Baseado na conturbada vida de Arlindo Barreto, o eterno palhaço Bozo, ‘Bingo – O Rei das Manhãs’ é uma cinebiografia autoral sobre aquele que talvez seja uma das criações mais contraditórias e mais complexas de 2017. O longa tem como principal idealizador Daniel Rezende, responsável por incríveis trabalhos como ‘Cidade de Deus’, ‘O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias’ e ‘Tropa de Elite’ – e já conhecemos bastante de sua bagagem identitária para traças uma base sobre o que esperar para esta nova obra audiovisual.
O personagem-título é interpretado pelo carismático Vladimir Brichta, um ator conhecido por sua incrível sensualidade em cena e por sua atuação irreverente dentro de um cosmos já premeditado pelo roteiro e pela narrativa a ser contada. Em ‘Bingo’, ele dá vida a Augusto Mendes, um aspirante à artista que luta diariamente para sair de sua “zona de conforto”, a caixa pela qual era mais conhecido: os filmes da pornochanchada. Já aqui conseguimos identificar uma ambientação mais que certeira para o pano de fundo da narrativa principal – a decadência desse gênero com a entrada da década de 1980 e a crise econômica brasileira, traduzida visualmente por uma estética pontilhista e desbotada.
Augusto leva seu trabalho muito a sério e consegue separar muito bem o lado profissional do familiar, tanto que a primeira sequência é impactante o suficiente para mostrar como esses dois mundos se chocam em uma constância assustadora, premeditando um conflito intimista por parte do protagonista. Enfurnado em uma pequena “cabana improvisada” com seu filho Gabriel (o novato Cauã Martins), toda a inocência vem à tona pelo jogo de luz e sombra monocromática que logo é engolfado pela forte paleta de cores do estúdio cinematográfico, dentro do qual o pai é forçado a abandonar sua máscara protetora para se transformar em um personagem totalmente oposto. O choque é claro no rosto do garoto, mas essa contínua expressividade às vezes cai em uma coerência excessiva com a mensagem que se quer passar para o público.
O protagonista não apenas lida com o fato de querer alavancar sua carreira para contentamento próprio, mas também aceita passivamente sua condição genealógica, emergindo como um sujeito egresso de uma linhagem de artistas que tenta encontrar seu lugar sob os holofotes. Em outras palavras, Augusto carrega o legado de sua mãe, Marta (Ana Lúcia Torre), famosa por sua carreira em novelas de época no início e nos anos dourados da televisão brasileira – mais uma dica histórica para que o público consiga acompanhar a cronologia da obra. Ele sente o fardo de sua maior inspiração, outrora adulada por fãs e por produtores, desvanecendo apenas por sua idade e pelas transformações ocasionadas pela crescente globalização, deixando-lhe um lugar especial, mas sem qualquer expectativa de retorno ou crescimento. Augusto se vê na missão de não ser descartado antes de alcançar um potencial considerável – e encontra isso após ser chutado pela Rede Mundial e ser contratado pela TVP para estrelar um programa de auditórios infantil.
Bingo entra como uma salvação para ele. Sendo dirigido com pulso firme por Lúcia (Leandra Leal), uma produtora puritana que acredita que aquele programa infantil é sua grande chance e se recusa a deixar um rebelde estragar seus planos. A química entre Brichta e Leal é instantânea por todos os motivos errados, incluindo suas personalidades opostas, seus objetivos distorcidos e algo que os une: a ambição pela fama e pelo sucesso. Talvez tenha sido esse o fator principal que os permitiu ultrapassar a hegemonia da Mundial, crescendo exponencialmente no índice de espectadores até conquistar o primeiro lugar.
É claro que tamanho sucesso não vem sem consequências. Determinado em criar uma reviravolta profissional em sua vida decadente, Augusto acaba deixando seus familiares de lado, principalmente seu filho, por dois motivos: primeiro, por lidar todos os dias com crianças diferentes e esquecer-se daquele que sempre lhe apoiou em todos os projetos que imaginou; segundo, por ter assinado um contrato que não o permite dizer a ninguém a real identidade de Bingo. Apesar de parecer inofensivo, tal cláusula específica não lhe dá nenhum crédito, mas mantém o misticismo por trás de uma figura adorada tanto pelos críticos quanto pelo público.
O filme não sucede apenas em criar personagens complexos o suficiente para deixá-los longe dos extremos do “bem” e do “mal”; ele também explora os bastidores dos programas de auditório, trazendo uma perspectiva polvilhada por sexo, drogas e um vício pelo poder que não se restringe apenas ao âmbito artístico, mas também ao intrínseco do ser humano. Augusto parece ter tudo sob controle, mesmo com o fiasco de seu casamento anterior ou com a deterioração de seu relacionamento com o filho com o passar do tempo. Ele ainda sim tira proveito de sua condição como “rei das manhãs” para afofar um crescente ego e conseguir tudo o que quer – e isso é explorado ao máximo na virada do segundo para o terceiro ato.
‘Bingo – O Rei das Manhãs’ também tem um cuidado especial para resgatar toda a cultura televisiva da época. Mantendo em segredo quaisquer nomes que podem violar os direitos de imagem, mas que se mostram compreensíveis por grande parte do público, o roteiro assinado por Luiz Bolognesi traz uma dissertação oculta por diálogos dinâmicos e envolventes sobre a identidade dos programas em questão, incluindo a dúbia interpretação imagética de ícones da década de 1980 em criações voltadas para as crianças. Emanuelle Araújo faz um incrível trabalho dando uma aparência original e ao mesmo tempo nostálgica da cantora e performer Gretchen, divagando inclusive sobre os caminhos percorridos pelo protagonista para alcançar o que sempre quis.
Em suma, o primeiro longa-metragem oficial de Daniel Rezende é uma das pérolas do cinema nacional que, apesar de pecar nas resoluções da narrativa – fincando-se muito aos clichês de arcos de queda e redenção -, mostra um potencial infinito sobre a nossa própria cultura e como é possível transformá-la em um produto satisfatório a uma audiência acostumada com blockbusters e filmes “pipoca”.