quarta-feira , 20 novembro , 2024

Artigo | ‘O Nevoeiro’, adaptação de Stephen King, é uma poderosa análise sobre a barbárie humana

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Há algo de inexplicável em O Nevoeiro. Algo tão misterioso e poderoso quanto a própria inexorabilidade do tempo – um misto de terror, angústia e animosidade que por vezes dá lugar a um sentimento constante de perigo e incompletude. Talvez essa seja a obra mais analítica de Stephen King no tocante à sociedade, pincelando uma dissertação sobre como o medo do desconhecido está associado ao primitivismo humano e como o comportamento das pessoas muda em situações caóticas – e isso partindo de uma série de adaptações cinematográficas essencialmente do gênero terror (IT: A Coisa’, Carrie – A Estranha’, O Iluminado’ e outros).

A história gira em torno de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos que é assolada por uma misteriosa névoa. A priori, essa premissa parece um tanto quanto boba e simplória, mas essa sensação logo dá lugar ao mais puro sentimento de angústia e de terror à medida em que os segredos que o nevoeiro traz são revelados para o pequeno grupo de moradores que se refugiam em um “seguro” e claustrofóbico supermercado.



Entretanto, vamos voltar alguns minutos antes para analisar como a sucessão de estranhos eventos contribuiu para uma pré-determinação de ações de seus protagonistas. O prólogo, filmado em um plano sequência muito bem construído, nos introduz a um dos personagens principais, David (Thomas Jane), e sua personalidade soturna e criativa – representada pelos inúmeros quadros que preenchem seu estúdio. Momentos depois, ele, sua esposa e seu filho estão pegando alguns suprimentos para irem ao porão, como forma de se protegerem de uma grande tempestade que, eventualmente, traz uma série de pequenas destruições à sua morada e à própria cidadela.

Essa introdução é importante para dar nome às cartas do jogo. Diz-se que após o caos, vem a calmaria – mas em O Nevoeiro, essa pacificidade dá lugar a um aviso de fim dos tempos que gradativamente cega tudo e todos à sua volta. O rastro de destruição deixado pelos fortes ventos e pela chuva é constante até o momento em que os personagens chegam ao cenário principal, não antes de verem diversos comboios militares cruzarem os limites do município com pressa e trazendo ares de que alguma coisa estava errada. Assim como eles, estamos em uma constância interminável que nos faz indagar sobre o que podemos esperar com o decorrer do filme, e como uma rotina quase inquebrável seria impactada de uma forma tão terrível e tão inesperada.

“Há algo no nevoeiro!”, grita um velho senhor, correndo para longe da fumaça que se espalha pela cidade e entrando com força no refúgio, momentos depois de um alarme amedrontador soar por todos os cantos. Frank Darabont entra como um agente imprescindível para a arquitetura de uma atmosfera puramente tensa, seja com seus enquadramentos mais fechados ou até mesmo com uma montagem que nos recorda uma estética documentária e ao mesmo tempo transgressora. Afinal, a ideia aqui é afastar-se do olhar generalizado e fornecer uma perspectiva mais intimista, impedindo que o espectador enxergue tudo com clareza – do mesmo modo que os personagens se encontram frente à cegueira branca.

Não demora muito até percebermos que o evento traz ainda mais perigos para aquele lugar. Acontece que a névoa traz consigo criaturas extradimensionais e extremamente perigosas, sem qualquer comparação com aquelas que conhecemos. A narrativa logo pula de um drama para uma compilação de ficção científica que felizmente não ofusca sua estética metafórica, mas sim adiciona algumas camadas a mais de complexidade para a mensagem que se quer transmitir. Não se sabe ao certo o porquê de tudo aquilo estar acontecendo – e este nem é o foco: a ideia aqui é experimentalista e laboratorial, seguindo os passos de uma tese antropológica para analisar o que acontece quando um grupo de indivíduos se vê numa situação de vida ou morte.

Logo, não é nenhuma surpresa que diversos arquétipos existam dentro de um mesmo lugar. Darabont também assina um incrível roteiro que capta toda a essência de King, seja em suas críticas sociais ou na sua capacidade de transformar o terror em um gênero necessário para buscar mais um significado para a multiplicidade das psiques humanas. Assim que David e seu filho Billy (Nathan Gamble) chegam ao supermercado, adentram em um novo cosmos social, dentro do qual conhecemos, por exemplo, Amanda (Laurie Holden), a representação materna que tem como principal missão proteger aqueles por quem se preocupa. Após entenderem os perigos que enfrentarão com a névoa, ela é a primeira a se dispor para cuidar das crianças, representando como a própria Maria Madalena do filme, afastando as almas inocentes daquela ambiência das personalidades distorcidas dos adultos que as cercam.

Não se pode dizer que a névoa é a antagonista da história. A situação na qual os personagens estão inseridos é tão caótica e tão mortal que os leva a um retorno não premeditado para o primitivismo, realizando uma intertextualidade com outras obras literárias, como O Senhor das Moscas’ e sua análise sobre como o medo e a falta de perspectiva futura podem levar o ser humano a um estado de involução. E, desprovido de qualquer visão realmente crítica, os refugiados e possíveis únicos sobreviventes se apoiam na primeira emergência de uma figura mais lógica e messiânica – encarnada pela ferrenha fanática religiosa Sra. Carmody (Marcia Gay Harden), a qual transforma um simples abrigo em uma ditadura evangélica que tem como regras aquelas que ela mesma estipula – incluindo sacrifícios para as “criaturas do inferno” em troca da salvação eterna.

Não é nenhuma surpresa que o indivíduo perdido em meio à destruição e à eminência do apocalipse se apoie no misticismo para se dar ao luxo do mais ínfimo parecer da salvação – e este pode não ser a primeira obra a tratar do tema, mas é certamente uma das que o faz com destreza e minúcia. A névoa vem como um catalisador social e psicológico para que aqueles fadados à ruína reflitam sobre quem realmente são, e àqueles em constante evolução possam encontrar uma saída em meio à cegueira – seja ela figurativa ou literal.

De certa maneira, O Nevoeiro é uma obra-prima, principalmente por realmente entender o significado por trás da loucura literária idealizada por Stephen King e por trazer à tela uma crítica que todos precisavam observar com os próprios olhos para absorver. A construção narrativa é épica e consegue perpassar as diversas facetas das emoções humanas, oscilando de forma inenarrável entre a paz e o medo, o ódio e o amor – e a loucura e a sanidade.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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A história gira em torno de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos que é assolada por uma misteriosa névoa. A priori, essa premissa parece um tanto quanto boba e simplória, mas essa sensação logo dá lugar ao mais puro sentimento de angústia e de terror à medida em que os segredos que o nevoeiro traz são revelados para o pequeno grupo de moradores que se refugiam em um “seguro” e claustrofóbico supermercado.

Entretanto, vamos voltar alguns minutos antes para analisar como a sucessão de estranhos eventos contribuiu para uma pré-determinação de ações de seus protagonistas. O prólogo, filmado em um plano sequência muito bem construído, nos introduz a um dos personagens principais, David (Thomas Jane), e sua personalidade soturna e criativa – representada pelos inúmeros quadros que preenchem seu estúdio. Momentos depois, ele, sua esposa e seu filho estão pegando alguns suprimentos para irem ao porão, como forma de se protegerem de uma grande tempestade que, eventualmente, traz uma série de pequenas destruições à sua morada e à própria cidadela.

Essa introdução é importante para dar nome às cartas do jogo. Diz-se que após o caos, vem a calmaria – mas em O Nevoeiro, essa pacificidade dá lugar a um aviso de fim dos tempos que gradativamente cega tudo e todos à sua volta. O rastro de destruição deixado pelos fortes ventos e pela chuva é constante até o momento em que os personagens chegam ao cenário principal, não antes de verem diversos comboios militares cruzarem os limites do município com pressa e trazendo ares de que alguma coisa estava errada. Assim como eles, estamos em uma constância interminável que nos faz indagar sobre o que podemos esperar com o decorrer do filme, e como uma rotina quase inquebrável seria impactada de uma forma tão terrível e tão inesperada.

“Há algo no nevoeiro!”, grita um velho senhor, correndo para longe da fumaça que se espalha pela cidade e entrando com força no refúgio, momentos depois de um alarme amedrontador soar por todos os cantos. Frank Darabont entra como um agente imprescindível para a arquitetura de uma atmosfera puramente tensa, seja com seus enquadramentos mais fechados ou até mesmo com uma montagem que nos recorda uma estética documentária e ao mesmo tempo transgressora. Afinal, a ideia aqui é afastar-se do olhar generalizado e fornecer uma perspectiva mais intimista, impedindo que o espectador enxergue tudo com clareza – do mesmo modo que os personagens se encontram frente à cegueira branca.

Não demora muito até percebermos que o evento traz ainda mais perigos para aquele lugar. Acontece que a névoa traz consigo criaturas extradimensionais e extremamente perigosas, sem qualquer comparação com aquelas que conhecemos. A narrativa logo pula de um drama para uma compilação de ficção científica que felizmente não ofusca sua estética metafórica, mas sim adiciona algumas camadas a mais de complexidade para a mensagem que se quer transmitir. Não se sabe ao certo o porquê de tudo aquilo estar acontecendo – e este nem é o foco: a ideia aqui é experimentalista e laboratorial, seguindo os passos de uma tese antropológica para analisar o que acontece quando um grupo de indivíduos se vê numa situação de vida ou morte.

Logo, não é nenhuma surpresa que diversos arquétipos existam dentro de um mesmo lugar. Darabont também assina um incrível roteiro que capta toda a essência de King, seja em suas críticas sociais ou na sua capacidade de transformar o terror em um gênero necessário para buscar mais um significado para a multiplicidade das psiques humanas. Assim que David e seu filho Billy (Nathan Gamble) chegam ao supermercado, adentram em um novo cosmos social, dentro do qual conhecemos, por exemplo, Amanda (Laurie Holden), a representação materna que tem como principal missão proteger aqueles por quem se preocupa. Após entenderem os perigos que enfrentarão com a névoa, ela é a primeira a se dispor para cuidar das crianças, representando como a própria Maria Madalena do filme, afastando as almas inocentes daquela ambiência das personalidades distorcidas dos adultos que as cercam.

Não se pode dizer que a névoa é a antagonista da história. A situação na qual os personagens estão inseridos é tão caótica e tão mortal que os leva a um retorno não premeditado para o primitivismo, realizando uma intertextualidade com outras obras literárias, como O Senhor das Moscas’ e sua análise sobre como o medo e a falta de perspectiva futura podem levar o ser humano a um estado de involução. E, desprovido de qualquer visão realmente crítica, os refugiados e possíveis únicos sobreviventes se apoiam na primeira emergência de uma figura mais lógica e messiânica – encarnada pela ferrenha fanática religiosa Sra. Carmody (Marcia Gay Harden), a qual transforma um simples abrigo em uma ditadura evangélica que tem como regras aquelas que ela mesma estipula – incluindo sacrifícios para as “criaturas do inferno” em troca da salvação eterna.

Não é nenhuma surpresa que o indivíduo perdido em meio à destruição e à eminência do apocalipse se apoie no misticismo para se dar ao luxo do mais ínfimo parecer da salvação – e este pode não ser a primeira obra a tratar do tema, mas é certamente uma das que o faz com destreza e minúcia. A névoa vem como um catalisador social e psicológico para que aqueles fadados à ruína reflitam sobre quem realmente são, e àqueles em constante evolução possam encontrar uma saída em meio à cegueira – seja ela figurativa ou literal.

De certa maneira, O Nevoeiro é uma obra-prima, principalmente por realmente entender o significado por trás da loucura literária idealizada por Stephen King e por trazer à tela uma crítica que todos precisavam observar com os próprios olhos para absorver. A construção narrativa é épica e consegue perpassar as diversas facetas das emoções humanas, oscilando de forma inenarrável entre a paz e o medo, o ódio e o amor – e a loucura e a sanidade.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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