domingo , 24 novembro , 2024

Artigo | Os 23 anos de ‘Toy Story 2’, uma das maiores e melhores sequências da história do cinema

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O império Pixar talvez tenha como maior nome de seu legado a franquia Toy Story. Em toda a história das animações, talvez não haja uma narrativa mais completa que esta, a qual marca o início de um longo reinado para os estúdios supracitados, o qual é relembrado até os dias de hoje. E enquanto a primeira iteração deu nome às cartas do jogo e dissertou através da perspectiva de brinquedos infantis temas como inveja, solidão e vingança – além de trazer às telonas personagens adoráveis e memoráveis para a cultura pop contemporânea – Toy Story 2′, sua continuação homônima, resolve mergulhar ainda mais fundo no universo que criou e nas sutis brechas que deixou em aberto no seu predecessor.

Primeiramente, precisamos ter em mente que o time criativo da Era de Ouro Pixar sempre tem cartas na manga. Por mais que os arcos narrativos encontrem início, meio e fim, é inexoravelmente possível encontrar algo que puxe uma jornada nova. O desafio reside na originalidade dessa nova arquitrama, a qual deve ser satisfatória o suficiente para que os sentimentos dos filmes anteriores sejam resgatados ao mesmo tempo em que novos são descobertos e fortificados ato após ato.



Toy Story 2 é simplesmente fantástico, grosso modo. Desde a concepção 3D de seu cenário animado até a composição sonora, tudo converge para um panorama aguardado e respeitado até mesmo dentro de seus limites. E por mais que sua irreverência às narrativas de gênero e a própria fantasia que move os protagonistas estar ali, elas não saturam nenhum momento do filme, mantendo-nos vidrados durante cada uma das sequências de forma inenarrável e catártica.

A JORNADA DO HERÓI

Joseph Campbell provou para a história da literatura – e posteriormente para as vertentes cinematográficas e seriadas – que qualquer narrativa tem como ponto de partida um incidente incitante e um chamado para a aventura, por mais dramática ou cotidiana que seja a trama a ser desenvolvida. Se analisarmos com cuidado, até mesmo filmes clássicos como Cidadão Kane’ ou Bonequinha de Luxo’ carregam consigo semelhanças com as “fórmulas” propostas por Campbell.

A nova iteração da franquia animada em questão talvez seja o maior exemplo sobre como diversos mundos diferenciados têm sim a possibilidade de se encontrarem sem caírem nos equívocos da supersaturação. Já na primeira sequência – um curto prólogo que nos guia através da computação gráfica para o entendimento de futuros eventos -, vemos Buzz Lightyear (Tim Allen) chegando a um planeta desconhecido para encontrar a fortaleza maligna de seu arqui-inimigo, Zurg (Andrew Stanton), e passando por diversos obstáculos até estranhamente encontrar sua ruína. Só depois é que entendemos que as cenas predispostas são na verdade parte de um jogo de videogame controlado por um frustrado Rex (Wallace Shawn), que não consegue vencer por ter os braços muito curtos.

E é aqui que a magia começa. Os momentos em que um virtual Buzz passa por diversas provações até ficar frente a frente com seu desafio final premeditam o modo como cada uma das viradas entrará no roteiro. Os personagens dentro de Toy Story, além de trazerem personalidades diferentes, seguem padrões de escolhas e fraquezas a serem encaradas que, de forma arquetípica, são basicamente diferentes análises de uma mesma vertente. Woody (Tom Hanks) e Buzz são versões animadas de Indiana Jones e Luke Skywalker, se traçarmos um paralelo à risca, mas que fazem parte de um mesmo universo e, querendo ou não, buscam por seu lugar dentro daquele mundo.

Woody é a representação clássica do espírito aventureiro que não suporta injustiças, além de carregar uma certa quantidade de egocentrismo quando “se olha no espelho”. Em meados do primeiro ato, seu braço de pano sofre um leve rompimento e ele é guardado numa prateleira empoeirada, longe de seus amigos e, consequentemente, adornado com um sentimento atmosférico e angustiante de abandono. O contraste entre as duas cenas é gritante: enquanto diversas cores complementares estão justapostas, aglutinadas e misturadas no quarto do jovem Andy, o “plano superior” é perscrutado por um tom monocromático de azul-bebê, indicando seu anacronismo narrativo. O caubói está alheio ao que acontece lá embaixo e não consegue deixar de se encolher, esperando por alguma coisa acontecer.

É certo afirmar que Woody aceita seu destino de se tornar obsoleto, ainda que seja um dos brinquedos favoritos de seu dono. Entretanto, sua personalidade heroica reemerge quando um de seus colegas mais antigos, Wheezy (Joe Ranft), é levado para uma venda de garagem, ele se sente determinado a resgatá-lo e a manter a integridade física de sua “família”. Mas, como bem sabemos, arcos de personagens bem delineados são aqueles que passam por altos e baixos e que impedem que as escolhas dos heróis sejam unicamente certeiras. De forma quase trágica – nos lembrando árias gregas que narravam as incríveis aventuras de rostos como Odisseu ou Perseu -, ele se sacrifica para resgatar o pinguim, sendo praticamente sequestrado por um colecionador chamado Al (Wayne Knight).

As cartas estão dadas; o cenário já foi elaborado. Agora cabe ao time de brinquedos de Andy decidir como proceder. Afinal, se estivéssemos analisando um formulaico filme de aventura, a sucessão de eventos teria seus simulacros prontos, sendo adaptador para o universo do filme. Mas aqui estamos falando de objetos a priori inanimados que de algum modo ganharam vida para nos contar sua história, através de uma perspectiva única. E desde o primeiro filme, lançado em 1995, temos a clara consciência de que os protagonistas são movidos pelo instinto de família e de união – todos funcionam como engrenagens de uma maquinaria complexa que definitivamente não pode funcionar sem a completude de suas peças.

Buzz emerge como a principal figura de apoio para Woody, fortalecendo estritas relações que encontraram obstáculos na iteração anterior. Por meio de seus defeitos e de suas personalidades completamente distintas – um mais conterrâneo às vertentes interioranas do entretenimento e outro com sua essência fincada nas estéticas futuristas -, os dois melhores amigos se complementam. Portanto, não é nenhuma surpresa quando o astronauta arquiteta um plano de resgate ao lado de seus companheiros para resgatá-lo de uma situação inesperada e aparentemente mortal. Temos, pois, duas linhas narrativas que se inclinam para as proposições da jornada do herói, mas com identidades cênicas bem distintas entre si.

Ao lado de Rex, Sr. Cabeça-de-Batata (Don Rickles), Slinky (Jim Varney) e Porquinho (John Ratzenberger), Buzz descobre que Al trabalha numa loja de brinquedos vestido de galinha gigante para fazer propaganda de suas promoções. Entretanto, ele secretamente tem um apreço obsessivo pelo mundo vaqueiro de Woody e Seus Amigos, mantendo um altar incomparável em seu apartamento. Tais informações são descobertas ao final do primeiro ato, e justifica o roubo de Woody por um dos principais antagonistas da trama.

“TEM UMA COBRA NA MINHA BOTA”

Dentro da jornada do herói, temos os inúmeros obstáculos a serem enfrentados pelos protagonistas, a fim de que sua trajetória seja perscrutada por picos e vales, formando parábolas verdadeiras e críveis por parte do grupo. Toy Story 2′ tem pouco mais de noventa minutos de duração, e a montagem paralela e rítmica é discorrida de forma tão exímia que parecemos estar olhando para a tela por apenas alguns minutos – e, mesmo assim, tudo é completo. Não há brechas, não há pontas soltas, só há o constante sentimento de “quero mais” – e isso só ocorre pelo roteiro assinado por Stanton.

Buzz e seus companheiros permanecem em uma cronologia narrativa mais aprazível, por assim dizer, entrando em conflitos de grande magnitude – como atravessar uma rua, abrir as portas automáticas de uma loja e escalar um arranha-céu. O brilhantismo dessas sequências parte do pressuposto de que estamos assistindo ao filme através da perspectiva de brinquedos: logo, levando em conta seus tamanhos, tudo é incrivelmente assustador. A opção por plongées e contra-plongées bem pontuados é um dos principais fatores de construção atmosférica de tensão e ameaça. Na maior parte das vezes, o desvelamento das situações de perigo opta pela transição sequencial de um enquadramento em close para o geral, sempre mostrando a pequenez de determinado personagem perante a iminência a ser encarada. As coisas podem até ficar repetitivas, mas elas funcionam.

Enquanto isso, Woody mergulha em um círculo mais intimista de autodescobrimento. Longe de seu lar e jogado em um mundo completamente novo, o caubói se vê preso nas paredes acinzentadas de um suntuoso apartamento, adornado com caixas de papelão, grades e uma atormentadora sensação de aprisionamento domiciliar. Dentro dos estudos da psique humana, há uma vertente que estuda como as pessoas se comportam em ambiência adversas e como sua adaptabilidade vem como o principal fator de sobrevivência: dentro do universo Toy Story, temos algo parecido, mas que logo é refutado pela transparência de fatos.

Momentos depois de chegar à casa de Al, Woody é recepcionado pela personalidade acolhedora de Bala no Alvo, um dos personagens mais sorridentes e agradáveis do império Pixar. O cavalo é a representação simbólica do “melhor amigo do homem”, subvertendo as metáforas às quais estamos acostumados – e sua presença premedita a entrada de outras criações na franquia: a de Jesse (Joan Cusack) e de Pete, o Mineiro (Kelsey Grammer).

Aqui faço um parêntese para analisar o significado e a semiótica desenvolvida com a entradas destas três novas figuras: permanecendo no âmbito infanto-juvenil, sabe-se que Jesse, Pete e Bala no Alvo fazem parte de um passado desconhecido de Woody, cujos tempos de glória remontam ao surgimento da própria televisão e da popularização dos programas com marionetes. Entretanto, o próprio encontro não previsto entre todos eles discorre sobre o que pode ser entendido como o maior obstáculo a ser transposto pelo protagonista – o enfrentamento de sua verdadeira personalidade.

Enquanto na casa de Andy, ele emergiu como um brinquedo sempre adorado e respeitado por todos, firmando-se como o “xerife da cidade”, ainda que só conhecesse o seu papel naquele microcosmos. Entretanto, desde o primeiro filme, esses cenários se expandiram e cultivaram dentro de Woody uma sutil perseverança por se encontrar e impedir que sua imagem fosse esquecida por aqueles que o amam – incluindo a gama de personagens-brinquedos que habitam o quarto do garoto. Tudo entra em choque quando ele encontra aquela que sempre deveria ter sido sua família: um mundo arquitetado com celeiros, cânions, paisagens desérticas e aventuras mirabolantes. É claro ver que ele jamais sonhara com aquilo – ou se alguma vez sonhara, nunca imaginou ser tão tangível.

E agora, o nosso protagonista se vê num dilema: retornar para sua conjuntura confortável ao lado de criaturas que não fazem parte de sua essência cultural, mas que sempre estiveram ao seu lado e se constituíram como o mais próximo de esfera familiar que ele conhece; ou enobrecer seu lado altruísta ao ajudar seus novos amigos a finalmente encontrarem um lugar no mundo e alcançaram a tão merecida paz. Afinal, Jesse foi abandonada por sua antiga dona numa caixa empoeirada, e talvez nunca tenha superado completamente seu trauma. Pete, conforme descobrimos na passagem do segundo ato para o terceiro, cansou de seu invólucro e sua estabilidade coagida nas prateleiras das lojas de brinquedo. E Bala no Alvo é apenas um animal de estimação que permanecerá fiel àquele que demonstrar um mínimo de carinho e atenção.

Não podemos culpá-los por tentar, a todo custo, alcançar um sonho aparentemente impossível. Woody passa boa parte do filme tentando fugir do apartamento, mas assim que digere sua real missão para com os outros, procura levá-los para a casa de seu antigo dono, prometendo a tão instigante ideia de pertencimento. Porém, as coisas não se resolvem de uma forma rápida ou simples, mas são elevadas a um nível de confronto ideológico entre o caubói e Pete, por exemplo: ele está tão próximo de alcançar o seu objetivo que não quer acreditar na facilidade que Woody lhe está apresentando, mantendo todos dentro de uma linha imutável e segura.

A vida é uma constante batalha para qualquer pessoa, e os estúdios Pixar transcendem esses problemas para narrativas metafóricas e inesperadas. A partir de Toy Story, essa gama antropomórfica se espalhou para as criaturas mais desumanizadas que podemos pensar; todavia, não podemos nos esquecer de que elas habitam um mundo essencialmente humano. Não digo que o time criativo por trás de cada uma das animações escolhe ao acaso pessoas para também comporem as tramas de seus longas-metragens, visto que cada um deles tem suma importância seja para endossar a história ou para torná-la mais complexa.

Nesta continuação, Al é o obstáculo ultrarrealista a ser enfrentado pelos personagens. Eles não chegam a literalmente confrontá-lo como fizeram com Sid na iteração predecessora, mas devem encontrar um meio de varrer para debaixo do tapete o que ele representa para o futuro: o abandono da inocência. O personagem encarnado por Knight é um colecionador; logo, não procura ter os brinquedos para si, e sim para satisfazer as suas necessidades, deixando-os enclausurados em caixas de vidro como “obras de arte”. Lasseter e Stanton procuram trazer as consequências do modo produtivo e capitalista de pensar dos adultos para um ambiente pueril: o dinheiro importa mais que a inocência, e a ascensão para um estado social “respeitoso” parte através do abandono de sua identidade original.

VENHA A NÓS O VOSSO REINO

A mimésis é um termo crítico e filosófico que abarca uma variedade de significados, incluindo principalmente a imitação como forma de homenagem e a apresentação do eu através de uma nova perspectiva. O vocábulo milenar surgiu na Grécia Antiga, mas foi usurpado, remodelado e subvertido no período pós-clássico do Cinema, quando a gama de filmes e de histórias começou a se valer de produções audiovisuais anteriores (que também já se baseavam em obras da literatura para desenvolver uma narrativa imagética). E obviamente Toy Story não perderia a chance de fazer menções honrosas para longas-metragens, mostrando sim que um universo animado pode também ser a convergência de diversos outros microcosmos sem ficar sobrecarregado.

Até mesmo o prólogo da segunda aventura dos brinquedos favoritos de todo o mundo tem sua carga emocional e nostálgica: durante a apresentação dos letreiros, o filme se utiliza da música Also Sprach Zarathustra para firmar as relações semióticas e dialógicas com 2001: Uma Odisseia no Espaço’, uma das obras-primas de Stanley Kubrick. Ainda que não de forma autoexplicativa, utilizar os mesmos elementos sonoros de uma narrativa espacial para o arco de Buzz é uma jogada muito interessante – e ela não se restringe apenas a este momento: durante a sequência do elevador, em meados do terceiro ato, Zurg aparece para derrotar um segundo Buzz Lightyear, que por breves momentos tomou a identidade daquele que conhecemos. E na “batalha final”, percebemos a similaridade dos dois personagens com Darth Vader e Luke Skywalker, respectivamente (protagonistas da franquia Star Wars’).

A mistura de universos distintos segue a caracterização dos diferentes personagens. Buzz puxa elementos das obras de ficção científica e futurista, por exemplo, enquanto Woody resgata vertentes próprias de filmes de aventura – então espere sim ver grandes referências para Indiana Jones’ e os diversos westerns de Clint Eastwood. E o mais incrível é que essa intertextualidade também se estende para os outros personagens, drenando a energia criativa para indicar que todos estão no mesmo barco e permanecem atados por um objetivo em comum.

E não pense que os personagens secundários foram esquecidos. Rex, Porquinho, Sr. Cabeça de Batata e até mesmo uma cômica Barbie (dublada originalmente por Jodi Benson) têm seus arcos estruturados sobre filmes um tanto quanto não ortodoxos. Durante a sequência na loja de brinquedos, estes brinquedos estão realizando um tour pelos múltiplos corredores até que enfrentam uma avalanche de bolinhas pula-pula (uma referência talvez não tão clara para o terror Gremlins’); mais para a frente, Rex começa a perseguir o carro, tentando alcançá-los – e a construção do enquadramento faz menção direta ao primeiro filme da franquia Jurassic Park’, mais precisamente para o momento em que os protagonistas são perseguidos por um Tiranossauro Rex.

SUCESSO EMINENTE

Toy Story 2’ é um daqueles raros filmes sequenciais que se mostram superiores em diversos aspectos em relação a seu predecessor. A animação traz uma gama de bagagem cultural, antropológica, psíquica e simbólica que a transforma em uma das grandes pérolas do final do século, além de endossar os estúdios Pixar como uma das companhias mais promissoras da atualidade.

Através da junção de vertentes criativas e uma identidade nova, ainda que faça alusão a grandes clássicos do cinema, como analisado acima, o longa tem a capacidade de nos fazer pensar sobre passado, presente e futuro e sobre a iminência do esquecimento de nossa própria infância à medida em que nos desfazemos dos mementos que povoaram nossa imaginação quando mais novos.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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O império Pixar talvez tenha como maior nome de seu legado a franquia Toy Story. Em toda a história das animações, talvez não haja uma narrativa mais completa que esta, a qual marca o início de um longo reinado para os estúdios supracitados, o qual é relembrado até os dias de hoje. E enquanto a primeira iteração deu nome às cartas do jogo e dissertou através da perspectiva de brinquedos infantis temas como inveja, solidão e vingança – além de trazer às telonas personagens adoráveis e memoráveis para a cultura pop contemporânea – Toy Story 2′, sua continuação homônima, resolve mergulhar ainda mais fundo no universo que criou e nas sutis brechas que deixou em aberto no seu predecessor.

Primeiramente, precisamos ter em mente que o time criativo da Era de Ouro Pixar sempre tem cartas na manga. Por mais que os arcos narrativos encontrem início, meio e fim, é inexoravelmente possível encontrar algo que puxe uma jornada nova. O desafio reside na originalidade dessa nova arquitrama, a qual deve ser satisfatória o suficiente para que os sentimentos dos filmes anteriores sejam resgatados ao mesmo tempo em que novos são descobertos e fortificados ato após ato.

Toy Story 2 é simplesmente fantástico, grosso modo. Desde a concepção 3D de seu cenário animado até a composição sonora, tudo converge para um panorama aguardado e respeitado até mesmo dentro de seus limites. E por mais que sua irreverência às narrativas de gênero e a própria fantasia que move os protagonistas estar ali, elas não saturam nenhum momento do filme, mantendo-nos vidrados durante cada uma das sequências de forma inenarrável e catártica.

A JORNADA DO HERÓI

Joseph Campbell provou para a história da literatura – e posteriormente para as vertentes cinematográficas e seriadas – que qualquer narrativa tem como ponto de partida um incidente incitante e um chamado para a aventura, por mais dramática ou cotidiana que seja a trama a ser desenvolvida. Se analisarmos com cuidado, até mesmo filmes clássicos como Cidadão Kane’ ou Bonequinha de Luxo’ carregam consigo semelhanças com as “fórmulas” propostas por Campbell.

A nova iteração da franquia animada em questão talvez seja o maior exemplo sobre como diversos mundos diferenciados têm sim a possibilidade de se encontrarem sem caírem nos equívocos da supersaturação. Já na primeira sequência – um curto prólogo que nos guia através da computação gráfica para o entendimento de futuros eventos -, vemos Buzz Lightyear (Tim Allen) chegando a um planeta desconhecido para encontrar a fortaleza maligna de seu arqui-inimigo, Zurg (Andrew Stanton), e passando por diversos obstáculos até estranhamente encontrar sua ruína. Só depois é que entendemos que as cenas predispostas são na verdade parte de um jogo de videogame controlado por um frustrado Rex (Wallace Shawn), que não consegue vencer por ter os braços muito curtos.

E é aqui que a magia começa. Os momentos em que um virtual Buzz passa por diversas provações até ficar frente a frente com seu desafio final premeditam o modo como cada uma das viradas entrará no roteiro. Os personagens dentro de Toy Story, além de trazerem personalidades diferentes, seguem padrões de escolhas e fraquezas a serem encaradas que, de forma arquetípica, são basicamente diferentes análises de uma mesma vertente. Woody (Tom Hanks) e Buzz são versões animadas de Indiana Jones e Luke Skywalker, se traçarmos um paralelo à risca, mas que fazem parte de um mesmo universo e, querendo ou não, buscam por seu lugar dentro daquele mundo.

Woody é a representação clássica do espírito aventureiro que não suporta injustiças, além de carregar uma certa quantidade de egocentrismo quando “se olha no espelho”. Em meados do primeiro ato, seu braço de pano sofre um leve rompimento e ele é guardado numa prateleira empoeirada, longe de seus amigos e, consequentemente, adornado com um sentimento atmosférico e angustiante de abandono. O contraste entre as duas cenas é gritante: enquanto diversas cores complementares estão justapostas, aglutinadas e misturadas no quarto do jovem Andy, o “plano superior” é perscrutado por um tom monocromático de azul-bebê, indicando seu anacronismo narrativo. O caubói está alheio ao que acontece lá embaixo e não consegue deixar de se encolher, esperando por alguma coisa acontecer.

É certo afirmar que Woody aceita seu destino de se tornar obsoleto, ainda que seja um dos brinquedos favoritos de seu dono. Entretanto, sua personalidade heroica reemerge quando um de seus colegas mais antigos, Wheezy (Joe Ranft), é levado para uma venda de garagem, ele se sente determinado a resgatá-lo e a manter a integridade física de sua “família”. Mas, como bem sabemos, arcos de personagens bem delineados são aqueles que passam por altos e baixos e que impedem que as escolhas dos heróis sejam unicamente certeiras. De forma quase trágica – nos lembrando árias gregas que narravam as incríveis aventuras de rostos como Odisseu ou Perseu -, ele se sacrifica para resgatar o pinguim, sendo praticamente sequestrado por um colecionador chamado Al (Wayne Knight).

As cartas estão dadas; o cenário já foi elaborado. Agora cabe ao time de brinquedos de Andy decidir como proceder. Afinal, se estivéssemos analisando um formulaico filme de aventura, a sucessão de eventos teria seus simulacros prontos, sendo adaptador para o universo do filme. Mas aqui estamos falando de objetos a priori inanimados que de algum modo ganharam vida para nos contar sua história, através de uma perspectiva única. E desde o primeiro filme, lançado em 1995, temos a clara consciência de que os protagonistas são movidos pelo instinto de família e de união – todos funcionam como engrenagens de uma maquinaria complexa que definitivamente não pode funcionar sem a completude de suas peças.

Buzz emerge como a principal figura de apoio para Woody, fortalecendo estritas relações que encontraram obstáculos na iteração anterior. Por meio de seus defeitos e de suas personalidades completamente distintas – um mais conterrâneo às vertentes interioranas do entretenimento e outro com sua essência fincada nas estéticas futuristas -, os dois melhores amigos se complementam. Portanto, não é nenhuma surpresa quando o astronauta arquiteta um plano de resgate ao lado de seus companheiros para resgatá-lo de uma situação inesperada e aparentemente mortal. Temos, pois, duas linhas narrativas que se inclinam para as proposições da jornada do herói, mas com identidades cênicas bem distintas entre si.

Ao lado de Rex, Sr. Cabeça-de-Batata (Don Rickles), Slinky (Jim Varney) e Porquinho (John Ratzenberger), Buzz descobre que Al trabalha numa loja de brinquedos vestido de galinha gigante para fazer propaganda de suas promoções. Entretanto, ele secretamente tem um apreço obsessivo pelo mundo vaqueiro de Woody e Seus Amigos, mantendo um altar incomparável em seu apartamento. Tais informações são descobertas ao final do primeiro ato, e justifica o roubo de Woody por um dos principais antagonistas da trama.

“TEM UMA COBRA NA MINHA BOTA”

Dentro da jornada do herói, temos os inúmeros obstáculos a serem enfrentados pelos protagonistas, a fim de que sua trajetória seja perscrutada por picos e vales, formando parábolas verdadeiras e críveis por parte do grupo. Toy Story 2′ tem pouco mais de noventa minutos de duração, e a montagem paralela e rítmica é discorrida de forma tão exímia que parecemos estar olhando para a tela por apenas alguns minutos – e, mesmo assim, tudo é completo. Não há brechas, não há pontas soltas, só há o constante sentimento de “quero mais” – e isso só ocorre pelo roteiro assinado por Stanton.

Buzz e seus companheiros permanecem em uma cronologia narrativa mais aprazível, por assim dizer, entrando em conflitos de grande magnitude – como atravessar uma rua, abrir as portas automáticas de uma loja e escalar um arranha-céu. O brilhantismo dessas sequências parte do pressuposto de que estamos assistindo ao filme através da perspectiva de brinquedos: logo, levando em conta seus tamanhos, tudo é incrivelmente assustador. A opção por plongées e contra-plongées bem pontuados é um dos principais fatores de construção atmosférica de tensão e ameaça. Na maior parte das vezes, o desvelamento das situações de perigo opta pela transição sequencial de um enquadramento em close para o geral, sempre mostrando a pequenez de determinado personagem perante a iminência a ser encarada. As coisas podem até ficar repetitivas, mas elas funcionam.

Enquanto isso, Woody mergulha em um círculo mais intimista de autodescobrimento. Longe de seu lar e jogado em um mundo completamente novo, o caubói se vê preso nas paredes acinzentadas de um suntuoso apartamento, adornado com caixas de papelão, grades e uma atormentadora sensação de aprisionamento domiciliar. Dentro dos estudos da psique humana, há uma vertente que estuda como as pessoas se comportam em ambiência adversas e como sua adaptabilidade vem como o principal fator de sobrevivência: dentro do universo Toy Story, temos algo parecido, mas que logo é refutado pela transparência de fatos.

Momentos depois de chegar à casa de Al, Woody é recepcionado pela personalidade acolhedora de Bala no Alvo, um dos personagens mais sorridentes e agradáveis do império Pixar. O cavalo é a representação simbólica do “melhor amigo do homem”, subvertendo as metáforas às quais estamos acostumados – e sua presença premedita a entrada de outras criações na franquia: a de Jesse (Joan Cusack) e de Pete, o Mineiro (Kelsey Grammer).

Aqui faço um parêntese para analisar o significado e a semiótica desenvolvida com a entradas destas três novas figuras: permanecendo no âmbito infanto-juvenil, sabe-se que Jesse, Pete e Bala no Alvo fazem parte de um passado desconhecido de Woody, cujos tempos de glória remontam ao surgimento da própria televisão e da popularização dos programas com marionetes. Entretanto, o próprio encontro não previsto entre todos eles discorre sobre o que pode ser entendido como o maior obstáculo a ser transposto pelo protagonista – o enfrentamento de sua verdadeira personalidade.

Enquanto na casa de Andy, ele emergiu como um brinquedo sempre adorado e respeitado por todos, firmando-se como o “xerife da cidade”, ainda que só conhecesse o seu papel naquele microcosmos. Entretanto, desde o primeiro filme, esses cenários se expandiram e cultivaram dentro de Woody uma sutil perseverança por se encontrar e impedir que sua imagem fosse esquecida por aqueles que o amam – incluindo a gama de personagens-brinquedos que habitam o quarto do garoto. Tudo entra em choque quando ele encontra aquela que sempre deveria ter sido sua família: um mundo arquitetado com celeiros, cânions, paisagens desérticas e aventuras mirabolantes. É claro ver que ele jamais sonhara com aquilo – ou se alguma vez sonhara, nunca imaginou ser tão tangível.

E agora, o nosso protagonista se vê num dilema: retornar para sua conjuntura confortável ao lado de criaturas que não fazem parte de sua essência cultural, mas que sempre estiveram ao seu lado e se constituíram como o mais próximo de esfera familiar que ele conhece; ou enobrecer seu lado altruísta ao ajudar seus novos amigos a finalmente encontrarem um lugar no mundo e alcançaram a tão merecida paz. Afinal, Jesse foi abandonada por sua antiga dona numa caixa empoeirada, e talvez nunca tenha superado completamente seu trauma. Pete, conforme descobrimos na passagem do segundo ato para o terceiro, cansou de seu invólucro e sua estabilidade coagida nas prateleiras das lojas de brinquedo. E Bala no Alvo é apenas um animal de estimação que permanecerá fiel àquele que demonstrar um mínimo de carinho e atenção.

Não podemos culpá-los por tentar, a todo custo, alcançar um sonho aparentemente impossível. Woody passa boa parte do filme tentando fugir do apartamento, mas assim que digere sua real missão para com os outros, procura levá-los para a casa de seu antigo dono, prometendo a tão instigante ideia de pertencimento. Porém, as coisas não se resolvem de uma forma rápida ou simples, mas são elevadas a um nível de confronto ideológico entre o caubói e Pete, por exemplo: ele está tão próximo de alcançar o seu objetivo que não quer acreditar na facilidade que Woody lhe está apresentando, mantendo todos dentro de uma linha imutável e segura.

A vida é uma constante batalha para qualquer pessoa, e os estúdios Pixar transcendem esses problemas para narrativas metafóricas e inesperadas. A partir de Toy Story, essa gama antropomórfica se espalhou para as criaturas mais desumanizadas que podemos pensar; todavia, não podemos nos esquecer de que elas habitam um mundo essencialmente humano. Não digo que o time criativo por trás de cada uma das animações escolhe ao acaso pessoas para também comporem as tramas de seus longas-metragens, visto que cada um deles tem suma importância seja para endossar a história ou para torná-la mais complexa.

Nesta continuação, Al é o obstáculo ultrarrealista a ser enfrentado pelos personagens. Eles não chegam a literalmente confrontá-lo como fizeram com Sid na iteração predecessora, mas devem encontrar um meio de varrer para debaixo do tapete o que ele representa para o futuro: o abandono da inocência. O personagem encarnado por Knight é um colecionador; logo, não procura ter os brinquedos para si, e sim para satisfazer as suas necessidades, deixando-os enclausurados em caixas de vidro como “obras de arte”. Lasseter e Stanton procuram trazer as consequências do modo produtivo e capitalista de pensar dos adultos para um ambiente pueril: o dinheiro importa mais que a inocência, e a ascensão para um estado social “respeitoso” parte através do abandono de sua identidade original.

VENHA A NÓS O VOSSO REINO

A mimésis é um termo crítico e filosófico que abarca uma variedade de significados, incluindo principalmente a imitação como forma de homenagem e a apresentação do eu através de uma nova perspectiva. O vocábulo milenar surgiu na Grécia Antiga, mas foi usurpado, remodelado e subvertido no período pós-clássico do Cinema, quando a gama de filmes e de histórias começou a se valer de produções audiovisuais anteriores (que também já se baseavam em obras da literatura para desenvolver uma narrativa imagética). E obviamente Toy Story não perderia a chance de fazer menções honrosas para longas-metragens, mostrando sim que um universo animado pode também ser a convergência de diversos outros microcosmos sem ficar sobrecarregado.

Até mesmo o prólogo da segunda aventura dos brinquedos favoritos de todo o mundo tem sua carga emocional e nostálgica: durante a apresentação dos letreiros, o filme se utiliza da música Also Sprach Zarathustra para firmar as relações semióticas e dialógicas com 2001: Uma Odisseia no Espaço’, uma das obras-primas de Stanley Kubrick. Ainda que não de forma autoexplicativa, utilizar os mesmos elementos sonoros de uma narrativa espacial para o arco de Buzz é uma jogada muito interessante – e ela não se restringe apenas a este momento: durante a sequência do elevador, em meados do terceiro ato, Zurg aparece para derrotar um segundo Buzz Lightyear, que por breves momentos tomou a identidade daquele que conhecemos. E na “batalha final”, percebemos a similaridade dos dois personagens com Darth Vader e Luke Skywalker, respectivamente (protagonistas da franquia Star Wars’).

A mistura de universos distintos segue a caracterização dos diferentes personagens. Buzz puxa elementos das obras de ficção científica e futurista, por exemplo, enquanto Woody resgata vertentes próprias de filmes de aventura – então espere sim ver grandes referências para Indiana Jones’ e os diversos westerns de Clint Eastwood. E o mais incrível é que essa intertextualidade também se estende para os outros personagens, drenando a energia criativa para indicar que todos estão no mesmo barco e permanecem atados por um objetivo em comum.

E não pense que os personagens secundários foram esquecidos. Rex, Porquinho, Sr. Cabeça de Batata e até mesmo uma cômica Barbie (dublada originalmente por Jodi Benson) têm seus arcos estruturados sobre filmes um tanto quanto não ortodoxos. Durante a sequência na loja de brinquedos, estes brinquedos estão realizando um tour pelos múltiplos corredores até que enfrentam uma avalanche de bolinhas pula-pula (uma referência talvez não tão clara para o terror Gremlins’); mais para a frente, Rex começa a perseguir o carro, tentando alcançá-los – e a construção do enquadramento faz menção direta ao primeiro filme da franquia Jurassic Park’, mais precisamente para o momento em que os protagonistas são perseguidos por um Tiranossauro Rex.

SUCESSO EMINENTE

Toy Story 2’ é um daqueles raros filmes sequenciais que se mostram superiores em diversos aspectos em relação a seu predecessor. A animação traz uma gama de bagagem cultural, antropológica, psíquica e simbólica que a transforma em uma das grandes pérolas do final do século, além de endossar os estúdios Pixar como uma das companhias mais promissoras da atualidade.

Através da junção de vertentes criativas e uma identidade nova, ainda que faça alusão a grandes clássicos do cinema, como analisado acima, o longa tem a capacidade de nos fazer pensar sobre passado, presente e futuro e sobre a iminência do esquecimento de nossa própria infância à medida em que nos desfazemos dos mementos que povoaram nossa imaginação quando mais novos.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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