É um fato dizer que as cinebiografias tornaram-se um grande nicho dentro da indústria do entretenimento contemporâneo. Nos últimos anos, diversos nomes, famosos ou não, ganharam uma narrativa para as telonas, tendo alcançado sucesso entre o público ou insurgido como mais um filme convencional barato e previsível. Marielle Heller, diretora e protagonista de ‘Diário de uma Adolescente’, procurou em seu mais novo projeto uma perspectiva nova, original e envolvente que focasse em um dos nomes mais controversos dos últimos anos – Lee Israel, romancista biográfica que construíra seu nome no passado, mas que agora, alcançando seus cinquenta anos, mergulhava no esquecimento e lutava até mesmo para quitar as dívidas de seu apartamento em Nova York.
Foi assim que surgiu ‘Poderia Me Perdoar?’, uma apaixonante tragicomédia que foca nos anos que renderam a Lee os holofotes até mesmo do FBI. A jornalista e autora é encarnada por uma atuação aplaudível de Melissa McCarthy, a qual se afasta de seus conhecidos papéis em comédias pastelão e rom-coms para entregar-se a uma versatilidade invejável e que a consagra como uma atriz com imenso potencial – não é à toa que recebeu uma indicação ao Oscar por sua performance neste longa. Heller, eventualmente, encontra sim um espaço fértil para desconstruir as fórmulas e os trejeitos clássicos das biopics, reinventando aspectos do gênero em prol de uma história que perpasse todas as complexidades do desespero humano, além de mostrar o quão disposto alguém está para dar a volta por cima.
Após perder o seu trabalho no jornal local e não sentir um pingo sequer de apoio de sua agente, Lee Israel vê-se presa num beco sem saída, rodeada por dívidas e por um incessante bloqueio criativo que a impede de continuar seu legado como escritora. Ela tem como única companhia seu gato – e não consegue deixar sua personalidade geniosa de lado, nem mesmo para trabalhar em seu marketing pessoal. Apesar de estar trabalhando em uma nova biografia sobre a comediante Fanny Brice, Lee continua sendo desacreditada por Marjorie (Jane Curtin), que prefere apostar em romancistas mais famosos que em alguém que não sabe se fará sucesso ou não – ainda mais considerando sua última obra.
Insistindo em continuar em seu projeto, Lee acaba por encontrar uma das cartas de Brice em meio a um livro e, levando a relíquia para casa, adultera o conteúdo dos escritos da forma mais profissional possível e consegue vendê-los por mais de trezentos dólares. É a partir daqui que a deprimida escritora reencontra um motivo para continuar vivendo: ela descobre que não precisa de ninguém, e sim de si mesma; com isso, começa a buscar em meio a suas tralhas arquivos de cartas de pessoas famosas para recriá-las em lindos e perfeitos artefatos, tudo para voltar a ter uma vida confortável. Lee encontrou um novo ganha-pão e, ainda que não seja da forma mais esperada possível, continua escrevendo, mesmo falsificando a assinatura de nomes como Nöel Coward, Dorothy Parker e até mesmo Katharine Hepburn.
Heller não alcança sucesso apenas pelo modo rebelde como trata um dos casos mais incríveis da história criminal dos Estados Unidos, mas sim por atentar-se a detalhes minuciosos. Sua preocupação estética, muitas vezes traduzido pela performance dos atores ao invés das construções cênicas e da fotografia, também é percebida pela própria Lee: ela é uma artista e encarna cada uma dessas icônicas personalidades, incluindo seus trejeitos, seus modos de falar e seus bordões clássicos. Em determinado momento, ela mesma diz que se tornou uma melhor Dorothy Parker do que a própria – e não podemos negar, visto que os inúmeros colecionadores compram avidamente as cartas que ela os leva.
Eventualmente, Lee é pega. Não de cara, é claro, mas depois que uma das cartas de Coward ser analisada com bastante atenção, tais compradores percebem que as relíquias vendidas são forjadas. É nesse momento que a escritora diz para si mesma que não voltará a ter vida que tinha, chegando até mesmo a roubar cartas originais de bibliotecas e museus para garantir o ganha-pão e manter o prospecto de um sentido para seu monótono e solitário cotidiano. E ela também é ajudada pela hilária e conturbada figura de Jack Hock (Richard E. Grant), um artista que passa suas noites gastando seu mísero dinheiro em bares e clubes gays. Ambos firmam uma parceria e tornam-se amigos, até Jack ser levado pelos próprios agentes do FBI a revelar que ela estava por trás das falsificações.
Os pequenos deslizes são ofuscados pelas memoráveis performances dos dois personagens principais e pelo modo como a história é-nos contada. Claro, Heller também inclui uma subtrama amorosa entre Lee e Anna (Dolly Wells), talvez com o intuito de revelar a introspecção da protagonista, mas que logo é esquecida. Entretanto, tudo culmina em uma emocionante conclusão em que, diferente dos outros criminosos, a escritora não se arrepende de ter forjado as cartas: os meses que passou trancafiada em casa, finalmente escrevendo, lhe deram vida de novo; ela se arrepende por ter ciência de que os escritos não eram seus, mas sim de outras pessoas – e é nesse conjunto contraditório que se endossa a genialidade tanto de McCarthy quanto de Heller.
No final das contas, Lee se reencontra mais uma vez. Após utilizar o que aconteceu como mote de sua nova autobiografia, ela volta a ter um sentido e vira a página, tentando esquecer-se de um complicado passado. Entretanto, não pense que essa conclusão se restringe aos motes do tour-de-force; ela funciona na verdade como um clichê prático que, felizmente, foi acompanhado de uma trama coesa, estrelada por uma atriz que, sem dúvidas, ainda tem muito a nos oferecer.