A ideia de que todas as histórias já foram contadas parte de uma premissa lógica: todos os acontecimentos dramáticos e passíveis de correlação com o cotidiano das pessoas são retratados em formas narrativas desde o homem primitivo, atravessando os épicos da Grécia Antiga, das críticas sociais dissertadas pelo Realismo, até chegar à quebra de padrões literários com o Modernismo. Hoje, podemos compreender que há um simulacro de contos milenares, que passa por uma reanálise e um fornecimento de perspectiva original ou nunca antes pensado, adicionando camadas de complexidade para clichês de gênero, por exemplo, ou criando personagens fora da zona de conforto e que se provam, na maioria dos casos, mais verdadeiros que os estereótipos aos quais estamos acostumados.
Na última década, um dos temas em grande pauta foi a quebra de tabus, seja no âmbito social, antropológico ou psíquico. Dessa forma, obras-primas da televisão contemporânea, como a antologia ‘American Horror Story’, foram criadas como forma de chocar o espectador com uma superexposição de múltiplos elementos, como o sexo, a violência, o sobrenatural e a crueldade. Entretanto, esta não foi a única investida de mentes sombrias e distorcidas a buscar nos confins do medo humano uma história original e que fizesse jus à constante busca pelo macabro: o canal SyFy, conhecido pelas produções de baixo orçamento, resolveu colaborar para a realização de uma série também antológica, intitulada ‘Channel Zero’ – a qual se tornou uma das pérolas perdidas dos últimos anos.
Baseado nas creepypastas que tornaram-se muito populares com a constante popularização da internet e das histórias de terror, a segunda temporada da série é uma livre e complexa adaptação do conto assinado por Brian Alan Russell. A iteração é intitulada como ‘The No-End House’ (‘A Casa sem Fim’, em tradução livre), e gira em torno de uma jovem garota que é desafiada a entrar num misterioso casarão junto a seus amigos, após descobrir que a atração é capaz de fazê-la mudar de perspectiva sobre o mundo.
A protagonista da temporada é Margot Sleator (Amy Forsyth), uma adolescente traumatizada pelo suicídio do pai, John (John Carroll Lynch), e que reclusou-se em sua casa junto à mãe, abstraindo-se da comunidade em que vivia. Uma de suas únicas companhias é a melhor amiga Jules (Aisha Dee), a qual tenta animá-la de todas as formas, até conseguir levá-la para uma house party, na qual descobre que há uma nova atração na cidade que está chamando a atenção de todos os jovens – e obviamente eles se sentem na obrigação de visitá-la, ainda que com um pouco de hesitação.
A idealização da Casa sem Fim segue um padrão similar aos inúmeros cenários de obras do gênero, mas com um diferencial: ao invés de ser construída com ornamentos tortuosos ou pincelada com cores desbotadas, a arquitetura parece ser modernizada, por assim dizer, engolfada em um tom azul-escuro que se alastra para todos os cômodos e que acompanha os personagens desde o episódio piloto até o season finale. A paleta de cores para este momento conversa com a crescente angústia que cada um deles sente, e que se torna inerente à personalidade de cada um; de acordo com vários relatos de participantes da atração, tudo o que acontece na casa tem o poder de mexer com seu psicológico, para o bem ou para o mal. Logo, é de esperar que o tom da série seja bem mais intimista que o normal – e é exatamente isso ao que somos apresentados.
O ceticismo costuma ser um elemento-chave para a definição dos arcos das personagens. Margot e Jules se mostram fascinadas pelo conteúdo da casa, bem como os outros colegas que as acompanham – Seth (Jeff Ward), J.D. (Seamus Patterson) e um recatado e misterioso Dylan (Sebastian Pigott). A princípio, todos creem piamente de que estão dentro de uma casa mal-assombrada com todas as outras, dentro da qual cada sala tem um grau de tensão próprio, visando levar as pessoas ao máximo de seu autocontrole – inclusive, essas sequências traçam um paralelo bem mais suave, mas perceptível com ‘Battle Royale’ e ‘Jogos Vorazes’, visto que a cada “desafio”, alguém é eliminado e deixa o grupo.
Entretanto, em se tratando de uma antologia de terror, a linearidade dos acontecimentos se mantém por pouquíssimo tempo. Depois de certo tempo – tanto para aqueles que já conhecem a história da creepypasta quanto para aqueles que estão se aventurando pela primeira vez neste universo -, nota-se que a casa tem como objetivo, ao menos em seus cômodos iniciais, preparar seus “convidados” para um festival de horrores. Através de elementos extremamente metafóricos, ela utiliza os maiores e mais profundos medos de cada um dos personagens para colocá-los em um patamar submisso e quase incontrolável de cessão aos desejos de uma força desconhecida e inominável. É isso o que acontece no episódio piloto, “That’s Not Real” – cujo título já entra em contradição com o que acontece.
As coisas ficam ainda mais perigosas quando o grupo percebe que a atração na verdade os atraiu como iscas para fazer parte de um universo dentro de um universo. Um jogo metalinguístico e mortal que os leva para uma realidade espelhada do que realmente conhecem – notada já de cara pelo retorno inesperado de John à vida de Margot, quando esta está crente de que voltou para seu lar, quando na verdade ainda estava presa em mais um dos desafios. No terceiro capítulo, “Beware the Cannibals”, os protagonistas se veem em um jogo de vida ou morte, dentro do qual estão suscetíveis aos prazeres e à irreal sensação de segurança dentro de um lugar criado para mantê-los em cativeiro.
Acontece que a casa é uma representação psíquica do subconsciente humano, o qual se alimenta de memórias e impede que essas lembranças sejam reavidas. Em outras palavras, a insurgência de pessoas próximas aos personagens – como a família de Seth ou o pai de Margot -, na verdade são artifícios idealizados por essa força-maior para drenar momentos-chave de um passado remoto e utilizá-los como fonte de vida e de permanência no mundo terrestre. Explanações em forma de texto parecem entrar num mundo metafísico complicado e quase indecifrável, mas isso só ocorre porque a série em si trata de um assunto complexo e essencialmente sensorial, valendo-se de momentos atmosféricos muito bem delineados em detrimento da verborragia.
‘The No-End House’ é uma temporada muito madura e poética. A construção de planos é bastante variável, optando por um enquadramento aberto e centralizado que mostre a imponência de um cenário imortal e indestrutível perante a pequenez humana e as falhas tentativas de vencer algo intangível e ao mesmo tempo perigoso. O tratamento recebido pela montagem é indelével e se relaciona diretamente para os sentimentos próprios de determinada sequência – a opção óbvia de planos mais fechados transpassa um intimismo subjetivo e inebriante para o público, o qual não consegue tirar os olhos da tela em busca de alguma resposta que faça sentido em meio a tanta impalpabilidade.
Cada um dos elementos artísticos é pensado com extrema cautela. A paleta de cores muda drasticamente do frio para o quente, optando por tons pastéis alaranjados para compor o “mundo espelhado”, tirado até mesmo das concepções artísticas e rudimentares de ‘Alice Através do Espelho’, transpondo-as para uma visão mais lapidada e mais coesa. O contraste entre essas duas ambiências serve até mesmo como uma representação imagética dos arcos coming-of-age, principalmente de Margot, que faz um grande sacrifício para proteger aqueles que ama, e de Jules, que abandona seus medos e seus traumas para resgatar a única pessoa que ainda a compreende dentro de uma bolha de julgamentos e pré-conceitos.
A segunda temporada de ‘Channel Zero’ é um dos motivos pelos quais o gênero de suspense e de terror ainda não morreu e está em constante releitura e repaginação. Apesar de alguns poucos deslizes, o brilho de sua originalidade é algo a ser levado muito em consideração – e não podemos deixar de dar um leve sorriso ao saber que mais histórias macabras serão adaptadas para um novo panteão sobrenatural.