Ava DuVernay é um dos nomes mais proeminentes da indústria cinematográfica contemporânea: seu filme de estreia, ‘Selma’, ganhou notoriedade por tratar com uma cruel beleza a história real de Martin Luther King Jr., do presidente Lyndon Johnson e da marcha contra o apartheid e os direitos igualitários entre os brancos e os negros numa época movida pela segregação racial; pouco tempo depois, DuVernay fincou sua incrível habilidade narrativa com o documentário ‘13th’, retornando para questões de extrema necessidade para a sociedade atual e focando, dessa vez, na proibição da escravidão nos Estados Unidos.
Para aqueles saturados de produções com cunho político-social, a cineasta e produtora de fato não é um nome que irá lhes atrair; entretanto, àqueles que não se contentam com rom-coms convencionais ou dramas familiares, ela é o nome perfeito – ainda mais agora que retornou ao centro dos holofotes com a minissérie intitulada ‘Olhos que Condenam’. Ao longo de quatro episódios que funcionam como peças fílmicas, DuVernay dá voz às vítimas de uma acusação de estupro que ocorreu no Central Park em 1989; em sua mais nova investida televisiva, ela e seu competente time criativo delineiam um visceral tour-de-force que, através de uma epopeia declamatória, denunciam a podridão do sistema judiciário estadunidense e de que forma o racismo ainda está entranhado nas bases da sociedade – e como as figuras que supostamente deveriam ser justas e imparciais, na verdade, podem ser a própria personificação da corrupção.
A história baseada em fatos reais gira em torno de cinco adolescentes que foram erroneamente julgados culpados pelo estupro de uma corredora no parque mais famoso de Manhattan. À época, as minorias sociais eram varridas para as margens da comunidade urbana – e, tendo como foco principal o tratamento recebido pelos negros pelas autoridades, é mais que natural que sejamos transportados para o memorável bairro do Harlem. Às vésperas de uma nova década, um grupo de trinta jovens “arruaceiros”, como descrito pelos oficiais, perturbou a paz dos transeuntes nova-iorquinos e culminou na prisão de um grupo que, como ficaria provado quase duas décadas mais tarde, não tinha nada a ver com o ocorrido.
Já no primeiro capítulo, DuVernay mergulha nas múltiplas perspectivas que revelam as reais intenções de cada um dos personagens: de um lado, temos a brilhante liderança de Felicity Huffman como a advogada Linda Fairstein, encarregada de examinar os casos de assédio sexual que assolam a cidade; do outro, o interrogatório desumano que coagiu os jovens meninos a mentirem para se salvar, mas que acabaram caindo numa armadilha meticulosamente construída para manter os estereótipos raciais e reafirmar a supremacia branca de uma forma sutil e absorvida passivamente por todos.
Não é surpresa que o capítulo de abertura nos dê a sensação regurgitante de um soco no estômago. Sabemos o que cada um dos detetives está fazendo e observamo-nos quebrar as leis e a própria constituição para unir peças de um quebra-cabeça que não existe; Linda faz de tudo para arquitetar uma impressionante trama que seja chocante o suficiente para que cada jornalista, juiz e membro do júri popular não tenha outra saída além de incriminar os rapazes – e o mais agonizante é que eles simplesmente estavam no momento errado, na hora errada: Kevin (Asante Blackk), Antron (Caleel Harris), Yusef (Ethan Herisse), Korey (Jharrel Jerome) e Raymond (Marquis Rodriguez) são influenciados por forças muito maiores que todos eles a culparem uns aos outros sem ao menos se conhecerem, preferindo a mentira à verdade em uma irreversível inversão de valores éticos e morais.
DuVernay fica a encargo de cada um dos capítulos e nos mergulha no metódico e obscuro mundo judicial – que destrói a imagem concretizada da “justiça cega”. As tonalidades insalubres das personas adultas dialogam diretamente com uma paleta de cores mais escura, em uma mistura monocromática que tangencia o pastel ao mesmo tempo que não o abraça totalmente, restringindo-se a uma hibridez única e diabolicamente apaixonante. De fato, os elementos estéticos de aliam com perfeição no claustrofóbico e opressor cenário do tribunal, reafirmado pela presença de Vera Farmiga como a advogada de acusação Elizabeth Lederer.
A série tem uma capacidade aplaudível de nos arrancar lágrimas de ódio em basicamente todos os momentos de pura catarse, os quais erguem-se num contraditório jogo entre diálogos e trilha sonora. Afinal, os jovens adolescentes, poucos deles realmente entendendo o que lhes está acontecendo, foram obrigados a amadurecer em um ambiente hostil, tratados como animais e marcados pelo resto da vida com um rótulo que nunca lhes pertenceu. E eles não são os únicos a jazerem numa cova de impotência – nós também nos envolvemos nas mesmas sensações, suspirando de alívio quando tudo parece dar certo apenas para cedermos a uma impressionante reviravolta.
O mais interessante é a forma como o elenco-mirim grita muito mais alto que os veteranos do entretenimento; eventualmente, os atores são trocados por versões mais velhas, com exceção de Jerome, que se entrega de corpo e alma a uma das performances mais emocionantes da década. Korey é o ponto-chave para compreendermos a depravação à qual a trama se refere: mesmo tendo acabado de completar dezesseis anos, ele é mandado para um complexo presidiário tradicional e é forçado a sobreviver nas condições mais adversas possíveis – protagonizando alguns dos momentos mais impactantes de toda a obra.
Mesmo com sua grandiosidade estilística e narrativa, DuVernay também escolhe algumas alternativas que se afastam da visceralidade supracitada e se aproximam dos elementos do melodrama: esse talvez seja o principal motivo para o convulsionante ritmo perder força no terceiro episódio, recuperando-se no aguardado series finale. Entretanto, os deslizes são ofuscados por brilhantes atuações que abrem-se em leque impressionante – arrancando uma desconstrução arrebatadora de Niecy Nash como Delores Wise, mãe de Korey.
‘Olhos que Condenam’ é uma série necessária, pesada, chocante e agonizante. Ao lado de conterrâneas como ‘The Handmaid’s Tale’ e ‘Pose’, sua competente storyline coloca em voga temas de extrema importância, denunciando sem medo que a justiça não é tão cega quanto parece – e que certas narrativas históricas e estruturais se mantém num infeliz cíclico mais comum do que deveria.