação. Os planos holandeses encontram ainda mais voz, bem como as angulações distorcidas e os contra plongées. Mas diferentemente dos dois primeiros atos, o comportamento antissocial e repulsivo da Fera está subjugado à cegueira exacerbada de Gaston. À medida em que os dois se aproximam de uma construção semelhante a um penhasco, o antagonista levanta sua arma, pronto para desferir o golpe no príncipe amaldiçoado. Toda a composição do quadro mostra por segundos angustiantes o triunfo do mal sobre o bem, até que Bela, surgindo como objeto de foco, consegue – ainda que indiretamente – inverter a situação.

É quase automático prever o desfecho da obra: assim como filmes antecessores, o bem triunfa sobre o mal e os personagens encontram sua redenção perante à maldição da Feiticeira. Além disso, a evolução dos protagonistas se concretiza de modo a declarar independência à personalidade aventureira de Bela – que, além disso, encontrou seu amor verdadeiro – e mostrando a generosidade e o altruísmo da Fera – que voltou ao seu estado original (assim como todos os servos do Castelo. Este finalzinho do último ato é completamente perscrutado pela melodia em crescendo de Menken, e a re-transformação é toda acompanhada por uma construção orquestral épica.

Caracterizar A Bela e a Fera como uma obra-prima é um trabalho complicado, principalmente pelas diversas e complexas camadas que compõe a animação. Sua superioridade frente a outros filmes do estúdio vai além da narrativa emocionante e envolvente, alastrando-se para vertentes simbólicas muito bem estruturadas. Temos, como exemplo mais visível, a rosa, cujo significado usual está diretamente relacionado à segurança e ao novo começo. Entretanto, o próprio design deste objeto cênico é diferenciado, e seu brilho mortal entrega as reais intenções da Feiticeira: uma versão inanimada do príncipe arrogante (bonito por fora e intragável por dentro).

O espelho é outro elemento de grande importância narrativa, e está presente na animação de diversas formas – água, janela, o objeto em si e até no reflexo dos olhos dos animais. Com grande associação ao mito de Narciso, jovem grego que se apaixonou pelo próprio reflexo do lago e acabou por se afogar, o espelho funciona como elemento de autocontemplação pessoal e universal, correlacionando-se ao fato da Fera não se importar com outras criaturas além de si mesma. Mas ele também está conectado à pureza e à sinceridade, fatores muito presentes com a chegada de Bela ao Castelo, prevendo uma mudança drástica na vida de todos que ali vivem.

Uma das comparações mais marcantes de todo o longa é, sem dúvida, os dois frames que iniciam e fecham a história. Como já dito, os vitrais do começo estão tomados por uma geometria extenuante que conversa com as flores mortas ao redor – afinal, os conflitos apenas começaram. Nos segundos finais, a mesma composição aparece, mas com uma paleta de cores mais uniforme e, desta vez, com ramos de botões de rosa formando uma pérgula arqueada.

A Era de Ouro da Disney talvez não tenha um melhor representante. A Bela e a Fera permanece até hoje conservada em sua atemporalidade, servindo como grande exemplo narrativo e técnico e entrando como o primeiro longa de animação a ser indicado para o Oscar de Melhor Filme. E, bom, convenhamos que um conto tão eterno quanto o próprio tempo não merece menos que este patamar na história.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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