quinta-feira , 21 novembro , 2024

Artigo | Os 10 anos de ‘Valente’, o arriscado conto de fadas da Pixar

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A mitologia escocesa sempre foi alvo de grande exploração pelas inúmeras vertentes artísticas, seja no teatro, na literatura, no cinema ou na televisão. Sua incrível e insuperável gama céltica de personagens e criaturas lendárias espalhou-se através dos séculos para os quatro cantos do planeta e influenciou subculturas e até mesmo narrativas urbanas que conseguiram conduzir de forma extraordinária a atemporalidade primordial do povo anglo-saxônico.

Conhecendo o alto-escalão criativo dos estúdios Pixar, e sua incrível paixão pela universalidade, era meio de se esperar que, após entregarem obras-primas como a franquia Toy Story’ ou uma épica e emocionante jornada do herói com Up – Altas Aventuras’, a equipe partisse para algo mais histórico, mantendo a magia inquestionável de produções audiovisuais atemporais enquanto procurava pela expansão de seu legado inquestionável.



O resultado foi um dos longas-metragens com intenções tão puras quanto a própria história das grandiloquentes narrativas do povo do qual puxa inspiração. Valente, um título que já indica o que poderemos encontrar nas florestas e castelos nórdicos de outrora, gira em torno de uma jovem garota que passa – ou tenta passar – por uma das transformações mais intrínsecas e mais irreversíveis de sua vida, ainda que os deslizes de sua produção por vezes se tornem gritantes e o afastem da tangência perfeccionista dos predecessores. Entretanto, a caracterização de cada um dos personagens, dos cenários e até mesmo da atmosfera sinestésica é algo a ser ovacionado pelo time – principalmente se levarmos em consideração a “lição de moral” buscada pelo filme.

AY, LASSIE

Valente começa com um breve prólogo. Diferentemente de outros filmes do estúdio, o prefácio narrativo-visual entra como uma base histórica tanto para o background das personagens e não de quem cada um é, visto que estamos tratando de humanos como protagonistas. Aqui, conhecemos a família regente das Terras Altas da Escócia, a qual é formada por Merida (Kelly Macdonald), Fergus (Billy Connolly) e Elinor (Emma Thompson). Os três representam a famosa trindade real a povoar os diversos clãs da própria história do Reino Unido, além de serem caracterizados como tais: enquanto o patriarca da família é robusto e atrapalhado, a matriarca se mostra como uma figura muito mais imponente para elevar-se ao status de rainha, além de ter pulso firme com a filha para transformá-la em um “espelho”.

Entretanto, nem tudo são flores para a família – afinal, em se tratando de misticismo, a mitologia céltica é uma das pioneiras em criar cenários assombrosos para seus personagens, e é óbvio que Valente não ficaria fora disso. Elinor e Merida acreditam piamente nas forças místicas que estão em constante observância dos meros mortais, e são bombardeadas pela ferrenha descrença do pai, cujo treinamento bélico o transformou em um visível e claro estereótipo do milenar guerreiro galês, preferindo-se manter-se à mercê do crível em vez da fé. Tudo segue uma ordem natural, até que um dos primeiros antagonistas do longa aparece, na gigantesca e amedrontadora forma de Mor’du, um urso negro com a força de dez homens e que há tempos aterroriza as terras onde vivem.

O último frame dessa sequência inicial é Fergus sendo atacado pelo inimigo, e o embate entre os dois começa segundos antes da entrada do título. O mais correto a se pensar seria que este personagem encontrou seu fim nos cinco minutos iniciais do filme, mas na verdade ele apenas perdeu a perna direita, como passamos a saber momentos depois. Agora, Merida é uma hábil adolescente versada nas artes do arco-e-flecha, além de puxar a inclinação de sua família para as lutas. Sua independência emerge na tela quando a vemos montando seu cavalo e saindo em disparada por entre a densa floresta que cerca sua moradia, atirando de forma certeira nos diversos alvos espalhados por aí. Um dos principais pontos a serem discutidos aqui é o modo como o roteiro assinado por Brenda Chapman preza pela conexão entre homem e natureza, trabalhando até mesmo a concepção visual nos diálogos e nos solilóquios proferidos pela protagonista.

A organicidade indissociável entre os elementos que vemos em tela é um dos ápices da animação: o trabalho com que até as árvores – todos as espécies que conseguimos encontrar – e os animais são delineados entra em contraste com a perfeição quase renascentista das construções humanas. Apesar das personalidades lineares e bem definíveis no início do filme, cada um possui traços únicos que os transformam em idealizações arquetípicas para cada uma das facetas humanas, seja na coragem, na rebeldia, no autocontrole ou na submissão.

Merida seguiu o passo do pai em relação à busca de sua identidade, vivendo sua vida sem se preocupar com as consequências de seus atos e tornando-se uma bolha de enclausuramento e proteção contra o mundo externo. Enquanto isso, Elinor constantemente a vigia, tentando transformá-la em uma cópia mais jovem de si mesma ao ensiná-la táticas de guerra, etiqueta, esgrima, leitura e tudo o que for possível, transmitindo-lhe o conhecimento que guarneceu durante anos e que finalmente agora pode passar para a próxima geração. E é aqui que a complexidade familiar se eleva a mais um nível por breves momentos ao discorrer sobre a diferença etária e mental entre mãe e filha.

E por que digo que essa análise um pouco mais profunda é breve? Bom, simplesmente pelo fato das disputas familiares entre dois membros da família se constituírem como um dos temas-base de diversos longas-metragens – a ponto de se tornar batido e passível de resgatar clichês do gênero. O interessante aqui, e outro ponto a ser aplaudido, é como a narrativa consegue transportar este tema tão contemporâneo e ainda visto em comédias românticas, por exemplo, para a primitiva e pitoresca “não-sociedade” ortodoxa escocesa da Idade Média, além de colocar elementos da cultura pop em algumas sequências dialogais engraçadíssimas.

As coisas ficam mais tensas quando Elinor anuncia em pleno jantar que a aliança entre os clãs das Terras Altas deve ser reafirmada com o casamento de Merida com um dos três primogênitos dos outros governantes, trazendo um misto de asco e descontentamento por parte desta. Afinal, a protagonista nunca se viu necessitada de firmar laços matrimoniais, prezando pela liberdade e por sua eminente ascendência à Rainha, mesmo que isso quebrasse as tradições da família. A fagulha se transforma num incêndio ideológico após Merida tornar-se uma das próprias pretendentes numa competição de arco-e-flecha, enfrentando o autoritarismo de sua mãe em detrimento de reafirmar independência. Após isso, as duas têm uma discussão “calorosa” que resulta numa brusca quebra da posição mãe e filha, colocando-as em patamares antagônicos.

BOA NOITE, MAMÃE

É comum em diversas narrativas adolescentes, e até mesmo na vida real, que o desvirtuamento do conceito mais tradicionalista de família encontre seu ápice em uma terceira parte dentro da jornada que normalmente é associada ao símbolo do falso do guardião ou da ajuda externa não premeditada, carregada com um simbolismo que atuará nas consequências dos atos seguintes do longa-metragem até que as peças principais encontrem a tão aguardada epifania. Em Valente, Merida encarna todas essas saídas formulaicas do classicismo literário com um toque místico ao sair cavalgando pelas florestas de seu reino até ser dramaticamente levada para um círculo de pedras.

O arquétipo deste guardião inesperado vem na figura da Bruxa, interpretada pela sempre bem-vinda presença de Julie Walters como mais um dos personagens mais carismáticos do cinema. Essa personagem é uma mistura híbrida de uma profissional da publicidade com uma soturna sabe-tudo que não deseja que seus segredos sejam escondidos. Sua caracterização cênica nos relembra da Rainha Má de Branca de Neve e os Sete Anões’ (1937), com o nariz pontudo, a postura arqueada e as verrugas no rosto; mas suas nuances construtivas resgatam pontuais inclinações para outros personagens cômicos, até mesmo Madame Mim (A Espada Era a Lei’, 1963). Entretanto, estamos focando em sua imprescindível importância para o desenrolar da história e do fechamento do primeiro ciclo.

A Bruxa, não tendo nome próprio por razões óbvias, é uma anciã, uma sábia, que conhece de longe o desespero humano e sabe como aproveitar das fraquezas daqueles à sua volta para benefício individualista. Entretanto, em dissonância de outros “pseudo-vilões” do cinema, ela não deseja utilizar de seus poderes para ajudar Merida, mas sim que ela vá embora e resolva seus problemas. Apesar disso, a garota consegue convencê-la a ajudar, criando um feitiço que mudará o destino dela e de sua mãe. Mas o que ela não esperava é que essa mudança seria levada ao pé da letra.

Talvez seja aqui que o potencial brilho de Valente encontre obstáculos e não saiba como ultrapassá-los, preferindo uma saída segura ao invés de uma original e que honre completamente o legado dos estúdios. A narrativa principal segue uma ordem cronológica que consiste em apenas dois dias, mas que se transforma em um período muito maior por sua previsibilidade, incluindo as descobertas feitas pela filha e pela mãe – com algumas breves e exceções. Assim que retorna para casa, Merida entrega o feitiço para Elinor (na forma de um bolinho de frutas), o qual a transforma em… Um urso. É irônico que a literalidade de seu pedido tenha alcançado um aglomerado de futuros problemas, incluindo a sede insaciável de seu pai em eliminar seu arqui-inimigo, que é um urso, e sua devoção à esposa, que tragicamente se transformou em um deles.

O desbotamento de tais viradas vem com a constante “homenagem” a uma das obras mais adoráveis e atemporais – no tocante premissivo – do panteão Disney/Pixar: Sexta-Feira Muito Louca’. É engraçado citar este longa-metragem nem um pouco presunçoso e que consegue arquitetar um microcosmos satisfatoriamente consistente para as duas personagens principais, que são releituras predecessoras de Merida e Elinor. Ganhando um remake nos anos 2000, o filme supracitado conta a história de como um relacionamento à beira da destruição sofre um baque inesperado quando mãe e filha trocam de corpo após desejarem que uma entendesse o lado da outra. Claro, as protagonistas de Valente não passam por esse problema, mas nenhuma esperava ser levada ao pé da letra.

Após saírem em mais uma jornada para reencontrarem a Bruxa, as duas percebem que cabe a elas remendarem os laços de seu relacionamento destrutivo e conturbado para que a maldição seja quebrada e a ordem seja restaurada. É fácil pensar nas soluções encontradas pela animação, incluindo beats de constante endossamento maternal e hierárquico, mas com pinceladas de uma modernidade que definitivamente não veríamos em outro filme de época.

A imperdoabilidade do filme vem ao final do terceiro ato. Elinor e Merida entram em constante conflito por serem essencialmente contraditórias: enquanto esta é uma rebelde mimada que não aceita que outros lhe deleguem tarefas ou ordens, ainda que permaneça fiel aos seus princípios e queira encontrar seu lugar dentro de uma família complicada, aquela busca suas inspirações em prováveis gerações passadas para fincar a marca feminina dentro de uma sociedade comandada por homens. A ideia era que as viradas epifânicas tornassem-na mais maduras, mas a verdade é que nenhuma das duas muda; a permanência em confortáveis casulos encontra um momento de alívio antes de reemergirem e trazerem um desfecho inaceitável.

CANTE A CANÇÃO

Valente é o primeiro conto de fadas dos estúdios Pixar e, por isso, sofre várias alterações em relação aos longas-metragens anteriores. Os deslizes são claros e tornam a obra inconstante e nos deixam irritados e ao mesmo tempo com um gostinho de quero mais, principalmente no tocante ao soberbo misticismo da mitologia escocesa, que realmente poderia ser mais explorada pelo roteiro.

Entretanto, devemos levar em consideração que esta narrativa é muito mais sombria e mais “madura” no sentido ao desenvolvimento heroico, ainda que não tenha alcançado sua potencialidade total, de filmes do gênero, colocando-o em uma equiparação quase paradoxal a animações clássicas. Uma jogada arriscada e que, apesar de não ter funcionado muito bem, até chega a emocionar – só não do modo como deveria.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Conhecendo o alto-escalão criativo dos estúdios Pixar, e sua incrível paixão pela universalidade, era meio de se esperar que, após entregarem obras-primas como a franquia Toy Story’ ou uma épica e emocionante jornada do herói com Up – Altas Aventuras’, a equipe partisse para algo mais histórico, mantendo a magia inquestionável de produções audiovisuais atemporais enquanto procurava pela expansão de seu legado inquestionável.

O resultado foi um dos longas-metragens com intenções tão puras quanto a própria história das grandiloquentes narrativas do povo do qual puxa inspiração. Valente, um título que já indica o que poderemos encontrar nas florestas e castelos nórdicos de outrora, gira em torno de uma jovem garota que passa – ou tenta passar – por uma das transformações mais intrínsecas e mais irreversíveis de sua vida, ainda que os deslizes de sua produção por vezes se tornem gritantes e o afastem da tangência perfeccionista dos predecessores. Entretanto, a caracterização de cada um dos personagens, dos cenários e até mesmo da atmosfera sinestésica é algo a ser ovacionado pelo time – principalmente se levarmos em consideração a “lição de moral” buscada pelo filme.

AY, LASSIE

Valente começa com um breve prólogo. Diferentemente de outros filmes do estúdio, o prefácio narrativo-visual entra como uma base histórica tanto para o background das personagens e não de quem cada um é, visto que estamos tratando de humanos como protagonistas. Aqui, conhecemos a família regente das Terras Altas da Escócia, a qual é formada por Merida (Kelly Macdonald), Fergus (Billy Connolly) e Elinor (Emma Thompson). Os três representam a famosa trindade real a povoar os diversos clãs da própria história do Reino Unido, além de serem caracterizados como tais: enquanto o patriarca da família é robusto e atrapalhado, a matriarca se mostra como uma figura muito mais imponente para elevar-se ao status de rainha, além de ter pulso firme com a filha para transformá-la em um “espelho”.

Entretanto, nem tudo são flores para a família – afinal, em se tratando de misticismo, a mitologia céltica é uma das pioneiras em criar cenários assombrosos para seus personagens, e é óbvio que Valente não ficaria fora disso. Elinor e Merida acreditam piamente nas forças místicas que estão em constante observância dos meros mortais, e são bombardeadas pela ferrenha descrença do pai, cujo treinamento bélico o transformou em um visível e claro estereótipo do milenar guerreiro galês, preferindo-se manter-se à mercê do crível em vez da fé. Tudo segue uma ordem natural, até que um dos primeiros antagonistas do longa aparece, na gigantesca e amedrontadora forma de Mor’du, um urso negro com a força de dez homens e que há tempos aterroriza as terras onde vivem.

O último frame dessa sequência inicial é Fergus sendo atacado pelo inimigo, e o embate entre os dois começa segundos antes da entrada do título. O mais correto a se pensar seria que este personagem encontrou seu fim nos cinco minutos iniciais do filme, mas na verdade ele apenas perdeu a perna direita, como passamos a saber momentos depois. Agora, Merida é uma hábil adolescente versada nas artes do arco-e-flecha, além de puxar a inclinação de sua família para as lutas. Sua independência emerge na tela quando a vemos montando seu cavalo e saindo em disparada por entre a densa floresta que cerca sua moradia, atirando de forma certeira nos diversos alvos espalhados por aí. Um dos principais pontos a serem discutidos aqui é o modo como o roteiro assinado por Brenda Chapman preza pela conexão entre homem e natureza, trabalhando até mesmo a concepção visual nos diálogos e nos solilóquios proferidos pela protagonista.

A organicidade indissociável entre os elementos que vemos em tela é um dos ápices da animação: o trabalho com que até as árvores – todos as espécies que conseguimos encontrar – e os animais são delineados entra em contraste com a perfeição quase renascentista das construções humanas. Apesar das personalidades lineares e bem definíveis no início do filme, cada um possui traços únicos que os transformam em idealizações arquetípicas para cada uma das facetas humanas, seja na coragem, na rebeldia, no autocontrole ou na submissão.

Merida seguiu o passo do pai em relação à busca de sua identidade, vivendo sua vida sem se preocupar com as consequências de seus atos e tornando-se uma bolha de enclausuramento e proteção contra o mundo externo. Enquanto isso, Elinor constantemente a vigia, tentando transformá-la em uma cópia mais jovem de si mesma ao ensiná-la táticas de guerra, etiqueta, esgrima, leitura e tudo o que for possível, transmitindo-lhe o conhecimento que guarneceu durante anos e que finalmente agora pode passar para a próxima geração. E é aqui que a complexidade familiar se eleva a mais um nível por breves momentos ao discorrer sobre a diferença etária e mental entre mãe e filha.

E por que digo que essa análise um pouco mais profunda é breve? Bom, simplesmente pelo fato das disputas familiares entre dois membros da família se constituírem como um dos temas-base de diversos longas-metragens – a ponto de se tornar batido e passível de resgatar clichês do gênero. O interessante aqui, e outro ponto a ser aplaudido, é como a narrativa consegue transportar este tema tão contemporâneo e ainda visto em comédias românticas, por exemplo, para a primitiva e pitoresca “não-sociedade” ortodoxa escocesa da Idade Média, além de colocar elementos da cultura pop em algumas sequências dialogais engraçadíssimas.

As coisas ficam mais tensas quando Elinor anuncia em pleno jantar que a aliança entre os clãs das Terras Altas deve ser reafirmada com o casamento de Merida com um dos três primogênitos dos outros governantes, trazendo um misto de asco e descontentamento por parte desta. Afinal, a protagonista nunca se viu necessitada de firmar laços matrimoniais, prezando pela liberdade e por sua eminente ascendência à Rainha, mesmo que isso quebrasse as tradições da família. A fagulha se transforma num incêndio ideológico após Merida tornar-se uma das próprias pretendentes numa competição de arco-e-flecha, enfrentando o autoritarismo de sua mãe em detrimento de reafirmar independência. Após isso, as duas têm uma discussão “calorosa” que resulta numa brusca quebra da posição mãe e filha, colocando-as em patamares antagônicos.

BOA NOITE, MAMÃE

É comum em diversas narrativas adolescentes, e até mesmo na vida real, que o desvirtuamento do conceito mais tradicionalista de família encontre seu ápice em uma terceira parte dentro da jornada que normalmente é associada ao símbolo do falso do guardião ou da ajuda externa não premeditada, carregada com um simbolismo que atuará nas consequências dos atos seguintes do longa-metragem até que as peças principais encontrem a tão aguardada epifania. Em Valente, Merida encarna todas essas saídas formulaicas do classicismo literário com um toque místico ao sair cavalgando pelas florestas de seu reino até ser dramaticamente levada para um círculo de pedras.

O arquétipo deste guardião inesperado vem na figura da Bruxa, interpretada pela sempre bem-vinda presença de Julie Walters como mais um dos personagens mais carismáticos do cinema. Essa personagem é uma mistura híbrida de uma profissional da publicidade com uma soturna sabe-tudo que não deseja que seus segredos sejam escondidos. Sua caracterização cênica nos relembra da Rainha Má de Branca de Neve e os Sete Anões’ (1937), com o nariz pontudo, a postura arqueada e as verrugas no rosto; mas suas nuances construtivas resgatam pontuais inclinações para outros personagens cômicos, até mesmo Madame Mim (A Espada Era a Lei’, 1963). Entretanto, estamos focando em sua imprescindível importância para o desenrolar da história e do fechamento do primeiro ciclo.

A Bruxa, não tendo nome próprio por razões óbvias, é uma anciã, uma sábia, que conhece de longe o desespero humano e sabe como aproveitar das fraquezas daqueles à sua volta para benefício individualista. Entretanto, em dissonância de outros “pseudo-vilões” do cinema, ela não deseja utilizar de seus poderes para ajudar Merida, mas sim que ela vá embora e resolva seus problemas. Apesar disso, a garota consegue convencê-la a ajudar, criando um feitiço que mudará o destino dela e de sua mãe. Mas o que ela não esperava é que essa mudança seria levada ao pé da letra.

Talvez seja aqui que o potencial brilho de Valente encontre obstáculos e não saiba como ultrapassá-los, preferindo uma saída segura ao invés de uma original e que honre completamente o legado dos estúdios. A narrativa principal segue uma ordem cronológica que consiste em apenas dois dias, mas que se transforma em um período muito maior por sua previsibilidade, incluindo as descobertas feitas pela filha e pela mãe – com algumas breves e exceções. Assim que retorna para casa, Merida entrega o feitiço para Elinor (na forma de um bolinho de frutas), o qual a transforma em… Um urso. É irônico que a literalidade de seu pedido tenha alcançado um aglomerado de futuros problemas, incluindo a sede insaciável de seu pai em eliminar seu arqui-inimigo, que é um urso, e sua devoção à esposa, que tragicamente se transformou em um deles.

O desbotamento de tais viradas vem com a constante “homenagem” a uma das obras mais adoráveis e atemporais – no tocante premissivo – do panteão Disney/Pixar: Sexta-Feira Muito Louca’. É engraçado citar este longa-metragem nem um pouco presunçoso e que consegue arquitetar um microcosmos satisfatoriamente consistente para as duas personagens principais, que são releituras predecessoras de Merida e Elinor. Ganhando um remake nos anos 2000, o filme supracitado conta a história de como um relacionamento à beira da destruição sofre um baque inesperado quando mãe e filha trocam de corpo após desejarem que uma entendesse o lado da outra. Claro, as protagonistas de Valente não passam por esse problema, mas nenhuma esperava ser levada ao pé da letra.

Após saírem em mais uma jornada para reencontrarem a Bruxa, as duas percebem que cabe a elas remendarem os laços de seu relacionamento destrutivo e conturbado para que a maldição seja quebrada e a ordem seja restaurada. É fácil pensar nas soluções encontradas pela animação, incluindo beats de constante endossamento maternal e hierárquico, mas com pinceladas de uma modernidade que definitivamente não veríamos em outro filme de época.

A imperdoabilidade do filme vem ao final do terceiro ato. Elinor e Merida entram em constante conflito por serem essencialmente contraditórias: enquanto esta é uma rebelde mimada que não aceita que outros lhe deleguem tarefas ou ordens, ainda que permaneça fiel aos seus princípios e queira encontrar seu lugar dentro de uma família complicada, aquela busca suas inspirações em prováveis gerações passadas para fincar a marca feminina dentro de uma sociedade comandada por homens. A ideia era que as viradas epifânicas tornassem-na mais maduras, mas a verdade é que nenhuma das duas muda; a permanência em confortáveis casulos encontra um momento de alívio antes de reemergirem e trazerem um desfecho inaceitável.

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Valente é o primeiro conto de fadas dos estúdios Pixar e, por isso, sofre várias alterações em relação aos longas-metragens anteriores. Os deslizes são claros e tornam a obra inconstante e nos deixam irritados e ao mesmo tempo com um gostinho de quero mais, principalmente no tocante ao soberbo misticismo da mitologia escocesa, que realmente poderia ser mais explorada pelo roteiro.

Entretanto, devemos levar em consideração que esta narrativa é muito mais sombria e mais “madura” no sentido ao desenvolvimento heroico, ainda que não tenha alcançado sua potencialidade total, de filmes do gênero, colocando-o em uma equiparação quase paradoxal a animações clássicas. Uma jogada arriscada e que, apesar de não ter funcionado muito bem, até chega a emocionar – só não do modo como deveria.

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