Depois do grande sucesso dentro do circuito de festivais, o thriller psicológico dos cineastas austríacos Veronika Franz e Severin Fiala causou um alvoroço de proporções inimagináveis em sua semana de estreia – tanto nos Estados Unidos quanto aqui no Brasil. Era de se esperar tal reação do público, principalmente pela dúbia interpretação que tanto os cartazes do filme quanto a sinopse deixaram no ar. E parece que as críticas também não ajudam muito: uns acham a produção admirável, outros um ótimo jeito de retomar o gênero de terror, e alguns consideram-no uma incestuosa representação sádica.
Pode-se dizer que ‘Boa Noite, Mamãe’ é um suspense gótico situado em uma moderna vila. E a casa em questão não é um simples ornamento ou uma mansão secular, mas sim um elegante e remoto sobrado erguido em ângulos complicados e espaços em brancos, cercado por campos de milho, lodaçais e cavernas. Projeto com sinistra precisão, o cenário se torna um enervante playground para os gêmeos Lukas e Elias, de dez anos de idade (interpretado pelos verdadeiros Lukas e Elias Schwartz), os quais passam seus dias pulando na cama elástica, nadando no lago, correndo por entre as árvores e explorando pilhas e pilhas de ossadas escondidas em catacumbas.
A estrutura básica de um filme terror exige uma criatura vilanesca e muitas vezes sobrenatural que servirá de antagonista e obstáculo aos heróis. Neste caso, o misterioso “monstro embaixo da cama” é a Mãe (Susanne Wuest), que acabou de ter alta no hospital e chega à casa com o rosto completamente coberto por ataduras – cuja razão, para a qual não somos apresentados em sua plenitude, foi uma provável cirurgia plástica – e que mantém uma estranha e tensa relação com seus filhos – e, em vários momentos, sua personalidade compulsória e mandatória vai se revelando, incluindo momentos de dependências e vulnerabilidade.
A Mãe permanece na maior parte do tempo trancafiada em seu quarto, demandando silêncio na casa – e mais: não dirige uma palavra a Elias, nem sequer o alimentando. Os meninos, quando a sós, começam a se questionar o porquê de ela estar tão mudada, e depois de um tempo se aquela pessoa é mesmo sua mãe. Será que há uma impostora por baixo das bandagens?
Mas os próprios garotos se mostram um tanto quanto frios perante os acontecimentos, sugerindo que eles estão longe de serem inocentes nessa história: Franz e Fiala optam por retratarem-nos como uma alegoria às duas meninas, por exemplo, de ‘O Iluminado’ e os dois jovens psicopatas de “Violência Gratuita”.
A tensão e a ideia de incerteza persistem pela maior parte do filme, capturando o minuto amplificado de interação entre as três personagens de modo a tornar a essência ainda mais angustiante: um jogo de “Quem sou eu?” coloca a suposta impostora em cheque, ao passo que os garotos escolhem “Mama” como a pessoa que deve ser identificada – e ela parece errar detalhes básicos sobre seu próprio eu. Mas poderia a Mãe estar fazendo isso de propósito? Suas perguntas e respostas soam mais impacientes a sem noção.
A casa é adornada com retratos borrados da matriarca, o que aumenta a sensação generalizada de incompletude, de personagens cujas reais naturezas permanecem desconhecidas. O foco no tema “jogos” – brincadeiras infantis, jogos de tabuleiro – faz com que nos perguntemos se há algum jogo psicológico por trás da relação mãe-filho. Mas é também difícil não sentir a ação que se desdobra sob a sombra de um provável e oculto trauma do passado.
‘Boa Noite, Mamãe’ é um filme recheado de elipses e pontuado eximiamente com cenas de absoluto silêncio – e o arco de cada um dos personagens funcionam muito melhor quando os lemos sob nenhuma palavra. E aqui, devo penetrar no território dos spoilers: o longa contém, perto do final, o que em muitas outras histórias é chamado de plot twist. É uma revelação que parece bastante evidente desde o começo. Entretanto, é necessário analisar o conjunto da obra em vez de blocos separados. O momento catártico, digno de “O Sexto Sentido”, é uma combinação da melancolia, do sentimento de ameaça e do suspense causados por todas as outras pontas do roteiro.
É completamente compreensível a grande negação do terceiro ato: a história se transforma em uma sequência interminável de violência extrema, deixando o público mais desconfortável do que já estava. E mesmo assim, é impossível não sentir qualquer compaixão por trás de tanta crueldade – mais trágica que sádica. ‘Boa Noite, Mamãe’ é um filme inquietante e suspensivo, mas que procede com exímia cautela.