Muito antes de John Travolta encarnar a icônica Edna Turnblad na releitura musical de uma das peças mais conhecidas da Broadway, John Waters já havia criado um escopo com os clássicos sprays de cabelo e as memoráveis vestimentas da complicada e complexa década de 1960 com sua criação ‘Hairspray – E Éramos Todos Jovens’. Apesar de seu escopo ter sido transformado em uma rendição essencialmente cômica e muito satisfatório, não podemos tirar o crédito de um dos diretores mais irreverentes ao nos apresentar a uma versão única de uma época que definitivamente não será esquecida – e que, assim como todas as suas obras anteriores, traz sempre uma sutil e ácida crítica social.
A narrativa gira em torno da aspirante à dançarina e estudante do ensino médio Tracy Turnblad (Ricki Lake), cuja grande beleza foge aos padrões aceitáveis pela retrógada comunidade de Baltimore. Ainda que seja gordinha, ela nunca se deixou abalar pelo que as pessoas falavam acerca de seu comportamento e alimentou seu sonho de aparecer no Corny Collins’ Show – o que poderíamos entender como um programa de auditório adolescente repudiado pela geração de pais. Essa constante adoração parte da premissa que todo o contexto do show funciona como um escape para a vida acadêmica dos jovens e todos os problemas que enfrentam dia após dia – e talvez a crítica de Waters para essa crescente sociedade do espetáculo insurja na figura da ingênua melhor amiga de Tracy, Penny Pingleton (Leslie Ann Powers), com sua caracterização beirando a tênue linha entre infância e puberdade.
Toda essa subjetividade reflexiva também é reafirmada pela inegável ambição da família responsável pela produção do programa, os Von Tussel. Velma (Debbie Harry) é a matriarca da família e permanece dia após dia fazendo com que sua filha Amber (Colleen ‘Vitamin C’ Fitzpatrick) treine exaustivamente os passos da dança principal do show – e não nenhuma surpresa que esse nepotismo permita que ela seja a grande estrela ao lado do queridinho das fãs, Link Larkin (Michael St. Gerard), com o qual forma o casal dos sonhos.
As coisas sofrem uma grande mudança quando Tracy, durante um simples concurso, demonstra suas habilidades na dança impressionando os mais céticos e causando certa inveja em uma impactada Amber, a qual não aceita perder devido ao gênio ambicioso e irreparável da mãe. Tudo fica ainda mais complicado quando a protagonista resolver participar das audições para participar do programa, desencadeando uma quebra no padrão televisivo – que é aceito pela maioria da sua equipe -, mas ainda constantemente bombardeada pela “antagonista”, que agora não possui mais o estrelato de antes.
Waters conduz através de um crescente ritmo uma jornada clássica através de valores e morais da sociedade dos anos 1960 – que não se distanciava muito do ano em que realizou este projeto. Apesar da imobilidade cênica que se alastra pelo primeiro ato, as futuras transições apenas aumentam o envolvimento do público com os personagens e com a trama principal, além de preparar terreno para narrativas secundárias que também encontram um espaço digno de nota. O diretor, também responsável pelo roteiro, aproveita o momento de quebra de paradigmas fornecido por Tracy para colocá-la como um jovem sex symbol para as garotas plus-size, que se sentem representadas na mídia – mas e quanto à comunidade negra que sofreu com uma dura repressão de identidade.
Corny Collins (Shawn Thompson), mesmo com duras tentativas de impedimento por parte da mascarada supremacia branca implantada pelos Von Tussel, conseguiu instaurar o Dia Negro, no qual seu programa é estrelado por convidados da cômica e envolvente Motormouth Maybelle (Ruth Brown), representante da “comunidade de cor” que mora no gueto e que emerge como uma das principais militantes para representatividade das minorias. Tracy também abraça essa causa e utiliza de seu protagonismo dentro das emissoras de TV para fornecer espaço para seus novos colegas e, eventualmente, suspender de forma definitiva a segregação que existe entre os brancos e os negros e tornando o show um dos primeiros a promover a diversidade.
Sem sombra de dúvida, uma das grandes figuras e retornar para seu último papel é a drag queen Divine no papel de Edna. Sua personalidade mais introspectiva e tímida a transforma em um arquétipo da mãe superprotetora que ama a filha e o marido mais que tudo em sua vida e que, apesar de não parecer, sente orgulho de cada conquista. Seu porte grandiloquente é proposital, principalmente se considerarmos a afeição de Waters por essa atriz e comediante e que infelizmente participou de seu último projeto com ‘Hairspray’ antes de falecer devido à cardiomegalia. Divine consegue se afastar de seus papéis anteriores na irreverência fílmica do cineasta, marcando uma divisão clara entre essa performance e, por exemplo, ‘Pink Flamingos’ (obra que a colocou nos holofotes da indústria).
Ainda que Waters tenha sua própria subjetividade cênica, trazendo elementos únicos e que se distanciam de seus colegas conterrâneos, seu charme infelizmente cede a algumas saídas construtivas, incluindo o jogo do campo-contracampo e a utilização exacerbada de planos-sequências alternados para indicar uma arquitetura fluida. Apesar dessas investidas formulaicas, a completude da narrativa funciona pelo roteiro que preza essencialmente por diálogos canastrões e cômicos ao mesmo tempo.
‘Hairspray – E Éramos Todos Jovens’ é uma obra extremamente acessível para qualquer público e que conversa em diversos âmbitos com diferentes idades, permanecendo com o estilo exacerbado dos cabelos volumosos e das roupas engomados para uma audiência mais jovem e alastrando-se de modo mais intrínseco para aqueles que ousarem prestar atenção nas escondidas críticas sociais fornecidas por Waters – que, como todos sabemos, sempre foi muito a favor da igualdade entre maiorias e minorias.