Diana Gabaldon é responsável pela criação de uma das sagas mais bem escritas e vendidas no mundo inteiro: ‘A Viajante no Tempo’. A narrativa da romancista mistura elementos de diversas vertentes, incluindo a ficção de aventura, a ficção história e o sobrenatural, criando um cosmos que tem uma veracidade incrivelmente bem pesquisada e que ao mesmo tempo funciona como uma nova perspectiva fantasiosa e bastante envolvente. Logo, ao escolher adaptar a série de livros, Ronald D. Moore tinha uma grande responsabilidade em mãos para transcrever uma riqueza de detalhes inenarravelmente extensa para um meio que é conhecido, obviamente, pelo bombardeio imagético. Felizmente, o resultado é, sem sombra de dúvida, aplaudível: ‘Outlander’, como ficou conhecida a série, não é apenas uma rendição memorável para uma civilização imortalizada, mas também uma homenagem para a novelista.
A trama se inicia de forma muito poética ao final da II Guerra Mundial – um escopo familiar para narrativas de época e que, dependendo do tratamento que recebe, funciona em todos os seus aspectos. Tal proeza se repete aqui, trazendo como foco de tudo a extremamente carismática e belíssima Claire Beauchamp (Caitriona Balfe), uma enfermeira botânica que, no período que se segue após o término da batalha e a derrota dos nazistas, decide comemorar sua tão sonhada lua-de-mel, cujas celebrações nunca encontraram a luz do dia, ao lado de seu marido Frank Randall (Tobias Menzies) nas místicas terras escocesas.
À prima vista, parecemos estar embarcando em mais uma jornada romântica com ares nórdicos, mas nem tudo é o que parece ser, a começar da inserção de uma narração feita pela própria protagonista. Claire é uma mulher forte, determinada e muito sagaz, dotada de inúmeras habilidades que a transformam não mais em um estereótipo feminino da época em que a história se passa, mas sim um incrível arquétipo a servir de inspiração para até mesmo outras investidas audiovisuais e literárias. Seus pensamentos e digressões não se mantém em um nível ambíguo, servindo como leitura para o que acontece em cena, mas sim transmitindo as sensações mais íntimas da personagem principal e que definitivamente não conseguem ser transpostas apenas em primeiro plano. Isso de forma alguma tira o mérito de Balfe em sua magnífica interpretação – muito pelo contrário: tal escolha reflete a complexidade de sua personalidade e como cada um dos fragmentos é extremamente necessário para a compreensão do público acerca da série.
Tudo muda quando o casal chega à misteriosa cidade de Inverness e logo se aventura a explorar os pontos históricos e a mitologia celta que ainda exala através da humilde comunidade e de seus habitantes. Isso casa muito bem até com a profissão do duo, uma com grande afinidade para as artes medicinais e o outro historiador. Não é à toa que monólogos acerca da história de suas famílias e até mesmo das construções que os rodeiam existam o tempo todo e não caem na mesmice, por incrível que pareça. O show respira História, seja de modo saudosista e nostálgico, seja como vivência na própria pele.
Em determinado momento, o casal decide presenciar uma memorável cena ritualística wicca, que resgata as raízes dos nativos britânicos. Toda a sequência é acompanhada por uma suave e envolvente música celta, pautada no mais puro silêncio até mesmo pela frenética mente de Claire – e não podemos deixar de sentir todo o misticismo que reside na atmosfera quando a dança acaba e as bruxas dispersam. Ora, se nem mesmo a protagonista consegue deixar se subir até o círculo de pedras, quem dirá nós? E talvez seja essa impulsividade de conhecer o sobrenatural que dá início para uma jornada quase sci-fi para ela: afinal, ao tocar em uma das pedras talhadas em pura “magia”, por assim dizer, ela misteriosamente retorna para o ano de 1743.
Viagens no tempo são sempre bem-vindas, ainda mais quando bem contadas. E talvez a saga de Claire em uma sociedade completamente diferente – e à beira de um colapso político – seja uma das que mais obtém sucesso, não apenas por colocar uma forasteira (situação que fornece o título para a série), mas por obrigá-la a se adaptar a um novo jeito de ver a vida: mais clássica, mais humilde e mais perigosa. E essas sensações já foram experimentadas durante a guerra, mas não em uma era tão perigosa quanto a que nos é apresentada – afinal, é só nos recordarmos da rudimentar tecnologia e do primitivismo quase animalesco no qual aquele povo estava inserido. Essas encarnações arquetípicas, que seguem o mesmo padrão de Claire, insurgem principalmente na figura do robusto Jamie Fraser (Sam Heughan), o qual divide as honras do holofote juntamente à protagonista inglesa.
Seu personagem é, acima de tudo altruísta e compreensivo, ainda que ingênuo quanto a certas questões de esfera mais geral, como a política e a econômica. Entretanto, é interessante ver o paradoxo de ‘Outlander’ conforme a narrativa se segue e opta por brincar entre as relações pessoais e intimistas entre Jamie e Claire em conjunto muito equilibrado ao escopo social pautado em diversas intenções – que inclusive nos introduzem a outros personagens tão marcantes quanto aos já apresentados: Dougal MacKenzie (Graham McTavish) e Murtagh Fraser (Duncan Lacroix), ambos serventes ao mesmo rei e ao mesmo clã unido e que funcionam um como extensão do outro.
É claro que Dougal, servindo como braço direito de seu comandante e sendo tio por consideração de Jamie, é mais austero e sem papas na língua quando o assunto é punição, subserviência e leis, principalmente àquelas que permitem um contra-ataque às investidas impiedosas do exército inglês ante suas terras. Murtagh, por sua vez, é muito mais irreverente e até mesmo emerge como o escape cômico da narrativa, ainda que traga alguns traços de puro machismo que conversem com os ideais patriarcais de meados do século XVIII. O mais interessante é que, dentro da jornada de Claire, cada uma dessas presenças é de extrema importância para seu amadurecimento e para a aceitação de sua nova dia, seja para o bem ou o mal.
A série acerta em cheio quando se permite explorar as brechas dentro do roteiro, principalmente em questão à perspectiva única da protagonista. Diferentemente de outros shows que também trazem narradores, como ‘Grey’s Anatomy’ e ‘Desperate Housewives’, à medida em que a protagonista aceita seu destino e compreende que não poderá voltar à vida que outrora tinha, ela se funde de forma quase completa aos costumes da comunidade da qual se tornou “refém” e depois “agregada”, dando espaço para que aqueles ao seu redor analisem as transformações que vieram com a aparição da Sassenach (palavra gaélica para “forasteira”). Logo, não é nenhuma surpresa que um dos episódios seja inteiramente da perspectiva inocente de Jamie e adicione elementos que permitam um maior envolvimento.
Sem dúvida, uma das figuras mais adoráveis e que com um dos arcos mais trágicos e impressionantes da primeira temporada reside no inexplicável rosto da curandeira Geillis Duncan (interpretada por Lotte Verbeek). Desde o primeiro momento em que aparece, a candura em sua voz e até mesmo sua afinidade com as artes místicas, principalmente no tocante a uma das religiões que dá base à mitologia da série (o wiccanismo), é inebriante. Todas as cenas que protagoniza são banhadas por uma luz suave que a transforma em um ser translúcido e intangível, quase de outro mundo – e essa estética acompanha sua trajetória até ser condenada à fogueira por bruxaria e por ter assassinado seu marido e carregar o “filho do Demônio”, tudo em prol de salvar Claire do mesmo destino. E é nesse momento que percebemos que a nossa heroína não foi a única a cair nas graças de um feitiço do tempo, visto que Geillis revela ter vindo de uma época um pouco mais longínqua que ela: 1968 (“The Devil’s Mark”).
Como já sabemos, toda a narrativa é ambientada em terras escocesas. A fotografia cuidadosamente bem pensada afasta-se da representação panfletária vista em tantas obras audiovisuais similares, preferindo mesclar-se à fauna, à flora e até mesmo às belíssimas construções milenares que ocupam o solo nórdico. Dessa forma, espere sim paisagens quase paradisíacas, confrontadas com o pesado e brusco teor das sequências desenvolvidas em um ambiente mais claustrofóbico e pautado na luz dura, permitindo a delineação de silhuetas e até mesmo a ambiguidade daquilo que se assiste. E se Claire, no começo da narrativa, permanece como alguém à parte do clã principal, ela logo permite-se, como supracitado, fundir àqueles que a acolheram, adquirindo até mesmo o mesmo desbotamento que seus companheiros.
Esse cuidado imagético também alastra-se para um dos antagonistas mais cruéis da televisão contemporânea, o alter-ego antepassado de Frank, Jack Randall (também interpretado por Menzies). Seu primeiro encontro com Claire deixa certa dúvida e até mesmo medo quanto ao que pode fazer contra aqueles que considera inferior – ou seja, os escoceses -, e essa torturante lábia e malícia é explorada ao máximo pela mente criativamente deturpada tanto de Gabaldon quanto de Moore. A temporada é permeada por flashbacks que mostram sua raiva perante os rebeldes e como ele não aceita ser desafiado por ninguém – até que suas reais intenções são reveladas em um dos episódios mais cruéis dessa iteração, intitulado “Wentworth Prison”. À essa altura, Claire e Jamie já oscilaram entre inúmeros resgates e missões de salvamento, mas nenhum tão complexo quanto este: acontece que Jack também representa uma quebra de tabu gigantesco e na verdade nutre um psicótico desejo pelo personagem de Heughan, utilizando a ideia de dominação e submissão para subjugá-lo das formas mais terríveis possíveis.
A montagem de tais sequências não deixa a desejar: ela é essencialmente explícita, perscrutada por enquadramentos mais simétricos e ângulos que seguem a linha do olhar ou que deslizam entre o plongée e o contra-plongée, dependendo de qual reação catártica deseja-se ter. E essas técnicas também contribuem para separar as duas épocas retratadas; dentro de um paralelismo cronológico, optar por colocar as duas tramas num mesmo ciclo dialógico, principalmente ao diferenciá-las com um filtro em sépia para 1945 e uma abordagem mais naturalista para 1743.
‘Outlander’ é soberba. Não apenas por se tratar de uma incrível adaptação, mas sim por funcionar em diversos níveis de contentamento: a iteração é uma novela, um retrato histórico muito verossímil da história escocesa, uma epopeia bíblica, uma jornada épica através das místicas terras altas – e, principalmente, uma deliciosa história de romance, drama e sacrifício.