Há um consenso entre os apreciadores da sétima arte sobre ‘Toy Story’: um dos significados mais palpáveis de perfeição cinematográfica.
A animação, lançada em 1995, foi o capítulo inicial de um dos maiores impérios do gênero, a Pixar Studios (agora subsidiária da Walt Disney Studios), e trouxe inúmeras inovações para o cenário do entretenimento – em virtude de seu status como a primeira animação computadorizada, que influenciou inclusive pesquisadores da área tecnológica para o âmbito das inteligências artificiais, abrindo espaço para replicações que estendem suas ramificações até os dias de hoje. E, para além desses avanços imprescindíveis, o projeto mergulha em questões existencialistas e humanistas através de uma profunda narrativa que daria início a uma franquia multimidática que inclui três sequências (e uma quarta a caminho) e inúmeras produções derivadas.

Conquistando três indicações aos prêmios da Academia (incluindo uma histórica nomeação à categoria de Melhor Roteiro Original) e um Oscar honorário, o longa foi selecionado para preservação pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, reafirmando sua importância e seu legado no cenário do entretenimento, e posa como uma das obras-primas do cinema contemporâneo por incontáveis razões. E, através de breves 81 minutos, o diretor John Lasseter e um time de incríveis artistas unem forças para um tour-de-force que mistura diversos estilos, incluindo comédia, aventura e ação, em um mesmo cosmos.
Mas o que torna essa produção tão especial?
A princípio, temos um inesperado e original enredo que logo nos chama a atenção: na trama, acompanhamos Woody (Tom Hanks), um caubói de brinquedo que vive no quarto de seu amado dono, Andy, ao lado de vários amigos, como o Sr. Cabeça de Batata (Don Rickles), Slinky (Jim Varney), Rex (Wallace Shawn), Bo Peep (Annie Potts) e outros. Vivendo um dia após o outro cumprindo a missão que lhes é dada, de entreter e de fazer parte dos melhores momentos de uma criança, o cotidiano que conhecem passa por uma grande mudança com a chegada de um novo brinquedo – o patrulheiro espacial Buzz Lightyear (Tim Allen).

Sendo recebido com interesse imediato pelos outros e tornando-se o favorito de Andy, Woody se sente deixado de lado e começa a ser dominado por um forte sentimento de ciúmes que o faz enfrentar Buzz, tentando fazer de tudo para reconquistar a atenção da criança. Em uma noite, Woody acaba derrubando Buzz da janela do quarto e os outros brinquedos acham que ele deliberadamente tentou matá-lo – e o xerife é levado com Andy para um restaurante temático. Porém, Woody é seguido por Buzz, culminando em um combate entre os dois que os deixam para trás e à própria sorte, ao menos até serem levados para a casa do psicótico e perturbado Sid Phillips (Erik von Detten), vizinho de Andy.
Todo esse cosmos é de um extremo comprometimento artístico que, mesmo trinta anos depois de seu lançamento original nos cinemas, permanece surpreendente e aplaudível. Lasseter comanda uma mixórdia muito bem dosada de inúmeras referências à cultura pop sem se deixar levar pelo mero pastiche, e sim construindo uma identidade própria que se tornaria um arauto emblemático que atravessaria gerações – integrando-se às próprias homenagens que presta. E, acompanhando-o nessa jornada, temos as hábeis de Joss Whedon, Andrew Stanton, Joel Cohen e Alec Sokolow mergulhando de cabeça nas infinitas possibilidades da clássica jornada do herói, rearranjando os conhecidos tropos em investidas certeiras e que fornecem sentimentos e senciência a objetos inanimados.

De maneira similar, são notáveis as influências literárias e filosóficas que acompanham a jornada de Woody e Buzz: um dos aspectos que mais nos chama a atenção são as menções indiretas ao clássico espanhol ‘Dom Quixote’, de Miguel de Cervantes, para a construção da personalidade do patrulheiro espacial, que não consegue ver o mundo como ele é e, de maneira inconsciente, se vê preso em uma realidade inventada que é o único propósito de sua existência – colocando-o em uma crise de identidade em um dos momentos mais bem construídos do longa. Há, também, uma remodelação dos conceitos humanistas que discorrem sobre a autonomia e a responsabilidade individual, como proto-análises complexas que ganhariam maior profundidade com as subsequentes produções da Pixar.
O sucesso do projeto também se deve às belíssimas atuações do elenco de voz, que contam com o trabalho irretocável de Hanks e de Allen, brilhando em seus próprios arcos e desfrutando de uma química aplaudível que se mantém nos filmes subsequentes – e que os compele a reprisar os respectivos papéis no quinto capítulo dessa incrível franquia. E, enquanto a dupla guia essa espetacular epopeia, ela é acompanhada por atores coadjuvantes que trazem ainda mais camadas ao projeto.

Há três décadas, o cenário cinematográfico passava por uma profunda mudança com o lançamento de ‘Toy Story’: o capítulo inicial da Pixar não poderia ter vindo em melhor hora, e ajudou a reiterar o gênero animado como arte, denotando a necessidade de reconhecê-lo como um conduíte artístico de potencial inimaginável.
