‘Nasce uma Estrela’ é um dos filmes mais lembrados de todos os tempos, e talvez essa memorabilidade não seja tanto pela história, mas sim por ter caminhado até o seu quarto remake. A pergunta que não quer calar é: por que mergulhar em mais uma investida para o longa? Afinal, a última vez em que isso aconteceu foi nos anos 1970, com Barbra Streisand e Kris Kristofferson encarnando os papéis principais – e o resultado não foi um dos melhores, apesar de ter ajudado a reafirmar o nome da atriz e cantora como uma das maiores de sua geração. O resultado poderia ser catastrófico ou cair nos clichês dos gêneros musical e romance; felizmente, a roupagem modernizada para o clássico conto encontra um brilho inesperado e emocionante.
É claro que quando ouvimos o nome de Bradley Cooper, podemos pensar em diversos trabalhos para o cinema e para a TV, alguns até dignos de nota, como o ótimo ‘Sniper Americano’. Logo, no momento em que o próprio Clint Eastwood resolveu entregar a direção ao ator, toda a produção ganhou uma força inigualável, criando laços de confiança para o que poderia ser uma das maiores estreias da década. E ele não ficaria apenas a cargo da direção, como também seguiria os passos do mentor e abraçaria um dos papéis principais e o roteiro, além de participar de todos os processos cinematográficos para que o projeto alcançasse o sucesso que já está fazendo – afinal, foi aplaudido durante oito minutos no Festival de Veneza, e não foi por menos.
Em uma estreia diretorial, precisamos nos atentar ao menos para as fórmulas técnicas e artísticas a serem seguidas, e cuidar para que não se produza mais do mesmo. Apesar da premissa não mergulhar em nenhuma novidade, a condução da narrativa é o que vale mais a pena depois das belíssimas atuações de um elenco de ponta. Cooper dá vida ao rockstar Jackson Maine, cuja alavancada carreira parece não ser o suficiente para preencher um vazio interior; o “herói” busca fechar-se em seu próprio mundo, regado a bebidas e drogas, até decidir parar em um bar no melhor estilo cabaré e conhecer a aspirante a cantora Ally (Lady Gaga). Já no início, é possível perceber uma direção segura que brinca com dois cosmos diferentes, permitindo que cada um crie sua própria identidade antes de convergi-los em uma fluidez apaixonante.
O diretor aproveita as luzes estroboscópicas das arenas de shows com uma potente e angustiante câmera na mão, logo antes de voltar a uma perspectiva intimista que ganha um onirismo próprio até mesmo da personalidade de Ally. Enquanto Jackson vive em uma realidade que não é tão perfeita quanto se pensa, a jovem garota insiste em fugir para os palcos para se sentir completa, entregando-se aos holofotes vermelhos e à companhia de suas drag mothers para continuar lutando pelos seus sonhos. É claro que os eventos se desenrolam de modo muito rápido, mas Cooper, ao lado de Eric Roth e Will Feters, parece propositalmente acelerar o ritmo antes de se fixar no drama coming-of-age – não que isso justifique os probleminhas existentes, servindo apenas para amenizá-los.
É quase óbvio imaginar o que vem a seguir: os dois acabam se apaixonando e se tornando um casal dos sonhos até que barreiras introspectivas começam a surgir e a colocar à prova o amor que um sente pelo outro. Entretanto, antes de chegarmos a esse ponto, é preciso falar sobre o momento de maior conexão entre os dois – momento no qual Gaga e Cooper rendem-se a “Shallow”, canção que definitivamente traduz todas as mensagens do longa. Em uma combinação de planos longos e uma fotografia ao mesmo tempo fabulesca e realista, Ally ganha seu primeiro gostinho da fama ao cantar com o astro. A construção cênica é belíssima, seguindo um padrão fotográfico-artístico que centraliza a dupla e abre margens para reafirmar a química que os dois exalam o tempo todo.
Ainda que a fórmula esteja ali, com seus altos e baixos, o roteiro procura contornar os clichês e os estereótipos em grande parte dos diálogos; a complexidade de seus personagens está, ao mesmo tempo, nos sentimentos que nutrem um pelo outro e nas próprias falhas – Jackson parece internalizar seus problemas com sua agora esposa cedendo ao estrelato, descontando as frustrações em seus vícios problemáticos. Ally represente seu porto seguro, mas também entra em uma montanha-russa compulsória de tentar salvá-lo até a gota d’água, traduzida numa sequência catarticamente vergonhosa e ministrada com uma precisão fílmica incrível.
Enquanto os possíveis deslizes de trama são enterrados em sua grande parte, a estreia diretorial de Cooper ainda cede a outros entraves: ao colaborar com Matthew Libatique, a fotografia pode até servir como paralelo à atmosfera criada, mas eventualmente se inclina para alguns vícios desnecessários, incluindo a obrigatória luz estourada e difusa que parece engolfar os personagens em uma espécie de “auréola divina”. É interessante ver as experimentações, porém, essa repetição excessiva torna-se cansativa depois de algum tempo.
De qualquer modo, é Gaga quem rouba a cena. Jackson ainda carrega consigo o fardo protagonista, mas Ally, em todo seu arco de autodescoberta, confiança e traição, abandona sua vida medíocre e se joga em uma jornada que, infelizmente, não acaba em final feliz. Ela aprende do modo mais duro que poder não é querer, é abdica sem perceber de uma grande parte – não que isso seja culpa dela; entretanto, é forçada a lidar com as consequências, e cada uma das emoções se expressa não apenas numa irrepreensível atuação, como também em seu alcance vocal soberbo que leva até o mais cético dos espectadores a se emocionar.
A quarta versão de ‘Nasce uma Estrela’ se consagrou como um dos melhores filmes de 2018. Desde a roupagem contemporânea até uma produção impecável, cada peça trabalha dentro de uma engrenagem bem construída que, mesmo com as falhas, faz o seu trabalho de conversar com o público e firmar o nome de dois artistas que merecem mais reconhecimento do que já têm.