A arte do storytelling é para poucos. Esta é uma habilidade que pode ser aperfeiçoada com o tempo, mas são escassas as pessoas que percebem o dom de criar uma trama original, envolvente e que, por mais que traga elementos sobrenaturais e fantásticos, converse em diversos âmbitos com seu público-alvo. Desde os primórdios da sociedade, percebeu-se uma necessidade de ir além de uma cruel realidade que moldava o ser humano e impedia que sua imaginação aflorasse, sujeitando-se a uma constante e inquebrável rotina e mantendo-os sob total controle. Não é à toa que o trabalho do artista sempre foi muito criticado por renegar a ordem estabelecida e buscar sempre uma nova perspectiva para a vida, fosse ela mais trágica ou mais cômica, mas em uma missão interminável de encontrar a catarse.
E se há um diretor que consegue nos transportar para um outro mundo, um cosmos diferente daqueles a que estamos acostumados, essa honra vai para Tim Burton. Suas primeiras investidas, por mais bizarras que fossem, começaram a compor a sua personalidade fílmica não ortodoxa, demonstrando sua afeição para as estéticas vanguardistas do começo do século passado e seu apreço pelo desvirtuamento, transformando o feio no belo e vice-versa. Apesar dos claros deslizes, que tiveram seu ápice com o extremamente irreverente ‘Marte Ataca!’, Burton sempre teve uma coisa clara: como trabalhar o suficiente para que suas histórias encontrassem outros níveis de aceitação e absorção pelo interlocutor? E é a partir desse pensamento que surge ‘Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas’, uma narrativa que louva e enaltece o próprio storytelling.
A trama gira em torno dos últimos momentos de vida de Edward Bloom (Albert Finney), um homem que sempre prezou pelo melhor para sua grande família, ainda que trouxesse consigo uma gama interminável de histórias mirabolantes cuja narração se estendeu até em seu leito de morte. Como forma de se livrar de toda a frustração que carregou durante todos esses anos, seu filho Will (Billy Crudup) exige saber de sua história verdadeira, para conseguir finalmente traçar uma linha entre a ilusão e a realidade e destituir a amálgama imposta pelo pai. A princípio, pode-se até compreender essa narrativa como um spin-off de ‘A Vida É Bela’, só que às avessas: enquanto que na obra de Roberto Benigni o protagonista valia-se de brincadeiras pueris para poupar seu filho dos horrores da II Guerra e o público estava ciente de que esse faz-de-conta funcionava como máscara, aqui essa reafirmação do fantástico nos faz duvidar ao mesmo tempo em que desponta um desejo de que tudo aquilo realmente tenha acontecido.
Ed reconta sua história de forma extremamente envolvente e que mescla-se com o tempo atual, incluindo sua luta contra uma fraqueza que se espalha de modo gradativo por seu corpo e indica que ele está prestes a partir. Como última aventura, ele quer “fazer as pazes” com o filho, e inicia essa complicada trajetória com seu nascimento – nem um pouco convencional e dentro de uma sequência muito engraçada. De certo modo, podemos analisar ‘Peixe Grande’ como uma extensão da própria vida de Burton, visto que ela foi marcada por um mergulho em um mundo totalmente seu, no qual criava personagens complementares à sua personalidade “estranha” como modo de lhe fazer companhia. E essa epifania por parte do cético Will vem a acontecer no final do terceiro ato, quando os arcos de redenção e aceitação encontram uma trégua.
Essa instigante jornada do herói coloca o protagonista, interpretado nos flashbacks por Ewan McGregor, o encara como o típico cavaleiro medieval das narrativas medievais românticas: ele encontra o seu Oráculo, que no caso emerge na horrenda figura de uma bruxa (Helena Bonham Carter) que o mostra, quando criança, de que forma ele encontrará sua ruína. Ed então percebe que, conhecendo seu imutável destino, que pode realizar coisas míticas, transformando-se em um símbolo icônico para a pequena cidade em que vive e, desse modo, mergulhando em diversas aventuras incluindo um jogo de basebol, o encontro com um gigante e um emprego no circo. Entretanto, apesar de sua resiliência e de sua coragem, o personagem não está preparado para enfrentar aquilo que não consegue controlar ou que ainda será traçado – principalmente problemas relacionados ao coração.
Quando contratado pelo circo, comandado pela cômica e envolvente figura de Amos Calloway (Danny DeVito), ele tem em sua mente a ideia de finalmente encontrar a garota dos seus sonhos e que, como previsto, será sua esposa para todo o sempre – e que realmente acontece, dado à química e à constante reafirmação de sua esposa Sandra (Jessica Lange) acerca das histórias que conta no tempo atual. As coisas movem-se seguindo um estilo lento, mas imperceptível, dado à montagem que preza pelo foreshadowing e pelas quebras de expectativa em um jogo cênico entre zoom in e zoom out. Amos diz que, a cada mês, ele fornecerá uma informação sobre a garota para que, ao final de três anos, tenha o necessário para encontrá-la – e isso eventualmente acontece, em um momento que revela seu futuro casamento com outro pretendente.
Burton encontra-se em uma difícil posição como diretor: ao mesmo tempo em que deseja manter sua característica sobrenatural e marcada pela presença dos personagens, tal narrativa dramática preza por um amadurecimento estético, até melhor pensado que em ‘Ed Wood’. Então, esqueça os planos holandeses e os ângulos distorcidos: o cineasta, em colaboração com Philippe Rousselot, arquiteta um escopo ambíguo cuja principal característica é a utilização da supersaturação da luz e de um filtro enevoado que confira uma aproximação onírica às passagens apresentadas, mantendo o público e até mesmo os ouvintes dentro da história dentro de uma inebriante atenção.
‘Peixe Grande’ é uma ode à criatividade e mais uma vez reafirma o potencial de Tim Burton como um nome visionário, principalmente ao trazer uma adaptação cinematográfica digna para um romance emocionante ao mesmo tempo em que fornece sua própria subjetividade às telonas.